Inquéritos são dirigidos aos juízes, e não às televisões e jornais
*Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo desta terça-feira (18/10) com o título Não à idolatria aos holofotes.
Com a posse da nova procuradora-geral da República abriu-se a esperança de que os promotores e procuradores de Justiça não percam de vista que o processo judicial para apuração de crimes deve ser dirigido ao juiz, com muita discrição, e não à opinião pública. Não é aceitável que se repita a conduta de aceitar como verdadeiras acusações revestidas de gravidade, mas que não estão acompanhadas das provas necessárias à sua comprovação. Acusações e alegações não constituem meios de prova, daí o risco de torná-las públicas.
O processo judicial é uma peça técnica que não pode se afastar daquilo que está exposto na lei e consagrado pelo Direito. Como o monopólio de distribuição de justiça e o direito de punir pertencem exclusivamente ao Estado, esse direito de agir deve ser exercido perante juízes e tribunais, jamais voltado para televisões, rádios e jornais.
Nos últimos quatro anos, graças ao magnífico trabalho realizado anonimamente por delegados e procuradores federais de Justiça, o Brasil começou a mudar de cara, com a denúncia e a prisão de pessoas muito ricas, algo que em nossa História apenas havia ocorrido excepcionalmente.
Essas prisões e a exposição de políticos e empresários milionários tiveram o aplauso da opinião pública, mas, lamentavelmente, acenderam fogueiras de vaidades que levaram o ex-procurador-geral Rodrigo Janot a uma verdadeira idolatria aos holofotes, sentindo-se talvez a pessoa mais importante do país, como se a Procuradoria-Geral da República fosse o próprio Estado, e não somente um de seus órgãos.
É inconcebível que se atribuam a um órgão do Estado poderes sem limites e que o procurador-chefe chegue ao extremo de ameaçar as pessoas com flechadas, algo próprio de mentes primitivas, de limitada imaginação. A democracia vale, precisamente, porque os Poderes do Estado são limitados, harmônicos entre si, controlados mutuamente, conforme emergiu da Revolução Francesa. “Il faut (…) que le pouvoir arrête le pouvoir” (Montesquieu).
Espera-se e deseja-se que o formidável trabalho anônimo dos delegados federais tenha sequência, mas nos limites da lei e sempre tendo em vista que o inquérito judicial, como o próprio nome diz, é dirigido aos juízes e tribunais.
É um erro muito grave levar em conta apenas acusações e torná-las públicas antes de manifestação judicial, porque a exposição pública do acusado equivale à antecipação de uma condenação pelo Poder Judiciário, que talvez venha, talvez não venha.
O objetivo de investigar e apontar o autor do delito deve ter por base a segurança da ação da Justiça e do próprio acusado. Tornar públicas acusações, por mais graves que sejam, encerra o risco de irreversíveis danos à sua imagem, não podendo ser ato leviano, desacompanhado de provas.
Essa cautela de investigar e de provar, exclusiva do Estado, tem também por finalidade impedir acusações injustas e temerárias. Realmente, o inquérito bem realizado e com fundamento na verdade ajuda a extirpar dúvidas, mentiras bem construídas e julgamentos fundados em publicidade enganosa.
Importante lembrar que o juiz, ao proferir sua decisão, levará em conta o conjunto de provas efetivas, sem se deixar afetar ou influenciar por acusações que misturam Direito, irritações pessoais e vaidades, ou ameaças de baixo nível, como a de poder atirar flechadas em qualquer pessoa.
O inquérito policial e a ação penal, enfim, não terão o desfecho desejado pelo Estado se não estiverem fundamentados na verdade das provas – e não em impressões, variáveis entre as pessoas (os romanos diziam que duas pessoas não veem a mesma coisa).
Ao concluir o silogismo jurídico, para aplicar a lei e o Direito, o juiz não deverá impressionar-se com as paixões refletidas nos autos. Ele terá sempre em mente que a Constituição federal, ao estabelecer os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, não permite que sem a contrariedade da defesa as provas se mostrem suficientes para condenar o acusado.
Isso dá bem uma ideia de quão longo será o tempo necessário para que os políticos enfeixados por Rodrigo Janot na denúncia do “quadrilhão” façam suas respectivas defesas. À luz da lei e do Direito, poderá haver condenação, mas levará o tempo necessário para o exercício de defesa de cada um dos denunciados.
Se a estratégia do homem das flechadas era colocar o presidente da República, Michel Temer, atrás das grades, como se fosse um feito pessoal seu, é possível que tenha falhado ao incluir outros réus na denúncia, porque tal estratégia amplia em muito o prazo para as defesas. Isso equivale a dizer que Michel Temer poderá ser condenado se as provas o justificarem, mas isso talvez só venha a ser feito quando ele estiver com mais de 80 anos à época da decisão final.
Importante é repetir que qualquer inquérito judicial, e não somente esse que envolve o presidente da República, deve ser realizado com extrema discrição, evitando-se o alarido ou a divulgação de seu conteúdo, porque se corre o risco de tornar irreversíveis os danos, mesmo no caso de uma eventual condenação.
O Direito brasileiro não acolhe a tese da pena perpétua, por isso não se deve perder de vista que algumas acusações tornadas públicas antes do exercício de plena defesa afetam de tal forma a imagem do acusado que dela nunca mais se livrará. Por isso soa como uma condenação para sempre.
Talvez esteja na hora de começarmos a dizer, além de “fora Lula” e “fora Temer”, um outro “fora”: o fora à idolatria aos holofotes. Os inquéritos, repita-se mais uma vez, são dirigidos aos juízes e tribunais, e não às televisões, jornais e rádios. Conduta inversa apenas debilita o Estado.
Aloísio de Toledo César é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo e foi secretário de Justiça do Estado de São Paulo.