Supremo precisa mudar sua forma tradicional de funcionamento, diz Dallari
A vox populi, a vontade popular ou o entendimento da população a respeito de assuntos referentes a interesses públicos é manifestada, atualmente, por meio das redes sociais. Com enorme frequência, nelas se encontram críticas ao Poder Judiciário e, muito especialmente, ao Supremo Tribunal Federal. Algumas, poucas, são análises sérias sobre as deficiências do aparelhamento judicial; outras, as mais numerosas, são feitas por meio de charges ou piadas ridicularizando todo esse universo. Isso é um sintoma muito expressivo, que merece atenção.
Essas críticas mais contundentes, embora, pelo humor, possam trazer alguma descontração, são muito contristadoras para todos os profissionais do Direito, seja qual for sua área de atuação. Porém, elas são bem mais deploráveis para os cientistas do Direito, aqueles que, dentro ou fora dos ambientes universitários, se preocupam com os meios e modos de realização dos ideais de democracia e Justiça, na medida em que atingem a cúpula da estrutura judicial e um dos alicerces do Estado Democrático de Direito.
O foco deste artigo não está na descrição do funcionamento, altamente deficiente, do Supremo Tribunal Federal. Não se cuidará de examinar o comportamento deste ou daquele ministro, muito embora haja uma sensível diferença na maneira de ser e de agir de cada um deles, sendo absolutamente inegável a motivação política, e até pessoal, em inúmeras decisões monocráticas. Também não haverá aqui considerações sobre o comportamento do conjunto, muito embora, possa parecer, para o cidadão comum, que o STF funciona nas horas vagas, tal o número de ausências de ministros em decorrência de viagens de todo tipo. O comparecimento às sessões de julgamento deveria ser um compromisso prioritário para cada ministro. A preocupação central, neste artigo, estará na produtividade do órgão no tocante à sua razão de ser: a prestação jurisdicional.
Como a análise será baseada na Constituição Federal, ou, mais exatamente, em princípios da CF, é mais do que oportuna a transcrição da noção de princípio constitucional, e de sua elevada positividade, feita pela ministra presidente do STF, Cármem Lúcia: “Os princípios constitucionais são os conteúdos primários diretores do sistema jurídico normativo fundamental de um Estado. Dotados de originalidade e superioridade material sobre todos os conteúdos que formam o ordenamento constitucional, os valores firmados pela sociedade são transformados pelo Direito em princípios”. “Princípios jurídicos constitucionais não se propõem; proclamam-se. Não se cuida de propostas. São opções constituintes projetadas no sistema constitucional expressa ou implicitamente. E são eles as opções identificadoras das raízes do sistema constitucional” (CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, Princípios Constitucionais da Administração Pública, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1994, p. 25). Em síntese, princípios não são declarações românticas; são mandamentos de excepcional hierarquia e, consequentemente, de especial observância.
Para os fins deste estudo, merecem destaques três princípios contemplados no artigo 5º da CF: a afirmação de que “todos são iguais perante a lei”; a garantia do “devido processo legal”, e, no inciso LXXVIII, uma espécie de síntese de ambos — “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Quanto ao primeiro, desde os filósofos gregos já se sabe que a verdadeira igualdade consiste em tratar diferentemente os desiguais, na medida de sua desigualdade. O segundo qualifica o processo legal como “devido”, ou seja, adequado, apto a produzir resultados. E o terceiro afirma que os processos devem ter duração razoável, para que possam dar efetividade à prestação jurisdicional, com as nuances necessárias a que se promova a verdadeira igualdade.
O desencanto popular generalizado em relação ao STF tem muitos motivos, mas há um tema no qual a indignação do povo chega ao extremo, qual seja, o da suprema inoperância com relação aos crimes cometidos pelos detentores de foro especial por prerrogativa de função, que, na prática, acabou se tornando em verdadeiro foro privilegiado, com uma implícita garantia de impunidade. Já tivemos oportunidade de discorrer sobre esse tema em artigo publicado nesta coluna, com o significativo título de Foro por prerrogativa de função — na prática a teoria é outra. Deixamos claro que os agentes públicos, no exercício de sua funções, devem tomar decisões que, muitas vezes, são incompreendidas e ensejam que contra elas sejam intentadas ações judiciais. “Assim, diante da maior vulnerabilidade de quem exerce, legitimamente, o poder/dever de decidir, é compreensível a existência de uma proteção especial no tocante a decisões ou atitudes tomadas no exercício da função pública, ou, mais exatamente, à prática de atos de ofício. Portanto, não haveria violação ao princípio constitucional da igualdade se um número restrito de autoridades, da mais alta hierarquia, fosse contemplada com o foro especial por prerrogativa de função.” Aplicado, nos seus devidos limites, o foro especial seria uma forma de compensar as diferenças entre autoridades públicas e cidadão, restaurando a igualdade.
No presente momento, já decidiu a maioria dos ministros do STF que esse tratamento diferenciado não é uma prerrogativa pessoal da autoridade, mas, sim, uma decorrência de sua atuação nessa qualidade, na prática, exclusivamente, de atos de ofício, sem abranger atuações e comportamentos pessoais, totalmente desvinculados do munus público. A votação foi interrompida exatamente por um pedido de vista clamorosamente político. Não é possível imaginar que, em questão de tamanha relevância, o ministro que pediu vista tenha tomado essa atitude para estudar o assunto. É gritantemente óbvio que tal assunto já vinha sendo objeto de preocupação desde muito tempo, sendo impossível acreditar que o ministro teve sua atenção despertada apenas na sessão de julgamento, que foi por ele interrompida. Esse é só um exemplo dentre muitos outros que poderiam ser lembrados. O pedido de vista, que pode ser muito importante, na prática tem servido, principalmente, para desviar o curso do processo.
Neste passo, seja permitido lembrar mais um princípio constitucional, que tem pertinência com a prática da protelação. A CF, em seu artigo 37, entre os vários princípios da administração pública, menciona, expressamente, o princípio da eficiência, que foi acrescentado ao texto original como um marco da substituição do modelo burocrático pelo modelo gerencial, no qual o foco principal está na produção de resultados, conforme este pequeno escolho doutrinário: “Podemos dizer, então, que o princípio da eficiência alia preocupação com correto emprego de recursos públicos, em busca de efetividade e celeridade, devendo o administrador público focar sua atenção nos resultados” (CRISTIANA FORTINI, Consórcios públicos, contratos de programa e a Lei de Saneamento, in Saneamento Básico – Estudos e pareceres à luz da Lei nº 11.445/2007. Organizadoras: Juliana Picinin e Cristiana Fortini, Editora Fórum, Belo Horizonte, 2009, p. 139)
Embora a CF se refira à máquina administrativa, à eficiência do aparelho do estado, é certo que a abrangência é muito maior. Toda atividade tipicamente administrativa é instrumental, movida para produzir resultados. O que se deseja com o princípio da eficiência é que o aparelhamento seja mais ágil, para que os fins sejam atingidos com maior celeridade. Isso, sem dúvida alguma, se aplica ao STF: esse tribunal tem que melhorar seu funcionamento, para que possa cumprir os princípios inicialmente invocados, produzindo a decisão que dele se espera. Isso é perfeitamente possível, desde que haja vontade dos ministros.
No caso das decisões monocráticas heterodoxas ou conflitantes, nada impede e tudo recomenda que cada um procure seguir a orientação predominante no tribunal, ou que, no mínimo, faça consultas informais a seus pares, em busca de uma solução pelo menos aceitável para todos. Em qualquer caso, especialmente nas sessões transmitidas pela TV, não custaria nada a cada ministro fazer uso de sua capacidade de síntese, com menos erudição e mais objetividade. Os pedidos de vista podem e devem voltar a cumprir sua função primordial e, muito especialmente, devem observar os prazos previstos nas normas processuais. Mas o que nos parece mais relevante é uma hierarquização dos feitos, conforme a matéria e conforme as possíveis repercussões.
Existem matérias de interesse pessoal do interessado, com pouca repercussão externa. Existem outras matérias que afetam interesses da coletividade, com acentuada repercussão social. Mas existem assuntos, e aqui se coloca a questão dos julgamentos dos detentores de foro privilegiado, que afetam o funcionamento das instituições, a probidade na conduta das autoridades públicas, o sistema representativo e o equilíbrio entre poderes. Todos os casos são importantes, e a prestação deve ser assegurada a todos, mas dar igual tratamento a situações completamente diferentes é prestigiar a desigualdade.
No caso específico dos acusados detentores de foro especial, cabe ao Supremo, para recuperar um pouco de seu perdido prestígio e diminuir as terríveis críticas que desmoralizam a corte, fazer um esforço para dar uma resposta à sociedade ou, pelo menos, para evidenciar que não é cúmplice dos acusados. É fato que o STF está assoberbado, em decorrência do texto constitucional analítico, mas, exatamente por essa razão, deve mudar sua forma tradicional de funcionamento. Não basta publicar estatísticas mostrando o volume de trabalho como justificativa para a paquidérmica lentidão. É preciso, sim, buscar formas mais ágeis de funcionamento para compensar a sobrecarga. Pedindo desculpas pelo lugar comum: não é possível atingir melhores resultados fazendo sempre as mesmas coisas.
Adilson Abreu Dallari é professor titular de Direito Administrativo pela PUC-SP e Consultor Jurídico.