FREUD E A RELIGIÃO
Autor: Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS.
Em 1927, Sigmund Freud, já reconhecido como o médico que introduzira a psicanálise para tratar de algumas doenças de fundo psíquico, escreveu um pequeno livro intitulado “O Futuro de uma Ilusão”, trazendo reflexões sobre a questão religiosa, e submetendo-a a uma análise até então simplesmente inimaginável.[1]
Talvez para deixar o texto com uma forma mais dinâmica, utilizou-se, muita vez, do que ele chamou de um “oponente oculto que segue meus argumentos com desconfiança”, cedendo-lhe “a palavra de quando em quando.” Note-se que ele já havia “inventado” essa “estratégia” de se valer de um interlocutor fictício quando antes escreveu, em 1926, um trabalho sobre “A questão da Análise Leiga: Diálogo com um Interlocutor Imparcial.”[2]
Como o título do trabalho não deixa dúvidas, a religião é tratada como uma ilusão, algo que o homem busca para explicar o que a ciência ainda não pode nos oferecer como resposta. Esta, a ciência, longe de ser uma ilusão e muito ao contrário, seria a única fonte para decifrar os enigmas da humanidade.
Freud, agnóstico como se vê, estabelece quatro “bens” – digamos assim – de natureza psíquica que devem ser considerados na avaliação de uma civilização (ou cultura)[3], sendo a primeira “o nível moral dos seus participantes.”[4]
Depois, teríamos o “seu patrimônio de ideais”[5] e as “criações artísticas” com “as satisfações que podem ser obtidas de ambos.” Após identificar estes três primeiros componentes, menciona, então, o autor aquele que “talvez seja o mais importante elemento do inventário psíquico de uma cultura: suas ideias religiosas no mais amplo sentido”, ou seja, “suas ilusões.” Daí ele pergunta bem objetivamente: “Em que reside o valor especial das ideias religiosas?”
Para começar a responder a sua própria indagação, Freud lembra que os desejos instintuais do homem, já sentidos a partir da infância – que vão desde o incesto até o desejo de matar -, são reprimidos ora por uma coação externa (a cultura ou a civilização), ora pelo próprio homem que a internaliza, fortalecendo o que ele chama de Super-eu.
Com efeito, o viver em uma civilização exige do homem (e da mulher, por óbvio!) que renuncie a uma gama enorme de desejos instintuais, razão pela qual, por exemplo, não pode ele (nem ela tampouco), “escolher como objeto sexual toda mulher que lhe agradasse” (ou todo homem), matar “tranquilamente seu rival” ou “tomar qualquer dos bens do outro sem necessidade de permissão.” Se o pudesse “que beleza seria então a vida, que sequência de satisfações!”
Evidentemente isso não é possível (seja pela coação externa, seja pela internalização da proibição), pois do contrário, tendo cada um os mesmos e todos os desejos, “no fundo, portanto, apenas um indivíduo teria felicidade irrestrita, eliminando-se as restrições culturais.” Em suma, venceria o mais forte, ao final e ao cabo.
Portanto, “foi precisamente por causa desses perigos com que nos ameaça a natureza que nos juntamos e criamos a cultura,[6] que se destina, entre outras coisas, a tornar possível nossa vida em comum”, de uma tal maneira que ele chega a afirmar ser “a principal tarefa da cultura, sua autêntica razão de ser, defender-nos contra a natureza.”
Mas, nesta tarefa de dominação da natureza pela cultura, não é de se esperar que aquela seja “dominada” por esta. Pensar assim, além de um verdadeiro engano, seria mesmo uma “audácia esperar que algum dia ela (a natureza) se sujeite inteiramente ao ser humano.” Assim, os terremotos, tsunamis, tornados, furacões, maremotos, as inundações, avalanchas, as doenças incuráveis e, por fim, a morte (esse “doloroso enigma para o qual até agora não se achou e provavelmente não se achará remédio”), levantam-se todos contra a humanidade, fazendo-nos recordar “nossa fraqueza e desvalia, que pensávamos haver superado mediante o trabalho da civilização.”[7]
Ora, se para a humanidade em geral é difícil conviver com tais e inevitáveis vicissitudes, também o é, naturalmente, para o ser humano, considerado individualmente. Diz Freud neste contexto: “também para o indivíduo é difícil suportar a existência”, sobretudo em razão “dos golpes que recebe da natureza indomada – por ele chamados ´destino`.” Indaga, então: “como se defende ele dos poderes superiores da natureza, do destino, que o ameaçam como todos os demais?”
Esse desamparo no qual se encontra o indivíduo possui um equivalente em sua infância: “Quando pequeno, perante o pai e a mãe, que ele tinha razões para temer, sobretudo o pai, cuja proteção, porém, também estava seguro de ter, ante os perigos que então conhecia.” A situação, portanto, longe de ser nova, “tem um modelo infantil; é, na realidade, apenas a continuação daquela anterior.” Assim, igualmente, o ser humano dá às forças naturais “um caráter paterno, transforma-as em deuses, e nisso segue um modelo não apenas infantil, mas também filogenético.” Portanto, o desamparo no qual se vê enredado o ser humano faz-lhe ansiar o pai (que ele, em uma incrível ambivalência de sentimentos, teme e admira) e os deuses.[8]
Destarte, na falta do pai, restam para os homens o acolhimento pelos deuses, que desempenharam, por sua vez, três tarefas básicas, a saber: “(1) afastar os terrores da natureza, (2) conciliar os homens com a crueldade do destino, tal como ela se evidencia na morte, sobretudo, e (3) compensá-los pelos sofrimentos e privações que lhe são impostos pela vida civilizada que partilham.”
Ocorre que os deuses não dão conta das duas iniciais funções, primeiro porque “os fenômenos naturais se desenvolvem por si, conforme necessidades internas; certamente são os deuses os senhores da natureza, eles a dispuseram assim, e agora podem abandoná-la a si mesma” – salvo os “milagres”; segundo porque, “no que concerne à distribuição dos destinos, persiste a desagradável suspeita de que a perplexidade e o desamparo humanos não podem ser remediados. É nisso, antes de tudo, que os deuses fracassam.”
Assim, resta aos deuses, na tarefa de amparar os seus filhos, apenas a terceira função: “compensá-los pelos sofrimentos e privações que lhe são impostos pela vida civilizada que partilham”, criando-se, então, “um acervo de concepções, nascido da necessidade de fazer suportável o desvalimento humano, e construído com o material das lembranças da infância do indivíduo e da raça humana.”
Logo, conclui-se “que cada um de nós é velado por uma Providência bondosa, só aparentemente severa, que não permite que nos tornemos joguete de forças naturais poderosas e implacáveis. A própria morte não é aniquilação, retorno à inorgânica ausência de vida, mas sim o começo de uma nova espécie de existência que se acha no caminho para um desenvolvimento superior.”
Com o tempo – e após, “naturalmente uma longa evolução” -, os “seres divinos” concentraram-se em um “ser divino único”, pondo “à mostra o pai que desde sempre se ocultara, como um núcleo, em cada figura divina. Isso foi, no fundo, um retorno aos começos históricos da ideia de Deus. Agora que Deus era único, as relações com ele podiam reaver a intimidade e intensidade dos laços infantis com o pai. Mas, se fez tanto pelo pai, esse povo também quis ser recompensado, quis ser o único filho amado, o Povo Eleito”, protegido, agora e finalmente, “do opressivo poder superior da natureza.”
Então, eis o que se dá, resumindo: “quando o indivíduo em crescimento percebe que está destinado a permanecer uma criança, que nunca pode prescindir da proteção contra superiores poderes desconhecidos, empresta a esses poderes os traços da figura paterna, cria os deuses que passa a temer, que procura cativar e aos quais, no entanto, confia sua proteção.”
A questão agora é estabelecer, sob a ótica da “psicologia profunda”, (1) o que são exatamente tais concepções religiosas – no seu sentido mais amplo –, e (2) o seu respectivo valor. Dessa tarefa desincumbe-se bem, a meu ver, o autor, valendo-se ele, para evitar um “monólogo”, de um oponente fictício, um interlocutor imaginário que serve para contra argumentar o próprio Freud que, de quando em vez, “cede-lhe” a palavra.[9]
Diz Freud, então, que a ideia religiosa trata-se de “ensinamentos, enunciados sobre fatos e condições da realidade externa (ou interna) que dizem algo que a pessoa não descobriu por si e que exigem a crença.” Eis, portanto, o que são; por outro lado, como estes sentimentos religiosos (a expressão é minha) informam-nos “acerca do que é mais importante na vida, são altamente valorizadas.” Aqui reside o seu valor.
Respondidas as duas perguntas, Freud volta a indagar: (1) “Em que consiste a força interna das doutrinas (ou ideias religiosas) e (2) a que devem sua eficácia, que independem da aceitação racional?”
A resposta para ambas as perguntas “surge quando consideramos a gênese psíquica das ideias religiosas.” Como tais doutrinas não são frutos de qualquer comprovação empírica, tampouco se originam da experiência concreta do ser humano, conclui-se, na verdade, que são pura ilusão!, “realizações dos mais antigos, mais fortes e prementes desejos da humanidade; o segredo de sua força é a força desses desejos.”
Serve a religião, portanto, para responder ao ser humano (desamparado como está, sem o pai) acerca dos “enigmas da humana ânsia de saber, como o da origem do mundo ou da relação entre o físico e o psíquico.” Todos os conflitos oriundos desde sempre (a partir do nascimento) e surgidos a partir “do complexo paterno (e nunca inteiramente superados), são tirados e levados a uma solução aceita por todos”, justamente a religião. Trata-se, portanto, ao menos do ponto de vista de sua natureza psicológica, de uma grande ilusão.
Neste momento do trabalho, Freud adverte que não se trata de um erro a admissão da religião, mas, repete, de uma ilusão. São coisas diversas, pois “uma ilusão não é idêntica a um erro, tampouco é necessariamente um erro”, exemplificando com o equívoco histórico de Aristóteles quando afirmou “que os vermes nascem da sujeira – partilhado ainda hoje pelo povo ignorante.” Já Colombo, ao contrário, não cometeu um erro ao “achar que havia descoberto um novo caminho marítimo para a Índia.” Iludiu-se!, pois, neste caso, havia um componente inexistente no erro: “a participação de seu desejo.” A ilusão, necessariamente, “deriva de desejos humanos”, razão pela qual “nesse aspecto aproxima-se do delírio psiquiátrico.” Deste, porém, distancia-se pelo fato de que, enquanto no delírio há sempre uma “contradição com a realidade; a ilusão não tem de ser necessariamente falsa, isto é, irrealizável ou contrária à realidade.”
Exemplificando: é uma ilusão uma menina, ainda adolescente, acreditar que um príncipe virá buscá-la, pois se trata de algo, em tese, ainda possível, realizável. Coisa completamente diferente, diz Freud, é crer “que venha o Messias e dê início a uma nova Idade do Ouro.”
Como outro exemplo de ilusão que poderia se tornar realidade cita Freud o caso dos alquimistas que tinham a ilusão, derivada do desejo de possuir o metal mais nobre, de poder transformar qualquer metal em ouro. Hoje, como se sabe, e Freud já o sabia desde então, “já não se vê como impossível a transformação dos metais em ouro.”[10] Destarte, há uma ideia ilusória “quando em sua motivação prevalece a realização de desejo”, dispensando, por conseguinte, qualquer comprovação.
Por outro lado, nada obstante uns “poucos enigmas do mundo”, a ciência, a pesquisa científica ainda “é a única via para o conhecimento da realidade exterior.” Vê-se que Freud era um psicanalista agnóstico. Para ele, ao contrário da religião, “a ciência já nos provou, por meio de numerosos e importantes êxitos, que não é uma ilusão”, razão pela qual “tem muitos inimigos declarados (e inúmeros outros disfarçados) entre aqueles que não lhe perdoam haver debilitado a fé religiosa e ameaçar destroná-la.”
Em um determinado momento do texto, aquele oponente oculto de que falei, contrapondo-se às ideias psicanalíticas de Freud, afirma que eram “inumeráveis as pessoas que tinham nas doutrinas religiosas o seu único consolo, apenas com o auxílio delas podem suportar a vida.”
Após admitir que, efetivamente, “a religião prestou grande serviço à cultura humana, contribuiu muito para domar os instintos associais, embora não o bastante”, seria “duvidoso que na época do domínio inconteste das doutrinas religiosas os seres humanos fossem, em geral, mais felizes do que hoje; mais morais eles certamente não eram. Sempre souberam como banalizar os preceitos religiosos, fazendo assim malograr seus propósitos. Os sacerdotes, que deviam zelar pela obediência à religião, eram complacentes com eles.”
Era simples assim: “as pessoas pecavam e depois faziam sacrifícios ou penitências, ficando livres para novamente pecar.” Evidentemente que para sujeitarem o povo à religião os sacerdotes faziam “essas grandes concessões à natureza instintual humana.” Perdoavam os pecados em nome de Deus!
Freud replica ao seu interlocutor imaginário, indagando-lhe se não superestimavam “a necessidade da religião para a humanidade e se agiam sabiamente ao nela basear nossas exigências culturais”, pois “em todas as épocas, a imoralidade não encontrou menos apoio na religião do que a moralidade.”
Além de uma ilusão, Freud vai mais além, identificando a religião como uma “neurose obsessiva universal da humanidade, originando-se, tal como a da criança, do complexo de Édipo, da relação com o pai”, fazendo uma analogia (conforme suas palavras mesmas) com a fase da neurose infantil, “ora mais, ora menos nítida, vindo do fato de a criança não poder suprimir com o trabalho intelectual racional muitas das suas exigências instintuais”, precisando reprimi-las, pois, como já o dissera em outra oportunidade, o Eu da criança é fraco. Óbvio que “a maioria dessas neuroses infantis é superada espontaneamente ao longo do crescimento” ou, mais tarde, pela terapia psicanalítica.
Esta semelhança com a neurose da criança explicaria, segundo Freud, o porquê do fato “de o crente religioso estar altamente protegido de certas enfermidades neuróticas; a adoção da neurose geral o dispensa da tarefa de desenvolver uma neurose pessoal.” Conclui, por fim, que seria (ou é, digo eu) uma ilusão acreditar que se pode “obter de outras fontes aquilo que a ciência não pode nos dar”, ao menos por enquanto, óbvio…
Afinal de contas, como escreveu Heinrich Heine, “o céu deixaremos para os anjos e os pardais.”[11]