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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

“Os direitos sociais são socialistas” e outros 6 equívocos do Estado Social, por Catarina Santos Botelho

  

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA

Os direitos sociais são socialistas” e outros 6 equívocos do Estado Social

·         Catarina Santos Botelho

10/3/2018

O conceito de Estado social não deve ser refém de nenhuma conceção político-ideológica. Em especial, importa não cair na tentação de associar direitos sociais a direitos socialistas.

Constituição da República Portuguesa de 1976 contém o maior catálogo de direitos sociais da União Europeia e um dos mais extensos do mundo. Para além dos artigos 58.º a 79.º da Constituição, especificamente consagrados aos direitos sociais, nos artigos 53.º a 57.º encontramos diversos direitos que, noutras constituições, surgem elencados como direitos sociais (v.g., direito à segurança no emprego, comissões de trabalhadores, liberdade sindical). Quer isto então dizer que o nosso catálogo de direitos sociais é prolixo e generoso.

Os direitos sociais procuram não apenas universalizar o acesso ao bem-estar (saúde, educação, habitação, segurança social, etc.) como também colmatar possíveis insuficiências destes bens ao nível da oferta privada. Vários anos de reflexão sobre o Estado social permitiram-me identificar alguns equívocos e lugares-comuns, que tentarei desvendar:

1.º Equívoco: Estado social é sinónimo de Estado-providência

Foi na primeira metade do século XX que vingou a constitucionalização do bem–estar, tanto na Constituição mexicana (1917) e na Constituição da República de Weimar (1919), como também, por influência destas, nas Constituições grega (1927), espanhola (1931) e portuguesa (1933). Contudo, a génese histórica dos direitos sociais remonta aos movimentos liberais (século XVIII), cujas raízes ideológicas se alicerçaram, por sua vez, nas reflexões filosóficas de Thomas More, Hegel, Tocqueville, e dos seus seguidores.

O conceito de “Estado social de direito”, de cariz normativo e que constitucionaliza as obrigações do Estado em matéria de política social e económica, não é sinónimo de “Estado-providência” (Welfare State), que diz respeito a determinados momentos histórico-políticos de uma sociedade (tal como o New Deal, nos EUA).

Um Estado social pode acolher direitos sociais na sua Constituição (como fazem Itália, Portugal ou Brasil), ou na legislação infraconstitucional (como sucede na Áustria ou na Bélgica). Já nos EUA e na Alemanha, os direitos sociais não estão consagrados na Constituição federal, mas encontram acolhimento em algumas constituições de certos Estados federados (v.g., na Alemanha, a Constituição da Baviera ou de Brandeburgo).

2.º Equívoco: Os direitos sociais são socialistas

Nos trabalhos preparatórios da atual Constituição portuguesa, o Partido Comunista Português defendeu uma ligação umbilical entre os direitos sociais e o socialismo (Diário da Assembleia Constituinte, n.º 44, pág. 1257, e n.º 46, pág. 1321). Em abono da verdade, porém, uma análise de Direito Constitucional Comparado elucida-nos que o apelo ao Estado social (e, mais concretamente, aos direitos sociais) foi utilizado como bandeira política de uma miríade de ideologias, sejam elas socialistas, utilitaristas, nacionalistas, progressistas, conservadoras ou de inspiração social cristã, liberais progressistas e até neocapitalistas.

É relevante sublinhar que o conceito de Estado social não deve ser refémde nenhuma conceção político-ideológica. Em especial, importa não cair na tentação de associar direitos sociais a direitos socialistas, tal como fez Carl Schmitt, no século passado, na sua obra Verfassungslehre.

Para a confusão semântica entre direitos “sociais” e “socialismo” contribuiu certamente o forte pendor marxista-leninista da versão originária da Constituição. As revisões de 1982 e 1989, ao depurarem o texto constitucional das narrativas socializantes, ao extinguirem o Conselho de Revolução e criarem o Tribunal Constitucional, metamorfosearam a Constituição num quasi-“desmembramento constitucional” (para emprestar a expressão de Richard Albert). Em todo o caso, o facto de o Preâmbulo Constitucional ter permanecido incólume – e insistir na expressão “abrir caminho para uma sociedade socialista” – coloca pertinentes indagações de um genuíno pluralismo democrático.

A única forma que se me afigura viável de compatibilizar o Preâmbulo da nossa Constituição com os ditames de uma democracia constitucional, arejada e aberta a todas as ideologias políticas, é perspetivá-lo como uma exortação histórica e literária – um preâmbulo “simbólico-cerimonial” (Liav Orgad). Assim, caso se entenda, como faz alguma doutrina, que o Preâmbulo tem idêntico valor ao restante articulado constitucional, então será necessário revê-lo.

Rever o Preâmbulo não significa, a meu ver, suprimi-lo, porquanto tem relevância como marco comemorativo do final de quase cinco décadas da ditadura do Estado-Novo. Não obstante e para eliminar equívocos, a expressão “abrir caminho para uma sociedade socialista” poderia simplesmente ser alterada por “abrir caminho para uma sociedade solidária”.

3.º Equívoco: Os direitos sociais são menos importantes do que os direitos de liberdade

Na Constituição portuguesa, os direitos fundamentais dividem-se em direitos de liberdade (exemplo, liberdade de expressão ou direito à autodeterminação pessoal) e em direitos sociais (exemplo, direito à saúde ou à segurança social). É importante ressalvar que os direitos sociais são direitos fundamentais, não são menos importantes que os “outros”, nem hierarquicamente inferiores. No entanto, em razão da sua baixa densidade normativa (indeterminação do seu conteúdo), a Constituição optou por não equiparar automaticamente o seu regime ao regime dos direitos de liberdade (artigos 17.º e 18.º).

A opção de separar os direitos de liberdade dos direitos sociais não é inovadora. De facto, esta sistematização teve acolhimento na maioria dos textos constitucionais do pós-Guerra e na legislação internacional. A título exemplificativo, basta contrapor a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, protegida pela jurisdição do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) e aquela que já denominei de “patinho feio do Conselho da Europa” — a Carta Social Europeia – cuja monitorização é levada a cabo pelo Comité Europeu dos Direitos Sociais, órgão que não possui o mesmo impacto persuasivo, nem as mesmas competências do TEDH.

4.º Equívoco: Os direitos sociais são onerosos e os direitos de liberdade são gratuitos

É incontornável reconhecer que a proteção dos direitos sociais é custosa e tem sérias implicações no Orçamento de Estado. Todavia, todos os direitos fundamentais (de liberdade ou sociais) implicam custos para um Estado.

O que sucede é que os custos dos direitos de liberdade estão de tal forma entranhados na mentalidade dos nossos dias, que os encaramos como custos “normais” da democracia constitucional: eleições e financiamento dos partidos, sistema de justiça, segurança, etc. Já os direitos sociais são, por alguns, considerados um exclusivo das sociedades mais desenvolvidas ou um “luxo” dos Estados ricos.

5.º Equívoco: Está proibido constitucionalmente o retrocesso social    

É possível ao legislador voltar atrás em matéria social? Na minha opinião, a proibição do retrocesso social poderá operar como mote de luta política, mas não constitui um princípio jurídico-constitucional autónomo. Aceitar a proibição total do retrocesso social significaria limitar a liberdade do legislador e a alternância democrática, manietando o atual legislador/geração às escolhas dos legisladores/gerações antecedentes.

Ora, perante recursos financeiros limitados e orçamentos apertados, o legislador democraticamente legitimado deve ser livre para reformar o Estado social, de uma forma mais ou menos (des)centralizada ou com maior ou menor dirigismo estatal. O que o legislador não poderá nunca fazer é agredir o conteúdo essencial dos direitos sociais (como sucederia se, por exemplo, suprimisse o Serviço Nacional de Saúde ou abolisse o ensino básico universal, obrigatório e gratuito).

Se não existe o princípio da proibição do retrocesso enquanto princípio autónomo, poder-se-á questionar como se protegerão os cidadãos relativamente a restrições (“cortes”) em matéria de direitos sociais. A meu ver, a solução de compromisso entre os direitos sociais adquiridos e a liberdade do legislador democrático estará na justa ponderação dos seguintes princípios e interesses constitucionais: proteção da confiança, proporcionalidade, igualdade, reserva do possível, mínimo para uma existência condigna, e justiça intergeracional.

6.º Equívoco: Não há direitos sociais em tempos de crise

É inegável que um contexto económico-político de crise coloca sérios entraves à promoção de todos direitos fundamentais, muito particularmente dos direitos sociais com forte incidência prestacional (previdência, saúde, educação, entre outros). Quando se tratou de fiscalizar a compatibilidade das medidas de austeridade (Troika: 2011-2014) com o Estado Social, muitos prognosticaram um Tribunal Constitucional deferente para com o legislador.

No entanto, o Tribunal Constitucional português foi considerado, tanto no plano nacional como pela doutrina estrangeira, como “um dos tribunais mais ativos” da Europa (Andreas Dimopoulos, L. Gordillo Pérez, entre outros). A denominada “jurisprudência da crise” veio também desmistificar a ideia da politização dos juízes do Tribunal Constitucional.

7.º Equívoco: Só há efetivação de direitos sociais com tribunais ativistas

A proteção dos direitos sociais não depende apenas do acolhimento que estes encontrem nos tribunais, sendo, pelo contrário, uma responsabilidade partilhada. Numa democracia participativa, são vários os promotores dos direitos sociais, a saber: o legislador, os tribunais (ordinários e o Tribunal Constitucional), a Administração Pública, a Provedoria de Justiça, o Conselho Económico e Social, e até a própria sociedade civil.

Como já escrevi, os direitos sociais são cruciais no constitucionalismo contemporâneo, “não porque deva necessariamente existir um Estado assistencialista, não por razões paternalistas, mas porque estes são inerentes à lógica comunitária (…) são direitos endógenos à condição de cidadão. (…) O homem não vive isolado, mas em comunidade e em constante interação. Se a comunidade não o deve absorver, cerceando a sua individualidade ou funcionalizando-o, também é certo que a condição de cidadão implica a partilha de responsabilidades sociais (contrato ético de cidadania)”.

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Professora de Direito Constitucional na Universidade Católica Portuguesa.

Membro do Conselho de Coordenação da Academic Network on the European Social Charter and Social Rights (ANESC).