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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Voltando a Keynes, artigo de Vitor Bento

 Voltando a Keynes

Não é verdade que Keynes fosse inflacionista. No seu plano financeiro para a II Guerra Mundial, por exemplo, advertiu que "a inflação… será claramente vantajosa para a classe mais rica" e "será mais onerosa para os rendimentos mais baixos"

06 DE ABRIL DE 2018

Vítor Bento

 

Outro seu contributo muito importante foi o reconhecimento de que os desequilíbrios de balança de pagamentos, défices e excedentes são ambos desequilíbrios económicos, e por isso, sobretudo em sistemas de câmbios fixos, a sua correção é responsabilidade comum de ambos os lados, sob pena de todo o processo ser enviezadamente deflacionário e desnecessariamente recessivo (como mostrou o padrão ouro e a crise do euro).

Este contributo não entrou na corrente dominante do pensamento económico porque os dois lados do problema – credores e devedores – têm um enorme desequilíbrio de poder, em favor dos primeiros, pelo que, sem arbitragem supranacional, o ajustamento acaba por se tornar "compulsório para os devedores e voluntário para os credores". Os devedores são forçados a ajustar porque os défices precisam de financiamento, e este, a dado momento de acumulação de dívidas, é-lhes recusado pelos credores. Estes, porém, não têm nada que os force a fazer a sua parte do ajustamento, sobretudo quando os devedores são coagidos a agir primeiro, prevenindo, dessa forma, a única pressão eficaz sobre os credores, que seria o default.

Este desequilíbrio de poderes desagua numa narrativa pretensamente "moralista" dos desequilíbrios: défices são mau comportamento e excedentes são, quando muito, excesso de virtude. Só que tal narrativa é moralmente (sim, moralmente!) errada, porque os dois lados do problema são "desvios comportamentais" (e já Aristóteles ensinava que o excesso de virtude é vício, princípio de que deriva o ditado "no meio é que está a virtude"). Os excedentes são tão prejudiciais ao equilíbrio económico quanto os défices, pois drenam procura do sistema que, se não for compensada pelo excesso de procura dos deficitários, causa recessão no sistema.

Num sistema de câmbios fixos, o ajustamento deverá ser feito por desvalorizações internas (reduções salariais, para simplificar) do lado deficitário e revalorizações internas (efeito simétrico) do lado excedentário. As primeiras provocam deflação e as segundas potenciam inflação. A recusa da segunda consequência leva a que o ajustamento feito unilateralmente apenas do lado dos deficitários provoque custos sociais mais elevados, mesmo ao nível sistémico (e não apenas nos devedores).

Provoca custos mais elevados porque, como referi no artigo anterior, os salários nominais têm uma grande resistência à baixa, e requerem grandes recessões (e o consequente exagero do desemprego) para produzirem o ajustamento necessário ao reequilíbrio. O resultado é uma exagerada deflação, e consequente espiral recessiva, que acaba por se transmitir aos países excedentários, gerando perdas de bem-estar absolutas em todo o sistema (como se viu na recente crise do euro). Por isso, "o credor não deve poder ficar passivo", caso em que "uma tarefa intoleravelmente pesada será colocada ao país devedor, que já se encontra … na posição mais fraca".

E não é verdade que Keynes fosse inflacionista. No seu plano financeiro para a II Guerra Mundial, por exemplo, advertiu que "a inflação… será claramente vantajosa para a classe mais rica" e "será mais onerosa para os rendimentos mais baixos". E, noutra ocasião, escreveu que "não há forma mais subtil, nem mais segura, de minar as bases da sociedade do que debochar a sua moeda".

Mas tinha também consciência de que a deflação tem custos sociais mais elevados e é mais difícil de reverter do que a inflação, pelo que, entre os dois riscos, achava socialmente preferível evitar o primeiro. Tanto mais que "os mecanismos do moderno mundo dos negócios está ainda menos adaptado às flutuações para cima no valor do dinheiro [i.e. à queda de preços] do que às flutuações para baixo".

A visão contrária mais relevante é a do modelo alemão do pós-guerra, que prefere o risco de deflação ao de inflação (apesar de, contrariamente à mitologia estabelecida, a ascensão do nazismo ter sido muito mais favorecida pela Grande Depressão dos anos 1930, do que pela hiperinflação dos anos 1920, aliás, resolvida em pouco tempo, quando se fechou a torneira do financiamento ao Estado); é adepto da (errada) narrativa "moralista" dos desequilíbrios externos; e, portanto, é hostil às revalorizações internas para corrigir os seus excedentes. Mas tal visão é incompatível com o equilibrado funcionamento de uma união monetária, impondo-lhe um viés deflacionário, por colocar todo o ónus dos ajustamentos externos nos membros deficitários (como se viu).

Este modelo, que se mostrou muito eficaz no desenvolvimento económico da Alemanha, e do qual se compreende que esta não queira abdicar, só é compatível com a saudável convivência económica com os outros países se dispuser de uma moeda flutuante (i.e revalorizável), como foi o caso do pós-guerra até à criação do euro. E como se tornou muito claro para a própria Alemanha durante o regime de Bretton Woods, onde as preferências sociais dominantes, e com poder para "impor" os seus efeitos aos demais (inflação nesse caso), eram as americanas. E por isso se descomprometeu, daí para a frente, com a defesa da estabilidade cambial do marco, que era regularmente revalorizado. Sem esse escape, acabou com uma "moeda" subvalorizada e a sua competitividade subsidiada pelas economias mais fracas.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico