As regras processuais como armas: lições da ADC 43
Tornando-se verdadeiro Senhor de seu processo, o Supremo reconfigura regras, ampliando ou restringindo competências
Soraya Lunardi
Thiago Bottino
Dimitri Dimoulis
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Não faltam comparações e metáforas sobre a natureza do direito processual. Talvez a mais expressiva seja sua comparação com uma arma. Apresentado como neutro, formal e, acima de tudo, “não substancial”, o direito processual pode funcionar como uma arma silenciosa, oculta e extremamente eficaz. O juiz que toma decisões de cunho processual e as partes que apresentam reinterpretações das regras processuais conforme seus interesses, manuseiam essa “arma” silenciosa para alcançar resultados materiais, isto é, para conseguir pequenas ou grandes vitórias no processo sem dizer sequer uma palavra sobre seu mérito.
As ações e os recursos que discutem perante o Supremo a presunção de inocência e, notadamente, a ADC 43, constituem exemplo de uso estratégico das regras processuais para conseguir vitórias independentemente do mérito. À importante análise sobre as conflitantes estratégias (ou manobras) utilizadas pelos ministros do Supremo nesses casos, queremos acrescentar uma consideração relacionada ao significado processual da Ação Declaratória de Constitucionalidade.
Sabemos que objetivo da ADC é a confirmação definitiva da constitucionalidade de uma norma federal, em relação à qual surgiram e persistem divergências forenses. Isso permite, por um lado, confirmar a supremacia do texto constitucional e, por outro lado, decidir com força vinculante sobre a validade do ato questionado. Sendo deferida a ADC, a norma infraconstitucional que possuía apenas presunção de constitucionalidade, torna-se definitivamente constitucional, eliminando a insegurança jurídica gerada pelas discrepâncias de sua aplicação e controvérsias acerca de sua conformidade constitucional.
Os autores da ADC 43 pediram que fosse declarada a conformidade constitucional do artigo 283 do CPP, segundo o qual: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.”
De seu lado, a Constituição dispõe que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (art. 5º, LXI) e que“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII).
Trata-se, na substância, de reprodução da previsão constitucional com variações de estilo e algumas especificações que não fogem da obviedade. Diante disso, o caso perante o Supremo na ADC 43 parece simples. Em poucas linhas, o acórdão deveria constatar a constitucionalidade do artigo 283 do CPP, que nada mais fez do que positivar o entendimento anterior do Supremo (HC 84.078). Difícil mesmo seria argumentar o contrário.
Essa solução decorre da interpretação ortodoxa (e, a nosso ver, correta) das regras processuais sobre a ADC:
1. a) objeto da ação é a verificação da compatibilidade de dispositivo infraconstitucional com a Constituição;
2. b) parâmetro dessa verificação são as normas constitucionais que regem a matéria tratada pelo legislador;
3. c) resultado da ação é a declaração da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma examinada ou o indeferimento do pedido sem pronúncia do Tribunal sobre a constitucionalidade se não for alcançado o quórum de decisão legalmente previsto (seis ministros votando no mesmo sentido, conforme o art. 23 da Lei 9.868 de 1999).
A decisão cautelar sobre a ADC 43, clara e objetivamente afirmar a constitucionalidade do art. 283, se materializou em 250 páginas repletas de divergências entre ministros. A ação desencadeou paixões políticas e expectativas jurídicas que se aguçaram após a prisão do ex-presidente Lula e chegou a figurar, em abril 2018, na primeira página dos jornais. Além disso, discute-se o timingcerto para a decisão e seu conteúdo, nova cautelar foi pedida e fazem-se prognósticos sobre o comportamento decisório dos integrantes do Tribunal – decisivos para formação de uma maioria.
Isso se explica pelo fato de os ministros, de comum acordo, terem criado novas regras processuais que são tácitas e eficientes como todas as armas processuais:
O objeto da ADC 43 não é mais a conformidade da lei com a Constituição, mas o significado e o alcance (temporal e material) das previsões constitucionais sobre a privação de liberdade.
O parâmetro para decidir a ação não são mais os dispositivos constitucionais que regulamentam a prisão, mas um conjunto vago de considerações sobre segurança pública e política criminal, misturadas com análises sobre a função do processo penal e uma retórica moralizante sobre a importância do Estado de direito e do devido processo legal.
O resultado da ação deixa de ser a declaração de constitucionalidade, sendo almejada uma releitura da Constituição à luz dos critérios que cada integrante do Tribunal elege como parâmetro.
Temos uma autêntica reconfiguração do controle abstrato de constitucionalidade que o Tribunal construiu silenciosamente, criando ex nihilo uma “Ação interpretativa” que é onipotente em razão da vinculação erga omnes. Isso vale para a ADC, mas em grande medida também para a ADIn e a ADPF. O Supremo tende a estabelecer a regra da fungibilidade, não raramente apensando ações de diferentes categorias ou convertendo uma na outra. Ferramenta básica dessa reconfiguração é a “técnica” da interpretação conforme a Constituição, utilizada para interpretar e, no limite, para modificar o próprio texto constitucional e não apenas para definir as condições de compatibilidade constitucional de norma hierarquicamente inferior.
O mais conhecido exemplo de tal “ação interpretativa” no controle abstrato é a decisão na ADPF 132 sobre a união homoafetiva. Sob o pretexto de verificar a constitucionalidade de dispositivo do Código Civil, praticamente idêntico à previsão constitucional, a Constituição foi reinterpretada de maneira que contrariou sua literalidade.
Processualmente a ADPF 132 e a ADC 43 se assemelham. Contudo, há uma crucial diferença na substância da atuação do Supremo, isto é, no significado político de sua intervenção “ativista”. Na união homoafetiva, o Tribunal atendeu pleitos de equiparação de uma minoria socialmente oprimida, cujos direitos em nada afetam os da maioria. O Supremo agiu como poder contramajoritário, atribuindo direitos mediante invocação dos princípios da liberdade e da igualdade.
Já no caso da prisão antes do trânsito em julgado, o Supremo tende a suspender direitos dos condenados, aumentando o número de presos em um sistema penitenciário cuja desumanidade e inconstitucionalidade crônica e estrutural foi reconhecida pelo próprio Supremo. A atuação se dá no intuito pro-majoritário, de “corrigir” opções do constituinte e do legislador processual penal com base nos ditames eficientistas da opinião pública (ou, ao menos, da opinião publicada que prevalece nesse momento). Para tanto, o Tribunal afasta a leitura mais plausível da Constituição que faz depender a execução da pena criminal do trânsito em julgado (ainda que haja discordâncias razoáveis sobre o que a Constituição de fato determina).
Sendo como for, os ministros parecem concordar que a ADC 43 serve para decidir sobre o sentido do texto constitucional, apesar de isso não ser nem objeto nem resultado legítimo de uma ação de constitucionalidade. O Supremo reserva para si a arma da autocriação processual que lhe permite utilizar ações e processos como ferramentas de modificação do ordenamento jurídico. Tornando-se verdadeiro Senhor de seu processo, reconfigura regras, ampliando ou restringindo competências.
Em todos os casos, o Supremo amplia seu poder, estabelecendo normas de decisão sem legitimidade para tanto. Nesse ponto parecem concordar ministras e ministros, independentemente de sua posição substancial sobre a presunção de inocência. Eficientistas e garantistas se unem quando se trata de adicionar a arma da “ação interpretativa” ao arsenal processual do Supremo.
Soraya Lunardi – professora da Unesp
Thiago Bottino – professor da FGV Direito Rio
Dimitri Dimoulis – professor da FGV Direito SP