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Os direitos fundamentais na CF em seus 30 anos de vigência: como tudo começou, por Ingo Sarlet

 

Os direitos fundamentais na CF em seus 30 anos de vigência: como tudo começou

 

Por Ingo Wolfgang Sarlet

 

 

Sem que se necessite, por razões elementares, sublinhar a importância do fato de a nossa Constituição Federal, promulgada em 5/10/1988, estar completando seu 30º aniversário — ainda que tantas críticas e mesmo frustrações tenha atraído ao longo desse tempo —, é, por outro lado, impositivo que também nesta coluna, dedicada ao tema dos direitos fundamentais (portanto, focada na perspectiva constitucional), não deixemos passar ao largo tal evento. Assim, a começar por este texto, é nosso intento publicar uma série de colunas dedicadas precisamente aos direitos fundamentais nos 30 anos da CF, alternando-as com outros tópicos, mas sempre destinados a apresentar e discutir questões ligadas a tais direitos.

       Por isso, iniciaremos hoje uma série de colunas dedicadas aos direitos fundamentais ao longo dessa trajetória cada vez mais conturbada, mas, ainda assim — no nosso entender —, substancialmente vitoriosa, inclusive pelo fato de ter sobrevivido a crises políticas e econômicas relevantes e a despeito dos bolsões de falta de eficácia social. Com isso, contudo, não se está a afirmar — e seria mesmo algo no mínimo ingênuo — que a nossa ordem constitucional não esteja sendo gradualmente exposta a desafios e riscos de grande envergadura e que não se deva reconhecer um processo de corrosão interna e de bombardeamento externo.

       Nesse contexto, com os direitos e garantias fundamentais — ao menos parte deles —, o que se passa não é muito distinto.

      A despeito disso, é inegável que, pelo menos do ponto de vista formal, trata-se da parte do texto constitucional que praticamente quedou intocada, tendo, salvo ajustes específicos de caráter restritivo, não apenas sido mantida, como ampliada, tal como dão conta os direitos à razoável duração do processo, os direitos à moradia, alimentação e ao transporte.

     Mas é hora de voltarmos no tempo e apreciarmos (sim, trata-se de algo que, no conjunto, é digno de apreço) o resultado do processo constituinte e cristalizado na CF em matéria de direitos fundamentais. Ao fazê-lo, há que frisar, estaremos operando de modo seletivo, visto ser inviável e mesmo não estritamente necessário abarcar todo e qualquer aspecto atinente ao tema para dar conta do que aqui se propõe, designadamente uma apresentação, em linhas gerais, da posição e envergadura dos direitos fundamentais na concepção originária do constituinte.

      Um primeiro ponto a ser destacado, e que teve uma repercussão possivelmente bem maior do que a projetada — pelo menos consciente e deliberadamente — pelos congressistas-constituintes, diz com a recepção e afirmação do conceito moderno de direitos fundamentais, a começar pela utilização, pela primeira vez na trajetória do Direito Constitucional positivo brasileiro, do termo direitos e garantias fundamentais na condição de gênero do qual passaram a ser espécies (e aqui não se irá controverter a adequação terminológica e sua atualidade) os direitos (e deveres) individuais e coletivos, os direitos sociais, os direitos dos trabalhadores, a nacionalidade, os direitos políticos e os partidos políticos.

         Soa evidente que a opção terminológica em si mesma pouco representaria e seria meramente simbólica caso não viesse acompanhada de uma decisão política vinculativa no sentido de que a designação devesse corresponder com um determinado conteúdo, portanto, com uma particular concepção de direitos fundamentais e aqui precisamente talvez a maior inovação, embora não necessariamente (pelo menos em termos gerais) em matéria de pioneirismo e originalidade em escala mundial.

       Com efeito, consoante, aliás, já desenvolvido nas nossas primeiras colunas, o conceito de direitos fundamentais incorporado pela CF corresponde àquele que foi instituído e desenvolvido, no que toca aos seus elementos essenciais, pela Lei Fundamental da Alemanha de 1949 e pela dogmática e jurisprudência constitucional alemãs. Lembre-se que ao atribuir às normas de direitos fundamentais a prerrogativa de vincularem diretamente todos os atores (poderes/funções) estatais, somada à criação de um instrumento processual (a famosa Verfassungsbeschwerde) destinado exclusivamente à proteção dos direitos fundamentais de modo direto em face e pelo Tribunal Constitucional Federal, a circunstância de que em regra uma restrição de direitos fundamentais deva ser veiculada pela lei parlamentar ou que a ela possa ser diretamente reconduzida, no caso de outros atos normativos, bem como a garantia do assim chamado núcleo essencial, a lei fundamental guindou os direitos fundamentais a um status jurídico qualificado como tal não conhecido até então em outras ordens jurídicas.

      Em suma, se antes — e assim mesmo em raros Estados constitucionais — os direitos fundamentais (mesmo que não se fizesse uso da terminologia) não passavam, em geral, de direitos e garantias reconhecidos e assegurados por uma determinada Constituição, o fato é que no constitucionalismo pretérito os direitos e garantias (em geral designados como direitos individuais) não passavam de “meros” direitos constitucionais. Ademais disso, é hoje mais do que reconhecido que, tirante dos Estados Unidos e alguns poucos outros Estados (como foi o caso da Argentina e do Brasil desde 1891), a supremacia da Constituição e dos direitos e garantias estava nas mãos (praticamente em caráter exclusivo) das legislaturas ordinárias, inexistindo instância (ainda mais jurisdicional) capaz de impor ao Poder Legislativo o respeito aos direitos fundamentais.

    Assim, quando se afirma que a concepção (conceito) de direitos fundamentais incorporado pela CF se alinhou com a tradição alemã (e cada vez mais europeia e transeuropeia), está a se dizer que se adotou um conceito particular de direitos fundamentais, precisamente identificado com o fato de que se cuida de direitos atribuídos e garantias instituídas pela ordem constitucional, mas que, para além da hierarquia e força normativa das normais constitucionais em geral, é caracterizada pelo fato de ter sido contemplada pelo constituinte de um regime jurídico diferenciado e reforçado em relação ao restante do corpo constitucional.

       Dito aqui em poucas palavras, ao estabelecer que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata e que se trata de normas dotadas da proteção reforçada das assim chamadas cláusulas pétreas, o que o constituinte fez foi assegurar aos direitos fundamentais um regime jurídico especial e qualificado. Em outras palavras, são direitos fundamentais apenas aqueles que são dotados de tal regime jurídico.

Por evidente que a extensão e conteúdo de tal regime jurídico tem sido objeto de importantes controvérsias, em especial no que diz com a sua extensão e limites. Todavia, ainda que se possa discutir — como fazem alguns e com consideráveis razões em vários casos — que nem todos os direitos e garantias constitucionais sejam de fato autênticos direitos fundamentais (por não se lhes aplicar o respectivo regime jurídico) ou que o regime jurídico não é igual para todos os direitos, isso não altera o fato de que em geral e em termos substanciais a concepção vigente e por ora ainda majoritariamente sufragada pela doutrina e jurisprudência foi a que prevaleceu.

Convém agregar que, ao referimos que a concepção originária do constituinte quanto ao regime jurídico prevaleceu, estamos aqui — para espancar toda e qualquer dúvida — a concordar com tal circunstância, pois se cuida do entendimento por nós adotado desde há muito e já expresso em colunas anteriores e que corresponde.

Nesse sentido, sempre é bom relembrar que, pelo menos no que concerne ao predicado da aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais, qualquer interpretação restritiva quanto à exclusão de determinados direitos fundamentais vai de encontro à dicção textual do artigo 5º, parágrafo 1º (que se refere ao gênero direitos e garantias fundamentais) como não corresponde à vontade do constituinte. Além disso, a regra da aplicabilidade imediata não é incompatível com a necessidade de — levando em conta a estrutura e função dos direitos fundamentais — modular determinados efeitos jurídicos das respectivas normas, sem romper com o predicado da aplicabilidade imediata, o que aqui não poderá ser desenvolvido e também já foi tratado em colunas anteriores.

Já no tocante à previsão constitucional de que os direitos fundamentais são limites materiais à reforma constitucional, muito embora o texto do artigo 60, parágrafo 4º, IV mencione os direitos individuais e coletivos, igualmente (e no nosso sentir com razão) acabou prevalecendo — ao menos por ora e a despeito de diversas posições em sentido contrário, em especial no plano doutrinário — uma exegese extensiva, no sentido de que todos os direitos fundamentais são cláusulas pétreas, isso mediante uma leitura teleológica e sistemática e que busca evitar um casuísmo inevitável pautado pelo entendimento de que apenas determinados direitos possam limitar o poder de reforma, tendo em conta a sua natureza e conteúdo material. Mesmo o STF por ora, pelo menos após a promulgação da CF, não afastou a condição de cláusula pétrea em relação a algum direito fundamental, seja civil e político, seja social, sem deixar de corretamente reconhecer que tal qualidade não afirma o caráter absoluta, ou seja, imune a limites e restrições, dos direitos fundamentais, mas, sim, lhes outorga uma proteção reforçada que blinda o seu núcleo essencial.

Aliás, com isso, a doutrina do núcleo essencial como limite aos limites dos direitos fundamentais, atualmente aceita pela doutrina dominante (ainda que com matizes importantes), também acabou se incorporando ao Direito Constitucional brasileiro de modo mais efetivo, agregando-se mais um elemento (não expressamente positivado) ao regime jurídico qualificado de tais direitos.

À vista do exposto, e limitando-nos hoje mais ao regime jurídico dos direitos fundamentais, é fácil perceber os expressivos avanços protagonizados pelo constituinte de 1988 nessa seara e, do ponto de vista doutrinário e jurisprudencial, uma adesão majoritária a tal modelo, inclusive no sentido de lhe dar ainda uma maior concretude. Que essa evolução, como já frisado, não é insuscetível a críticas resulta evidente e é mesmo indispensável, pois mesmo que se vá sufragar o regime jurídico qualificado como tal (como concepção) é de se reconhecer incongruências e inconsistências quanto à sua compreensão e aplicação em vários casos. Mas isso implica uma necessidade de correção e não infirma em si a sua intrínseca bondade constitucional.

 

Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito da PUC-RS, desembargador no TJ-RS, doutor e pós-doutor em Direito.

Revista Consultor Jurídico, 13 de abril de 2018, 13h14