O DIA EM QUE A REGRA DE TRÊS PREVALECEU NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Autor: Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.
Na sessão do último dia 19 de abril, o Plenário do Supremo Tribunal Federal negou provimento a um recurso de agravo regimental interposto nos embargos infringentes relativos a uma ação penal originária, na qual um Deputado Federal foi condenado pelo crime de lavagem de dinheiro.[1]
No julgamento do agravo regimental, por maioria, os Ministros firmaram a tese de que são admissíveis embargos infringentes contra decisão condenatória proferida, majoritariamente, em ação penal originária, por uma de suas Turmas, desde que haja dois votos vencidos em favor do réu, ambos absolutórios em sentido próprio, ou seja, que tenham pugnado pela absolvição.
No caso concreto houve apenas um voto divergente e no sentido de ser reconhecida uma nulidade processual pela ausência de perícia, bem como a prescrição, matérias preliminares (processual e de mérito, respectivamente).
Certamente houve, no mínimo, dois erros gritantes neste julgamento, como veremos a seguir.
Com efeito, o art. 333, I, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal admite a interposição de embargos infringentes em relação a decisão não unânime do Plenário ou da Turma, sempre que for julgada procedente uma ação penal originária. Ademais, quando o julgamento ocorrer perante o Plenário, os embargos infringentes somente serão possíveis caso tenha havido, no mínimo, quatro votos divergentes.
Observa-se, preliminarmente, que esta norma regimental foi recepcionada pela Constituição Federal como lei ordinária, pois, à época de sua edição, o Supremo Tribunal Federal possuía função legislativa para normas processuais. O poder normativo primário do Supremo Tribunal Federal era permitido pelo ordenamento constitucional anterior. Hoje, evidentemente, não há mais esta possibilidade, em razão dos arts. 22, I e 96, I, “a”, ambos da Constituição.
Pois bem.
Esta norma interna não exige um número mínimo de votos divergentes quando o julgamento foi proferido por uma das Turmas. A exigência de um quórum mínimo apenas é feita quando o julgamento for diante do Plenário. O que decidiu, então, a maioria dos Ministros?
Fazendo tabula rasa da garantia ao duplo grau de jurisdição, expressa na Convenção Americana sobre Direitos Humanos ou Pacto de São José da Costa Rica (art. 8º., h) e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York (art. 14, 5), bem como dando uma inadmissível interpretação restritiva da norma regimental, estabeleceu que o voto divergente diga respeito ao mérito propriamente dito, ou seja, deve ser um voto pela absolvição do acusado. Não vale, portanto, quando a divergência, por exemplo, reconhecer extinta a punibilidade pela prescrição que, induvidosamente, é matéria de mérito (aqui sequer há discrepância na doutrina).
Depois, e pior, decidiu-se que no julgamento pelas Turmas haveria uma outra exigência, também inexistente no texto do Regimento Interno: um mínimo de dois votos divergentes.
Ora, o art. 333 do Regimento Interno somente exige um número mínimo de quatro votos divergentes quando o julgamento competir ao Plenário; ao contrário, se a competência for de uma das Turmas não há qualquer menção a número mínimo de votos divergentes. O que fizeram, então? Uma regra de três! Isso mesmo, senão vejamos:
O parágrafo único do referido artigo exige quatro votos divergentes para a admissibilidade do recurso quando o julgamento for da competência do Plenário; considerando que nesses processos, à época, o Presidente da Corte não julgava (salvo para desempatar ou se houvesse questão constitucional a ser enfrentada), tinha-se, então, dez Ministros participando do julgamento. Logo, se no Plenário dez Ministros votavam e se exigia quatro votos divergentes, agora, na Turma, composta apenas por cinco Ministros, deve haver duas divergências. É simples. Trata-se de uma regra de três:
10 Ministros = 4 votos divergentes.
5 Ministros = 2 votos divergentes.
Nada obstante ser a regra de três uma das mais importantes da matemática, servindo para a resolução dos mais variados e importantes problemas, usá-la para interpretar uma norma de caráter processual penal é um dos mais absurdos precedentes já criados pela Corte. Trata-se, mesmo, de um achincalhe à inteligência jurídica brasileira e de um desrespeito vergonhoso à garantia ao duplo grau de jurisdição, exigência, como referido acima, de normas internacionais sobre direitos humanos, civis e políticos que o Brasil subscreveu e se comprometeu a cumprir.
No particular, merece destaque a afirmação de Maurício Zaniode de Moraes, segundo a qual, “a adoção do duplo grau de jurisdição deixa de ser uma escolha eminentemente técnica e jurídica e passa a ser, num primeiro instante, uma opção política do legislador.”[2]
Em França, segundo Étienne Vergès, “l´article préliminaire du Code de procédure pénale dispose in fine que ´toute personne condamnée a le droit de faire examiner sa condamnation par une autre juridiction`.”[3]
Houve, portanto, dois erros no julgamento, no mínimo! O primeiro quando se interpretou a norma interna afirmando o que ela não diz: o voto divergente deve ter tratado do mérito da ação penal, isto é, ter sido proferido no sentido da absolvição. Mas, onde está escrito isso no Regimento? O caput do art. 333, de forma clara, estabelece apenas a necessidade de que a decisão não seja unânime. Qual decisão? A que julgar procedente, majoritariamente, a ação penal originária. Ora, se houve algum voto em sentido contrário já está satisfeito o pressuposto recursal, pouco importando se a divergência deu-se em razão de matéria meritória ou não. Bastaria que o voto dissonante não fosse de natureza condenatória.
Qualquer outra interpretação é uma verdadeira sabotagem que se faz ao Regimento Interno e, repita-se à saciedade!, ao duplo grau de jurisdição.
Por outro lado, usar uma regra de três simples para alterar, rasurando-a, a norma regimental, é inadmissível, ainda mais para minimizar o duplo grau de jurisdição, quando deveria se dá justamente o oposto: a maximização daquela garantia convencional.
Aliás, há muitos anos Calmon de Passos já se mostrava preocupado com “a tendência, bem visível entre nós, em virtude da grave crise que atinge o Judiciário, de se restringir a admissibilidade de recursos, de modo assistemático e simplório, em detrimento do que entendemos como garantia do devido processo legal, incluída entre as que são asseguradas pela nossa Constituição. O estudo do duplo grau como garantia constitucional desmereceu, da parte dos estudiosos, em nosso meio, considerações maiores. Ou ele é simplesmente negado como tal ou, embora considerado como ínsito ao sistema, fica sem fundamentação mais acurada, em que pese ao alto saber dos que o afirmam, certamente por força da larga admissibilidade dos recursos em nosso sistema processual, tradicionalmente, sem esquecer sua multiplicidade.”[4]
Uma pena que tenhamos visto mais uma decisão de nossa Corte Constitucional alheando-se da própria Constituição e de Convenções Internacionais.
Caminhamos a passos largos para reescrever uma nova ordem constitucional, desta feita ao alvedrio da soberania popular. O perigo é que “as tentativas de restringir a sociedade com muita força podem surtir um efeito oposto: os cidadãos podem reagir à própria ideia de serem limitados. Uma razão para querer se libertar de uma fortaleza pode ser que não se quer viver sob a autoridade de um tirano – definido como alguém que constrói uma fortaleza para impedir os indivíduos de saírem.”[5]
Aqui, quem é mesmo o tirano?
[1] Ação Penal nº. 683.
[2] Interesse e Legitimação para recorrer no Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 29.
[3] Procédure Pénale, Paris: LexisNexis Litec, 2005, p. 49.
[4] Estudos Jurídicos em Homenagem à Faculdade de Direito da Bahia, São Paulo: Saraiva, 1981, p. 88.
[5] ELSTER, Jon, Ulisses Liberto – Estudos sobre Racionalidade, Pré-compromisso e Restrições, São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 127.