Juízes militantes? A politização da magistratura e do MP
Magistrados e membros do Ministério Público não são ‘cidadãos comuns’
- Cássio Casagrande
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Alguns episódios recentes da vida judiciária nos revelam sintomas de uma febre que está acometendo parte da magistratura e do Ministério Público. A febre da política. Uma desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro resolveu fazer em rede social comentários políticos e insinuações partidárias sem base fática sobre o assassinato da vereadora carioca Marielle. Um Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, criticou o STF em sua página no Facebook, acusando a instituição de pretender “acabar com a Lava Jato ou botar na rua o bandido corrupto Lula”. Um procurador de Justiça do Paraná, muito respeitado, diga-se, soltou um “Fora Temer” em ato no qual representava formalmente a instituição. E por aí adiante, poderíamos citar vários outros casos que vêm sendo divulgados pela imprensa.
Esta febre da política está alastrada. Por isso, causou-me certa estranheza o discurso do ministro do STF Ricardo Lewandowski, que, em jantar com acadêmicos na semana passada, pareceu incentivar o ativismo político de magistrados: “Nós precisamos voltar a ser cidadãos, a tomar parte na política (…), sejamos nós advogados, juízes, jornalistas ou profissionais de outras áreas. Precisamos tomar partido porque hoje vivemos dias sombrios, difíceis. Temos que tomar partido nesta luta”.
Estes pronunciamentos políticos de juízes e membros do MP têm sido defendidos sob o subterfúgio de que, em ocasiões que tais, magistrados e procuradores estão falando como “cidadãos comuns”. Parece-me que isto é um grave equívoco. Juízes e promotores não são cidadãos comuns. Eles detêm poder político por exercem atos de soberania estatal. E, exatamente em razão desta circunstância, precisam ser controlados.
É o que nos ensina Mauro Cappelletti em Juízes Irresponsáveis? Nesta obra, o consagrado e saudoso jurista da escola de Turim adverte: “Parece fora de dúvida que um sistema de governo liberal-democrático (…) é sobretudo aquele em que exista razoável relação de proporcionalidade entre poder público e responsabilidade pública, de tal sorte que ao crescimento do próprio poder corresponda um aumento dos controles sobre o exercício de tal poder. Esta correlação é inerente ao que se costuma chamar de sistema de pesos e contrapesos, checks and balances. (…) O problema da responsabilidade judicial vem assumindo na nossa época peculiar conotação e relevância acentuada, em razão, exatamente, do crescimento sem precedentes do poder judiciário na sociedade moderna”.
Os episódios de ativismo político acima referidos poderiam ser tidos como pontuais e folclóricos, se fossem representativos de um momento eventual em que os representantes da lei se deixaram levar pela emoção e perderam a cabeça. Mas creio que eles são ilustrativos de um comportamento coletivo mais amplo, de perda de independência e isenção política dos membros da magistratura e do parquet, o qual tem muitas causas, como a polarização e o maniqueísmo correntes em nossa sociedade, a perda da noção de privacidade trazida pelas redes sociais e, especialmente, a própria judicialização da política e o decorrente (embora não necessário) ativismo judicial. Não vou discorrer aqui sobre as causas da partidarização da magistratura e do MP, mas, sim, sobre os seus terríveis riscos.
Então, dizia eu, este fenômeno é claramente coletivo e não individual, isolado. Prova disto é a “mania dos manifestos”. Volta e meia sou convidado por colegas do MP e por juízes conhecidos meus a assinar manifestos com os mais variados propósitos. Contra e a favor do impeachment. Contra e a favor deste ou daquele projeto de lei do Congresso. Contra e a favor desta ou daquela decisão do Supremo. Contra e a favor da prisão do Lula. Recuso-me, terminantemente, a assinar qualquer manifesto político, pelo simples fato de que, a meu juízo, a Constituição (com toda razão e pertinência) me proíbe de fazê-lo. E, ainda que não proibisse, este tipo de conduta seria totalmente inadequada e incompatível com o tipo de poder que exerço, por ser membro do Ministério Público.
Aliás, não posso deixar de observar o quão ridículos têm sido esses “manifestos de juristas”. Para cada questão polêmica que divide a nossa sociedade, há logo um manifesto de mil “juristas” de um lado, e, da parte contrária surge em oposição outro milhar de “juristas” com o seu próprio panfleto. Cheguei à conclusão de que o Brasil deve ser o país com o maior número de juristas por quilômetro quadrado, pois, em geral, em qualquer país civilizado, os grandes juristas contam-se nos dedos. Aqui, há muita gente que nunca publicou uma obra jurídica e não tem o menor pundonor em assinar uma lista qualquer como “jurista”.
Nunca este termo esteve tão vulgarizado. Não faz tempo, em um manifesto de “500 juristas” em favor do ex-presidente Lula, encontrei um subscritor que se identificava como “estudante de Direito”, e concluí que se tratava de um grande prodígio criado por nossas universidades, que conseguiram a façanha de produzir um jurista que ainda não colou grau! Realmente, estamos perdendo a noção do ridículo no Brasil.
Além dos patéticos manifestos, vemos juízes e promotores que sobem em carros de som e proferem discursos proselitistas, membros da magistratura e do MP que vão a comícios, passeatas, protestos e panelaços, devidamente paramentados de verde amarelo ou de vermelho, conforme o seu “time”. Todos parecem achar normal esse exercício de liberdade política do juiz ou do promotor como um “cidadão comum”, até que se constata que aquele juiz autoflagrado no Instagram no meio de um protesto, segurando uma faixa com dizeres provocativos, por um acaso do destino recebe uma ação distribuída a sua vara em que figura como réu um dos personagens da política, objeto daquele mesmo protesto! Já aconteceu mais de uma vez, de um lado e de outro, diga-se.
Sinto até certa preguiça quando tenho que rebater o argumento de que o juiz, quando está num comício, fala como cidadão comum e no exercício de sua liberdade de expressão. Como disse no início, o juiz e o membro do MP não são “cidadãos comuns” e, portanto, não podem se comportar como meros “cidadãos comuns”, especialmente em uma ordem constitucional que lhes confere amplos poderes, como lembra o mestre da Universidade de Stanford John H. Merryman:
“Os juízes exercitam um poder. Onde há poder deve haver responsabilidade: em uma sociedade organizada racionalmente, haverá uma relação diretamente proporcional entre poder e responsabilidade. De consequência, o problema da responsabilidade judicial torna-se mais ou menos importante, conforme o maior ou menor poder dos juízes em questão” (apud Cappelletti, na mesma obra cima referida).
É exatamente por esta razão que os juízes e promotores não têm, inclusive, a mesma liberdade de conduta em sua vida privada de que goza o “cidadão comum” – e isto me parece bastante evidente. O juiz e o promotor de uma comarca não podem varar noites seguidas na zona do meretrício, bebendo até cair; este é um comportamento que se encontra na esfera de liberdade do “cidadão comum” e, por isso, deve ser tolerado (embora não recomendável, como medida de saúde…). Então, assim como os membros da magistratura e do parquet não podem cair na gandaia da boemia, pelo mesmo motivo não podem cair na gandaia da política.
A Constituição, como é sabido, veda aos membros da magistratura e do MP o exercício de “atividade político-partidária”. É claro que, como é comum no Direito Constitucional, a norma comporta, de início, variadas interpretações na disputa de seu sentido: mais ou menos restritivas aos seus destinatários. A lei proíbe aos agentes da lei apenas a filiação partidária e participação no processo eleitoral ou, mais estritamente ainda, qualquer espécie de proselitismo político? Parece-me induvidoso que esta última alternativa é a correta. Quem pensa diferentemente de mim sustenta que “restrições a direitos individuais devem ser interpretados restritivamente”. Assim, nesta linha de raciocínio, a restrição à liberdade de expressão do juiz, enquanto “cidadão comum”, deveria ser interpretada da forma mais estreita, para se estabelecer que atividade “político-partidária” é apenas a filiação e participação no processo eleitoral.
Mas há aqui um grande equívoco sobre a base de todo o edifício hermenêutico. A restrição à atividade política de juízes e procuradores não incide sobre o direito individual de suas pessoas físicas; ao contrário, cuida-se de restrição ao exercício da autoridade de um agente estatal, logo, ao próprio Estado. E, é claro, todas as restrições ao arbítrio estatal devem ser interpretadas da forma mais ampla possível – justamente para garantir a liberdade dos indivíduos, base de todo constitucionalismo ocidental. Em outras palavras, a Constituição, ao vedar a participação de juízes e membros do MP em atividades político-partidárias, o faz com o claro escopo de interditar todo e qualquer comportamento proselitista que possa resultar em participação, direta ou indireta, no processo político eleitoral.
Por isso, acho muito curioso que membros da magistratura e do MP defendam sua militância política como exercício de uma suposta liberdade de expressão. Somente uma democracia imatura como a nossa pode tolerar tamanho disparate. Os EUA e a Inglaterra são os países que desfrutam do maior grau de liberdade de expressão conhecido e lá juízes não se comportam como militantes políticos, não assinam manifestos, nem vão a passeatas ou comícios, porque se o fizerem sofrerão um processo de impeachment no dia seguinte, já que isto não é compatível com o good behavior que deles se espera.
Acredito, por essas razões, que o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) agiu corretamente ao editar a Recomendação no. 01/2016, com diretrizes para o comportamento de membros do MP em redes sociais: “A vedação de atividade político-partidária aos membros do Ministério Público, salvo a exceção prevista constitucionalmente, não se restringe apenas à prática de atos de filiação partidária, abrangendo, também, a participação de membro do Ministério Público em situações que possam ensejar claramente a demonstração de apoio público a candidato ou que deixe evidenciado, mesmo que de maneira informal, a vinculação a determinado partido político.” Creio apenas que isto não deveria ser uma mera “recomendação” e sim uma resolução com maior grau de eficácia.
Os membros do MP e da magistratura que desejem agir como militantes políticos, como se fossem meros “cidadãos comuns” e como se tivessem o mais absoluto direito de expressar suas opiniões políticas, podem fazê-lo, é claro: basta apenas passar antes no departamento de pessoal de suas instituições e requerer a exoneração, como fizeram os governadores Flavio Dino do Maranhão (ex-juiz) e Pedro Tacques do Mato Grosso (ex-procurador da República). Estamos precisando, inclusive, de políticos com boa formação intelectual.
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Alexis de Tocqueville, o “profeta da democracia”, percebeu, no alvorecer do experimento democrático norte-americano, o quão importante seria a existência, nas sociedades modernas, de juízes politicamente moderados para contrabalançar os arroubos e excessos das disputas eleitorais. E, também, como era importante, para esse fim, que se dissociassem das paixões partidárias:
“Os homens que se especializam no estudo das leis adotaram de tais trabalhos hábitos de ordem, certo gosto pelas formas, uma forma de instintivo amor ao encadeamento regular de ideias, que os tornam naturalmente por demais opostos ao espírito revolucionário e às paixões irrefletidas da democracia. (…) São os senhores de uma ciência necessária, cujo conhecimento de modo nenhum é propagado; servem de árbitros entre os cidadãos e o hábito de dirigir para o objetivo as paixões cegas dos queixosos dá-lhes certo desdém pelo julgamento da multidão. (…) Os homens da lei não podem tomar no mundo político uma posição análoga àquela que ocupam na vida privada; podemos estar convencidos de que, numa sociedade organizada dessa forma, os juízes serão os agentes muito ativos da revolução.” (A Democracia na América, Livro I)
Estão, parece-me que, se nossos homens da lei se deixarem contaminar pelo veneno do facciosismo vigente na sociedade, ficarão impossibilitados de atuar de forma isenta, sopesando, nas causas que lhes forem submetidas, as diferentes e contraditórias visões de mundo, inerentes à condição humana, como bem adverte Calamandrei na passagem citada na epígrafe deste artigo. E, mais perigoso, ao se envolverem com as paixões políticas da multidão, podem conduzir o país a uma grave instabilidade institucional.
Eu sei que seria ingenuidade acreditar que juízes e promotores são ideologicamente neutros. Aliás, Tocqueville também não ignorava esse fato, pois é evidente que todos têm suas opiniões, interesses e preferências políticas. Mas o que ele salientava era a importância de que o mundo de suas idiossincrasias permanecesse restrito à esfera de sua vida privada. Tal como a mulher de César, não basta aos homens da lei serem politicamente honestos, eles precisam também parecer politicamente honestos.
Os romanos eram geniais e sabiam das coisas, especialmente da necessidade de separar o público e o privado. Então, é claro que juízes e membros do Ministério Público podem conversar sobre as próximas eleições. Mas seria de todo conveniente que o fizessem reservadamente, no máximo, durante o churrasco de domingo com a família – e desde que o vizinho não seja convidado e que ninguém esteja filmando com o celular!
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Cássio Casagrande – Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.