É paradoxal uma súmula vinculante dizer que uma lei é inconstitucional
Leio que tramita no Supremo Tribunal Federal proposta de duas novas súmulas vinculantes para sacramentar o resultado do julgamento do foro por prerrogativa de função. Como sempre, minha intenção é contribuir para o debate.
Primeiro, o que é uma SV? A par de ser uma coisa inusitada — só existe por aqui —, a SV tem um plus em relação a qualquer ato jurídico. É um superato. A SV cria um paradoxo: um juiz pode até desobedecer uma lei. Mas não pode desobedecer uma SV, porque dela cabe reclamação direta ao órgão emissor. Outra grande “vantagem” da SV é que por ela é possível emendar materialmente a Constituição. Se, para o parlamento, são necessários 3/5 dos votos do Congresso em dupla votação e nas duas Casas, no STF são necessários apenas 8 votos para aprovar uma SV e em votação única. Com a vantagem de que, como é o próprio Supremo que a edita, a chance de uma SV ser declarada inconstitucional é zero. Pior: nem cabe arguição de inconstitucionalidade contra SV. Cabe apenas pedido de revisão. Parece que até aqui não temos divergências, certo?
A única coisa “ruim” da SV (trata-se de um pequeno “incômodo”) é que ela necessita, para a sua edição, a obediência a alguns requisitos, que eu chamo de DNA da Súmula. E quem diz isso é a CF: “Decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional” (103-A). Permiti-me grifar parte do texto.
Um constitucionalista-raiz como eu ousa perguntar: mas uma SV pode exsurgir de uma QO — questão de ordem — como é caso em debate?
Segundo: se uma SV só pode ser produto de precedentes reiterados (já desde 1992 venho dizendo que súmula não é precedente), não seria necessário que, antes, tivéssemos alguns precedentes que, finalmente, pudessem vir a ser consolidados em um verbete sumular? Reiteradas quer dizer “várias vezes ter ocorrido uma determinada coisa”.
Terceiro: no caso do foro privilegiado, uma das duas SV propõe a extinção das possibilidades de foro privilegiado criadas pelas Constituições estaduais. Indago: mas em algum momento a suprema corte enfrentou a temática do foro constante nos estados-membros? Diz a PSV que são inconstitucionais os dispositivos da Constituições estaduais (e nem diz quais são, especificamente). Mas uma inconstitucionalidade não deve, antes, ser declarada? Todavia, se se declara a inconstitucionalidade de uma lei ou Constituição estadual, por qual razão seria necessário editar uma SV?
Portanto, com todas as vênias (para usar uma palavra cara à ministra presidente da suprema corte), parece-me que, para além do problema intrínseco que sustentou a decisão que reescreveu a Constituição sobre o tema foro por prerrogativa de função, há, agora, o problema extrínseco, decorrente da falta de requisitos formais para a emissão de uma SV. Sem esquecer do próprio paradoxo que exsurge: uma SV dizer que algo é inconstitucional sem que esse “tal” tenha sido assim declarado. E se tivesse sido, a SV seria despicienda.
No mais, preocupa-me, sobremodo, como constitucionalista-raiz, o papel de constituinte permanente assumido pelo STF e o silêncio eloquente da comunidade jurídica. Parcela considerável da doutrina, em vez de discutir as constantes redefinições do texto da Constituição feitas pelo STF, contenta-se em fazer glosas dos julgamentos (são os neoglosadores), aceitando a institucionalização daquilo que Mathias Jestaedt chamou tão bem de positivismo jurisprudencialista (o livro tem o título original Positivismo do Tribunal Constitucional. A impotência do legislador constituinte ante a jurisdição constitucional do Estado), temática que abordei aqui na ConJur já várias vezes. Nesse tipo de jurisprudencialismo, diz Jestaedt — quem, aliás, é um positivista-raiz —, o juiz cria o direito para o caso concreto sem estar vinculado a nada antes dele. Mais uma forma de realismo jurídico. Empiria. O juiz põe o Direito. Substituindo aquele que foi posto pelo legislador.
Eis um “bom” exemplo do conceito de Direito para o positivismo: é um fato social posto pela mão humana, que vale independentemente de seus pressupostos. Por aqui, na verdade, é um hiperpositivismo-jurisprudencialista: porque esse produto (SV) tem o condão de ser imune a qualquer questionamento intra e extra sistêmico. Auctoritas nos veritas facit legim pode também ser lido como auctoritas non veritas facit sumula.
Sei que o Supremo quer resolver logo isso. Mas algo me diz que isso é tarefa do legislador.
Eis minha contribuição para o debate. Claro, partindo de um olhar mais ortodoxo sobre o sentido da Constituição.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 17 de maio de 2018