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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

A QUEDA, de Albert Camus, em artigo de Alexandre Maia Lago

 A QUEDA, de Albert Camus, em artigo de Alexandre Maia Lago

 

 

Em Amsterdã, num bar de beira de cais, o México City, um sorumbático holandês serve doses a pessoas de toda nacionalidade. Nessa espécie de babel ébria, um homem desfia longa história, a própria, a um desconhecido sentado ao seu lado no balcão.

Aos poucos, vai-se sabendo tratar-se de Jean Batiste, advogado francês, com algum prestígio em Paris antes de vir morar na Holanda. A escassez de clientes por invocar demasiadamente o nome de Deus nas suas defesas, para encobrir a ignorância sobre os códigos, foi apenas um dos motivos de sua partida. Não o principal. Atualmente, após estudar a legislação do país, assessora, juridicamente, uma clientela do bairro judeu onde vive.

Durante o que podemos chamar de monólogo, o nosso personagem inquire seu ouvinte e descobre ser seu compatriota.

Jean Batiste é um homem desiludido com toda e qualquer instituição. As jurídicas são injustas, as religiões, uma farsa, família e casamento matam lentamente… Faz curiosa comparação das instituições com as devoradoras piranhas brasileiras, que “limpam o sujeito em instantes”, diz, referindo-se, nesse caso, aos peixes amazônicos. Nutre, ainda, algum alento pelos cachorros.

“Pela estatura, pelos ombros e pelo rosto feroz”, um jogador de rúgbi e, pela conversa, um refinado, é como se descreve. Ao narrar sobre sua vida, é metódico, filosófico, sagaz e irônico. Fala de suas impressões sobre pessoas, amizade, trabalho, tudo com pitadas de desolação e visível frustração. Aponta suas conquistas amorosas como fugazes e desprovidas de compromissos. Revela pendores suicidas, confessando ter suscitado tal ideia só para pregar uma “boa peça” nos amigos. Mas, sendo impossível “ver em seguida a cara deles”, não valeria a pena. E, além do mais, descobriu que não tinha amigos.

Também dançou, extravasou em frenético ritmo, até um dia em que “a música parou, e as luzes se apagaram”. Então, acabou “a festa em que eu fora feliz”. Essa afirmação melancólica se refere a um fato ocorrido anos antes, quando, caminhando por uma ponte de Paris, ouviu um baque na água… Era uma moça que acabara de passar por ele. Sabia que ela se jogara no rio. Ainda pensou em se virar. Salvá-la? Talvez. Mas seguiu adiante, e essa omissão pesou-lhe a consciência desde então.

Repensando a vida, resolve dar uma guinada, mas no rumo da decadência. Foi para Amsterdã e fez desse boteco o seu escritório. Aos próprios olhos, porém, reabilitava-se moralmente mesmo ao conceber a duplicidade de sua criatura após analisar-se. Temia que a morte o impedisse de realizar a tarefa de sua vida. Qual? Ele também não sabia.

Confessa ao seu compatriota que, certo dia, quando perdeu interesse por sua imagem de cidadão exemplar, pensou em sair dando empurrões em cegos na rua, furar os pneus das cadeiras de rodas dos deficientes, “gritar ‘vagabundos’ debaixo dos andaimes em que estavam os operários e esbofetear bebês no metrô”.

Nosso confuso personagem narra muito, muito mais, expondo de tudo o lado cruento, sem máscaras. Ali, no refúgio do México City, se sentia bem, ouvindo os dramas alheios, do alto de sua experiência de vida. Usava a estratégia de mostrar-se “o último dos últimos” e, então, ser encarado como um espelho do interlocutor de ocasião. “Sou como eles, é certo, estamos no mesmo barco”. Assim vivia, liberto das convenções, em paz consigo mesmo…