Constituição Federal brasileira de 1988 está acima da expectativa de vida das constituições mundo afora
- Alonso Freire
Jeanne Calment fumou cigarros dos 21 até os 120 anos de idade. Passou praticamente sua vida inteira comendo pelo menos um quilo de chocolate por semana e bebendo vinho do porto, uma dieta hoje nada recomendável, especialmente às pessoas senis. Mas Calment, que era francesa, morreu apenas aos 122 anos e 164 dias de idade, em agosto de 1997. Atualmente, ela é considerada o ser humano que mais viveu, pelo menos entre os documentados. Seu curioso caso é hoje lembrado por importantes cientistas políticos quando são perguntados sobre a sobrevivência da Constituição dos Estados Unidos, o exemplar mais antigo de sua espécie, cuja longa vida é tida como igualmente inexplicável quando comparada à vida da imensa maioria das constituições promulgadas desde o seu nascimento, em 1787.
Evidentemente, não teria sentido sugerir que a vida da senhora Calment tem alguma relação com as constituições ao redor do mundo. Aliás, se sua sobrevivência dependesse delas, ela provavelmente teria vivido muito pouco. O mesmo valeria se quiséssemos traçar alguma relação entre sua vida e as das constituições de seu próprio país – como se sabe, a França, oficialmente, já está em sua décima quinta Constituição. Mas, como essa impressionante senhora francesa, a Constituição norte-americana desafia as expectativas, pelo menos segundo estudiosos dedicados ao estudo da longevidade constitucional.
Em um estudo bastante influente, Tom Ginsburg e seus colegas americanos descobriram que as constituições nacionais duram em média apenas 19 anos, sendo que a maioria das que ultrapassam essa idade dificilmente se tornam cinquentenárias.1 De acordo com a estimativa desses pesquisadores, a cada ano, até cinco constituições serão substituídas, quinze constituições serão alteradas e outras vinte emendas serão apreciadas por parlamentos ao redor do mundo. No mesmo estudo, eles foram capazes de perceber que a longevidade constitucional está relacionada a três características básicas: flexibilidade, inclusão e especificidade. Nenhum desses atributos explicados adiante é percebido na Constituição dos Estados Unidos. Segundo a chamada teoria da renegociação, defendida por eles, “pode haver boas razões para se adotar o modelo da Filadélfia – o equivalente constitucional de cigarros, chocolate e vinhos –, mas a resistência constitucional não é um deles”.2
Por resistência constitucional, entenda-se a capacidade de as constituições sobreviverem ao tempo e aos desafios políticos aos quais podem se submeter em diferentes contextos ao longo de sua vida, ou vigência. De acordo com a teoria que defendem, esses três fatores estruturais – flexibilidade, inclusão e especificidade – são críticos para a duração das constituições. Há, entretanto, um pressuposto básico para essa teoria que precisa ser antecipado: seus autores consideram as constituições como acordos ou contratos que envolvem interesses de partes relevantes na vida política. Naturalmente, as crises constitucionais podem abalar esses acordos, modificando o cálculo dos benefícios e custos envolvidos em sua manutenção. Isso, portanto, é inegável.
Para os autores, “as Constituições funcionam como estruturas de governança que permitem a coordenação entre atores políticos para a realização de resultados cooperativos”. Mas elas também seriam “instrumentos de poder que os políticos usam para obter vantagens políticas e satisfazer seus interesses partidários de curto prazo”. Por isso, o risco de uma renegociação do acordo também é levado em conta. Afinal, um processo constituinte pode ser desastroso, a depender do ponto de vista. Reconhecendo isso, em situações de crises constitucionais, as partes irão considerar a sua posição na negociação atual, comparando-a com os resultados esperados de uma renegociação constitucional, deduzindo os custos de adaptação ou de substituição da nova negociação e os riscos de um processo constituinte falhar. Como dizem, “o peso relativo dos cálculos partidários e do poder de negociação depende dos eventos que desencadeiam mudanças constitucionais e da espessura do véu de ignorância que as partes enfrentam em relação aos efeitos do processo constituinte sobre suas posições políticas futuras”. Entretanto, aquelas características básicas – inclusão, flexibilidade e especificidade –, embora não suficientes, representam importantes pilares para a manutenção do edifício constitucional. A ideia é de que, dependendo da presença ou ausência desses fatores, o tempo terá um efeito estabilizador ou desestabilizador sobre as constituições nacionais.3
A inclusão constitucional refere-se à amplitude da participação na formulação do acordo constitucional, na sua atualização e na sua execução corrente. É de se esperar que uma constituição elaborada com ampla participação popular, além de ter maior probabilidade de corresponder às expectativas das sociedades, muito possivelmente gere mais identificação e adesão de seus destinatários, aqui entendidos elites, grupos conflituosos, minorias e a população em geral. Mas a inclusão não pode se restringir ao momento constituinte. É recomendável que uma participação mais ampla se dê de alguma maneira em seus processos de reforma ou revisão, especialmente em relação às constituições mais antigas, que permanecem em vigor por sucessivas gerações. Mesmo uma constituição extremamente popular em seu nascedouro pode, no entanto, correr severo risco de morte se as gerações futuras às quais ela for aplicável não puderem percebê-la como um projeto adaptável às suas realidades e circunstâncias. Em síntese, a durabilidade constitucional é diretamente proporcional ao nível de inclusão constitucional. A ideia central é esta: quanto mais grupos puderem influenciar na construção e manutenção do projeto constitucional, mais interesse haverá quanto à sua sobrevivência. Consequentemente, quanto mais interesse houver na manutenção da constituição, menos crises ocorrerão, visto que menos grupos terão interesse em violar suas normas.4
A flexibilidade é um fator estrutural polêmico, devido à sua associação com a estabilidade constitucional. Embora, de fato, ela seja geralmente vista como uma qualidade ou característica do constitucionalismo moderno, a flexibilidade, quando bem calibrada, pode permitir ajustes necessários de modo a tornar duradoura a constituição, já que ela permite que a constituição se adapte mais facilmente à emergência de novas questões sociais e possibilita reajustes de poderes e competências. Em outras palavras, esse atributo fornece uma saída mais eficaz e menos dramática a impasses políticos e crises constitucionais, permitindo que soluções sejam encontradas dentro do marco constitucional, sem ruptura constitucional e evitando os custos e riscos de uma renegociação política em um processo constituinte. A flexibilidade, inclusive, se relaciona com a ideia anterior de inclusão constitucional, visto que de nada adiantaria se ter uma constituição inclusiva, todavia excessivamente rígida. O que importa aqui é que a possibilidade de ajuste da constituição às condições políticas e sociais mutáveis evita a pressão para uma renegociação completa.5
A especificidade constitucional refere-se ao nível de detalhe na constituição e à amplitude de assuntos que o documento abrange. Embora muitos acreditem que a Constituição norte-americana tem durado precisamente em razão de seu caráter não analítico, a teoria da renegociação sugere que a clareza e especificidade do texto constitucional podem ser úteis para incentivar e facilitar a sua execução. A ideia é a de que um documento mais claro e mais específico gerará mais facilmente entendimentos compartilhados acerca dos seus termos, produzindo, assim, um nível mais profundo de adesão. A especificidade também seria responsável em resolver questões relacionadas com informações ocultas no momento da negociação constitucional, possivelmente omitidas no processo constituinte. Assim, uma constituição mais específica anteciparia e resolveria fontes relevantes de controvérsia política que podem levar à morte constitucional quando deixadas sem solução. Como dizem, “a visão um pouco contra intuitiva sugerida por nossa teoria parte do pressuposto de que negociar detalhes textuais e incorporar um grande número de tópicos é oneroso. A especificidade requer uma elaboração cuidadosa e negociações difíceis, ambas levando tempo e recursos políticos”.6 Para alguns grupos, a especificidade de uma constituição escrita representa um investimento que não pode ser recuperado se a Constituição falhar. Mas aqui é preciso também encontrar um ponto ótimo. É que uma constituição muito minuciosa pode sacrificar a clareza e a coerência e, portanto, prejudicará, em vez de facilitar, a coordenação, ameaçando a duração constitucional. Por essa razão, o texto constitucional deve resolver questões com alta probabilidade de surgirem ao longo da vida constitucional. Em alguns aspectos, a amplitude da constituição será muito dependente do contexto e das necessidades da comunidade política. Portanto, na medida certa, a especificidade tenderá a aumentar, em vez de dificultar a resistência e, assim, a longevidade constitucional.
Os dados apresentados pelos autores sugerem que a duração constitucional está positivamente associada ao PIB de um país, à democracia e à estabilidade política.7 Em média, quando as constituições possuem maior longevidade, os países são mais ricos, mais democráticos, politicamente mais estáveis e passam por menos crises institucionais. Por outro lado, os autores destacam que quando uma sociedade cresce fora de sincronia com as suas disposições constitucionais, pode haver a necessidade de uma substituição. Assim, quando a Constituição não mais representa os anseios da sociedade, é necessário que ela seja substituída. Contudo, é preferível que tais alterações não sejam realizadas com grande periodicidade, visto que as constituições duradouras permitem que as instituições de um país se desenvolvam, contribuem para uma maior unidade nacional e fornecem uma base mais sólida para a prosperidade econômica e para estabilidade democrática.
A Constituição Federal brasileira de 1988 está, portanto, acima da expectativa de vida das constituições mundo afora. Ela possui características que podem conferir veracidade à teoria desses autores, embora não seja possível afirmar que todas elas estejam presentes em sua forma plena. É bem verdade que o processo constituinte foi inclusivo – embora apenas externamente, e não internamente.8 De fato, é inegável que a constituição foi criada com significativa abertura à população, conquanto o processo em si tenha sido dramaticamente disfuncional. Mas como esses autores afirmam, inclusão constitucional não pode se restringir ao momento constituinte. É preciso que sua atualização também possa ser movida pelos seus destinatários, devendo eles ter um papel importante em processos de reforma e revisão. No caso brasileiro, esse aspecto não está presente. Primeiro, a revisão ocorrida não contou com a iniciativa e participação popular com era esperado e desejado por alguns. Quanto ao processo de reforma, não há em nossa Constituição a previsão de proposta popular de emenda constitucional, apesar de alguns importantes estudiosos defenderem essa possibilidade por meio de uma interpretação generosa da Constituição.
A Constituição brasileira, entretanto, possui mais claramente as duas outras características identificadas por esses estudiosos – a especificidade e a flexibilidade. Nosso documento constitucional é não só abrangente, como também bastante detalhista, sendo particularmente específica em muitos assuntos. Embora a maioria dos estudiosos brasileiros classifique a Constituição Federal brasileira de 1988 como rígida, a verdade é que, na prática, ela não tem se mostrado tão difícil de alterar como pode parecer em teoria. Afinal, temos uma média de 3,5 emendas por ano de vigência. Se contarmos as emendas de revisão, temos, nesse momento, um conjunto de mais de cem emendas constitucionais, e outras centenas de propostas tramitando no Congresso Nacional. Em síntese, para a Constituição Federal brasileira de 1988, parece fazer sentido a teoria de Tom Ginsburg e seus colegas pesquisadores. De fato, muitas questões que poderiam ensejar uma renegociação constitucional foram resolvidas por meio de emendas constitucionais, como foi o caso da reeleição para a Presidência da República, uma questão que já motivou renegociações e golpes políticos em muitos países. Evidentemente, no caso brasileiro, há a particularidade do “presidencialismo de coalização”.
Portanto, é possível afirmar que a relativa inclusão, sua especificidade e a facilidade prática de sua reforma são componentes que ajudam a manter a atual Constituição brasileira em vigor, impedindo uma custosa e arriscada renegociação constitucional no país. Embora haja plausibilidade na teoria da renegociação, considerado o caso da Constituição Federal de 1988, há outras particularidades em nosso sistema e em nossas práticas constitucionais nesses últimos trinta anos que também influenciam, direta ou indiretamente, a longevidade de nossa Constituição. Menciono aqui quatro delas.
A primeira envolve a amenização no Brasil de uma postura interpretativa excessivamente formalista do texto constitucional que marcou a vigência das Constituições anteriores. Ao longo das últimas décadas, especialmente das duas últimas, o Supremo Tribunal Federal decidiu, como nunca, questões constitucionais particularmente difíceis. Muitas das suas decisões resultaram em inegável ampliação do disciplinamento constitucional, como foram os casos de quase todas aquelas que trataram do funcionamento das Comissões Parlamentares de Inquérito e a decisão a propósito da fidelidade partidária, para citar apenas dois exemplos representativos. Se por um lado uma Corte menos formalista é necessária para a atualização e atribuição de sentido às normas constitucionais – o que enseja maior plasticidade à Constituição e, com isso, a desnecessidade de rediscussão formal de seus termos –, por outro, uma Corte com poderes desmedidos pode encerrar o risco de uma renegociação constitucional profunda, inclusive com retrocessos e revogação de suas decisões. O caso da Hungria representa, talvez, o melhor exemplo desse perigo.
A segunda particularidade diz respeito ao manuseio do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias por parte do Congresso Nacional. No Brasil, como se sabe, a transitoriedade dessas disposições não impede a alteração das normas que as compõem ou a inclusão de novas. De fato, as alterações no ADCT, mediante emendas constitucionais, são bastante consideráveis. Além de substanciais modificações em diversos artigos, há o vultoso acréscimo de mais de quarenta dispositivos: enquanto a redação original possuía setenta artigos, hoje já possui cento e quatorze. As modificações nesse ordenamento, que também compõe o bloco de constitucionalidade brasileiro, promovendo alterações diante de demandas de maior ou menor complexidade, demonstram a percepção do próprio Congresso Nacional de que há certa possibilidade paralela, uma válvula de escape, além das emendas à parte principal da Constituição, para a implementação de transformações sem prejuízo à manutenção da ordem constitucional vigente. Portanto, o ato das disposições constitucionais transitórias não é mais considerado apenas com um conjunto de normas voltadas a disciplinar a transição de uma ordem jurídica. Na verdade, há muitas disposições hoje que não têm caráter nitidamente provisório. Algumas delas, inclusive, foram acrescentadas para superar decisões de outros Poderes, como foi o caso do art. 96, incluído pela EC nº 57.
Já a terceira decorre do fato de, não obstante seu teor particularmente analítico, a Constituição reserva um conjunto extenso e relevante de matérias deixadas a cargo do legislador ordinário. Assim, uma série de matérias cuja inflexibilidade poderia provocar estímulos à renegociação, inclusive devido a uma possível dificuldade de inclusão posterior no texto constitucional por meio de emendas – em razão dos estritos limites ao poder de reforma e dos custos de negociação política – foi deixada à política legislativa ordinária, de modo que há aqui também um relevante fator de longevidade. De fato, desde 1988, cerca de seis mil leis ordinárias e mais cem complementares foram aprovadas no país, muitas delas regulamentando questões expressamente deixadas pela Constituição ao legislador.
Uma quarta particularidade diz respeito ao estabelecimento da separação de poderes como cláusula pétrea. Embora tais cláusulas não sejam imutáveis, elas impedem a violação de seus núcleos fundamentais. No que diz respeito especificamente à separação de poderes, é possível considerar que essa cláusula pétrea é a mais importante para se evitar uma renegociação. Por meio dela, impede-se a Constituição que seja alterada com o propósito de se reduzir ou aumentar excessivamente as competências de um ou mais dos Poderes. Em tese, sua previsão no art. 60, § 4º, III, faz com que o Congresso Nacional evite correr o risco de produzir atritos institucionais de maior magnitude. Na forma de cláusula pétrea, ficam ainda mais protegidos os freios e contrapesos próprios da ideia de separação de poderes. Com isso, há uma rédea às tentativas de desequilíbrio entre os poderes, o que já ensejou e tem ensejado renegociações constitucionais em muitos países. Obviamente, isso não impossibilita rearranjos institucionais. Mas, inegavelmente, permite a contenção de poder, o que diminui o incentivo a uma nova negociação.
A última característica possível diz respeito à considerável liberdade do Presidente da República para edição de medidas provisórias, cujo controle tende a ser limitado, especialmente por parte do Supremo Tribunal Federal. Em paralelo ao juízo eminentemente político das medidas no Congresso Nacional, a regra é que o Supremo Tribunal Federal não avalia o mérito desses atos normativos e, quanto aos requisitos constitucionais de urgência e relevância, ainda segue jurisprudência sedimentada no sentido de um controle judicial a ser exercido apenas em caráter excepcional. No Brasil, como se sabe, tais medidas permitem ao Presidente da República resolver, de forma imediata, inúmeras questões de governo. Evidentemente, um Executivo saciado e desimpedido tende a manter no sistema constitucional quadros de estabilidade, perdendo interesse em uma renegociação. Sem dúvida, essa tranquilidade dependerá da habilidade do Presidente em lidar com o Congresso Nacional, de modo a permitir a conversão de medidas provisórias em leis de seu interesse.
Antes de concluir, convém fazer duas últimas considerações aparentemente óbvias. A longevidade constitucional não é apenas um atributo, é uma missão em muitos sistemas constitucionais, inclusive nos autoritários, nos quais esses documentos cumprem, pelo menos, a função de servirem como “vasos sagrados”, no sentido de que, ainda que seu conteúdo não seja bom, algum papel relevante elas têm, mesmo que seja apenas o de disciplinar o funcionamento do governo.9Cada Constituição, geralmente, já vem ao mundo com inúmeros propósitos, mas sua vida também é moldada pelas dinâmicas governantes dos ambientes político e econômico.
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1 ELKINS, Zachary; GINSBURG, Tom; MELTON, James. The Endurance of National Constitutions, p. 129.
2 Idem, p. 65.
3 Idem, p. 70.
4 Idem, p. 97 e ss.
5 Idem, p. 99 e ss.
6 Idem, p. 84.
7 Idem, p. 48.
8 Cf., a respeito, FREIRE, Alonso. O Processo Constituinte Inclusivo: Fundamentos Teóricos, Evidências Empíricas e Dinâmicas Governantes. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, 2018.
9 Sobre essa ideia, cf. GINSBURG; Tom; SIMPSER, Alberto (Eds.). Constitutions in Authoritarian Regimes. Cambridge: Cambridge University Press, 2014.
Alonso Freire – Doutor em Direito Público pela UERJ. Mestre em Direito Constitucional pela UFMG. Professor de Direito Constitucional. Atualmente, é também Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal.