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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

A Constituição em papel couchê. E a presunção não é cool. Não vende!

 

A Constituição em papel couchê. E a presunção não é cool. Não vende!

 

 

Por Lenio Luiz Streck

 

 

1. Duas notícias, dois ativismos: a censura e o desejo de ser diretor de novela

Há duas notícias (entre tantas) que mostram que o Porta dos Fundos está tendo séria concorrência em algumas áreas do Direito. Refiro-me à ação do Ministério Público (com êxito, porque ganhou liminar) suspendendo um curso sobre o impeachment (chamado de O Golpe de Estado de 2016: conjunturas sociais, políticas, jurídicas e o futuro da democracia no Brasil). Se o curso fosse sobre o impeachment sem a palavra “golpe”, poderia? Seria o MP fiscal das palavras? O Grande Irmão?

Ao que se vê, o Ministério Público e o Poder Judiciário (ver aqui) querem opinar (e decidir) sobre o que a Universidade deve lecionar. Ou seja, os alunos são ineptos, burros e tem de ser guiados e protegidos. Por quem? Pelo sistema de Justiça. Proteger de quem? Faltou só exigirem mudar o roteiro das aulas. Pelo andar da carruagem, em seguida cada professor terá de submeter à censura prévia qualquer conteúdo que tenha algo a ver com política. Bom, depois da Escola sem Partido, o que mais falta?

Falta, falta sim. O Ministério Público do Trabalho mandou “intimação” (tecnicamente se trata de recomendação) para que a Globo tome uma série de providências para que a novela das oito inclua atores negros e preste um conjunto de informações. Enfim, o MPT está querendo reescrever o roteiro e mudar atores do folhetim (despiciendo tratar, aqui, do problema do racismo existente no Brasil — quem negaria isso? O ponto não é esse). O ponto é que, vingando a tese do MPT, não haverá espaço livre da interferência do MP e do Poder Judiciário. De time de futebol a filmes, de restaurantes a programas de TV, o panóptico ministerial estará (omni)presente. Em vez da política e do voto, o MPT quer apostar no seu papel de vanguarda iluminista. Além do fato de querer ser os Irmãos Coen. Ou o Benedito Ruy Barbosa.

Sem comentários sobre os dois episódios. Eles são autoexplicativos do grau de ativismo a que chegamos. Em breve as famílias terão que fazer licitação pública para as filhas casarem. Vá que algum varão se sinta prejudicado. Pelo princípio da felicidade, entrará em juízo pedindo preferência no namoro. By the way: não existe bom ativismo. Aliás, um dos problemas é que nem a doutrina e nem a jurisprudência fazem ou fizeram a distinção entre ativismo e judicialização (estou careca de mostrar isso). E isso é-foi fatal. Ah, as boas intenções…

Por tudo isso, prefiro falar dos dois episódios de outro modo, a partir de uma alegoria. O Porta dos Fundos fez isso muito bem tendo o texto da Bíblia como pano de fundo (vejam aqui). No esquete, há dois participantes: O publicitário “totalmente cool” e o bispo de uma igreja neopentecostal que necessita de uma campanha para rearranjar a sua igreja que está perdendo fiéis. Reproduzo, de forma aproximada, os diálogos (quem assistiu ao vídeo não precisa ler a transcrição, pulando direto para o restante da coluna):

Diz o Publicitário: “Eu dei uma olhada no livrinho… bacana. Como é o nome? Ah, Bíblia. O título não é bom; como título, não vende. Pensei em trocar o nome, tipo 50 Tons de Bíblia. Ah, Quem mexeu na Bíblia… De qualquer forma, é um bom material. Tem passagens que me fizeram rir muito. Mas é muito longo…”

O bispo intervém: “Mas é a história da humanidade.”

Mas o publicitário continua: “Mas lá por Mateus tem uma barriga. Isso aqui eu cortaria tudo”, mostrando várias páginas do texto. “Jeremias… E quem éSalmos? Noé… Argh… Eu tiraria o personagem do rapaz!”

Perplexo, o bispo pergunta: “Que rapaz?”

E responde o publicitário: “O principal, que diz que é o principal”. Ah, responde o bispo, “Jesus”.

Acrescenta o publicitário: “Não entendi a função dele. Ele não tem carisma…”,emendando: “Ele é filho de quem mesmo? É tudo rocambolesco, meio mexicano.”

O bispo interrompe novamente: “Na verdade, ele é o personagem principal.”E o publicitário ataca: “Ele precisa morrer? E a cruz… Vamos substituir por pneus.” “Mas a história tem dois mil anos”, diz o bispo. “Tá bem. Você quer manter o personagem, OK. Mas, por que Cristo… é esse o nome, não, por que ele tem que ser homem?” “Mas é que…”, gagueja o bispo…

O bispo é interrompido pelo publicitário, que berra: “Quem disse que era um homem? Por que não uma mulher disfarçada de homem, lutando contra o preconceito?”

E o bispo: “Mas eu não gostaria de mexer nisso…”. Volta o publicitário: “A Cléo Pires no papel de Cristo. Isso dá um filme, bispo Carmelo!”. E, chamando a assessoria, diz: “Manda a Bíblia para o Duduxa. Mas não mande nesse papel… Manda em papel couchê… Onde se viu um livro com esse tipo de papel fininho?”. E o bispo vai embora, com a cara amarrada. Fim do esquete.

Bom, o resto aqui não importa. O que importa é comparação, a analogia, a metaforização, a alegorização com o que está ocorrendo com o Direito. É assim que funciona “a coisa” hoje.

2. Outro “livrinho” que não é cool: a Constituição! Mais papel couchê! E funk!

Outro “livrinho” que querem repaginar é a Constituição. Ela está perdendo fiéis. Já ninguém a respeita. Vamos ao diálogo entre o professor e o publicitário:

Publicitário: “Não gostei. Este livro já tem um problema. Tem uma lista muito grande de direitos. Já de cara peca por não ter inteligência artificial, quando fala em pobreza. E erradicar a pobreza. Erradicar já induz violência. E é breguíssimo. Ora, erradicar a pobreza… Isso não vende para quem usa camisa polo e faz compra no exterior. Vamos trocar essa parte por outra. Por exemplo, vamos reproduzir uma parte do hino. A parte que fala de ouro e riquezas. Isso pega bem. Outra coisa que não vende é a parte da divisão de poderes. E por que três poderes? Ora, põe um só: a mídia. Você quer vender ou não seu produto?”

E segue o mister cool“O livro ‘essedaí´é muito grande. Cool é o dos Isteites. Lá só sete artiguinhos. Por isso “issodaí” tem de ser menor e de papel couchê. Mais uma coisa: na nova versão em papel couchê, vai junto um Manual de Instruções e um DVD. Tipo este aqui [e mostra este vídeo – muito cool]. Se não gostou, tem também este vídeo que faz muito sucesso. Ele ensina como a Policia Federal deve fiscalizar. Dá para adaptar. O Brasil devia aprender com esse professor como ensinar Direito”.

E continua o publicitário: “Quanto ao conteúdo, tem mais coisas que são dispensáveis. Esse negócio de hora extra, gratuidade da Justiça. Trabalho que é bom, nem falar, né? Corta fora. Outra coisa: Devido processo legal — isso é contraproducente em termos de fonética. Devido… Já parece coisas de quem está devendo. O país precisa de crédito. Mais: ampla defesa. Você quer o que? O sujeito comete um crime e você quer vender um livro dizendo que ele tem direito a ampla defesa? E ainda, quando o sujeito é pobre, advogado grátis? Enlouqueceu? Tsc, tsc, tsc. Sugiro cortar. Na Avenida Paulista, por exemplo, a venda será zero”.

Constrangido, diz o professor/cliente, “mas isso é assim em todo mundo. Uma constituição serve para isso…”.

“Você é quem pensa isso”, retruca o publicitário. “Nós pagamos os impostos — e atualmente já nem conseguimos viajar uma vez por ano à Miami comprar roupas e outros apetrechos cool — e vem um livrinho dizer que todos têm direito à defesa e que o Brasil é uma república que visa a erradicar (argh) a pobreza e fazer justiça social e diminuir as desigualdades regionais. Ah, ah. Falta só me dizer que esse livrinho diz que condução coercitiva só depois que o sujeito for avisado… Tá de brincadeira. Se você avisar o cara, ele foge… Logo, tem mesmo é que buscar o sujeito na marra. ”

Timidamente, o professor diz: “Bem, isso está em outro livrinho, o CPP”.

CPP, pergunta o publicitário? “Parece a sigla do PCC. Esse é outro livrinho que tem de mudar. O título deveria ser: DHHD — direitos humanos só para humanos direitos. Sacou, teacher? Veja a sonoridade… DHHD!”

Ah, complementa Mister Cool: “Falta só me dizer que o livrinho fala em presunção de inocência. Coisa mais brega isso. Não vende. Vamos colocar no seu lugar algo como ‘a prisão é obrigatória para quem não quer delatar’. Isso é que é cool”.

O professor nada responde.

“Outra coisa que li aqui e que deve ser cortada”, complementa o publicitário, “é esse negócio de proibir interceptações e vazamentos de diálogos… que coisa mais retrógrada. Na era da informática, qual é o problema? Se o vazamento for para o bem, que mal tem? Melhor é arrumar isso na tal lei. Ah: vou chamar o pessoal da arte para cortar isso. Livros com mais de 100 páginas, nem falar”.

Professor: “Mas, senhor, assim acaba com a Constituição”.

Publicitário: “Ah, é esse o nome do livrinho? Constituição? Bom, não importa. Vamos ter de trocar o nome. E temos que colocar uma coisa irada nesse livrinho, algo que vire meme, como o que se vê no Programa do Datena e na GloboNews. Assim: ‘toda decisão jurídica emana do clamor popular’. Isso é que vende. Se liga, teacher”.

“Pois é”, conclui o professor, “não vai sair negócio. Vamos deixar assim. Devolva-me o livro. Este ano está fazendo trinta anos…” E saiu meditabundo, pela porta dos fundos, sem terminar a frase. Em meia hora tinha o compromisso de ministrar uma aula. Não sabia o que dizer aos alunos. Olhava alrededor e se sentia em Aleppo. Olhou para o céu para ver se o planeta, que um dia vai colidir com a terra, não tinha adiantado a chegada. Ligou o celular e viu que no seu grupo de "uats" preferido tinha acabado de receber o tal vídeo do professor que ensina cantando o funk das leis. Ou as leis via funk. Mentalmente o professor pensou em um palavrão rimando. E se deu conta que já não havia saída.

Quando as águas da enchente cobrem tudo, é porque já começara a chover na serra. De há muito.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, 24 de maio de 2018