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“Domínio do fato”, teoria desenvolvida por Claus Roxin: Juristas criticam importação cega de doutrinas alemãs para o Brasil

 

“Domínio do fato”: Juristas criticam importação cega de doutrinas alemãs para o Brasil

                                        Para Luís Greco, Brasil “escuta conversa pela metade e tenta reconstruir o resto”.

 

                                        Importação nem sempre é acompanhada de questões históricas e políticas do país de origem, diz Otávio Luiz Rodrigues…


Por Fernando Martines

 

Um caminho teve de ser encontrado durante o julgamento da Ação Penal 470 no Supremo Tribunal Federal, em 2013. Era o processo do mensalão e o Ministério Público não apresentou provas que ligavam diretamente alguns dirigentes de partidos e executivos de bancos aos supostos crimes. A solução, na perspectiva da acusação, veio da Alemanha.

Até então desconhecida, a teoria do domínio do fato ganhou status de celebridade. Desenvolvida entre as décadas de 1930 e 1960, a tese estipula que também é imputável penalmente quem se beneficia de um crime e estava em posição de comando, mesmo que não tenha agido diretamente.

Os ministros que votaram pela condenação se apegaram à teoria. Mas não lhe faltaram críticas. Juristas brasileiros alertaram que a tese estava sendo utilizada de forma errada. Até que o alemão Claus Roxin, principal autor sobre o domínio do fato, foi a público dizerque suas ideias haviam sido deturpadas.

Trata-se do caso mais emblemático de importação jurisprudencial errada da Alemanha para o Brasil, embora não seja o único episódio. O advogado Luís Greco afirma que a distorção é muito grande. Doutor pela Universidade Ludwig Maximilian, de Munique, ele participou de seminário sobre Direito Contemporâneo organizado pela USP em conjunto com a Universidade de Humboldt entre os dias 17 e 18 de maio.

“As teorias não surgem inventadas por um jurista que é um grande herói e é conhecido por todos os estudantes e profissionais. Essas doutrinas surgem de diálogo entre a doutrina e a jurisprudência. A discussão se dá com um vai e vem das necessidades que o país tem na prática e a reflexão da doutrina sobre os casos reais. O que nós recebemos aqui, muitas vezes, é a manifestação de um autor só. A gente escuta uma conversa pela metade e tenta reconstruir o resto”, disse Greco na primeira palestra do evento.

Circunstâncias ignoradas

 
       Uma voz constante nas críticas dessa tradução errada é a do professor Otávio Luiz Rodrigues Junior, colunista da ConJur. Ele foi um dos organizadores do evento, sediado na Faculdade de Direito no Largo São Francisco, e falou coma experiência de quem fez estágio pós-doutoral em Hamburgo.

              “A má recepção de institutos, doutrinas ou figuras jurídicas estrangeiras é um problema que se tem agravado no Brasil. O uso dessas referências é ainda mais grave pelo efeito inerente ao argumento de autoridade que emana dessas teorias. A importação nem sempre vem acompanhada das circunstâncias históricas e políticas que determinaram o nascimento da teoria em seu país de origem”, afirmou Otávio à ConJur.

 Miscigenação jurídica

Da Alemanha, o advogado Luís Henrique Machado concorda com os colegas. Ele está em Berlim concluindo seu doutorado em Processo Penal pela Universidade Humboldt de Berlim. Para Machado, as doutrinas são importadas sem que se entendam a sua gênese e seu contexto.

“O direito processual penal brasileiro, em especial, sofre, desde sempre, um problema de ‘miscegenação jurídica’. É um direito de origem romana-germânica, mas que tem por tradição importar institutos do direito anglo-saxão, como o tribunal do júri, o Habeas Corpus e a delação premiada, por exemplo. Esse tipo de mistura gera incongruências no momento em que se busca a harmonização do sistema normativo”, diz.

O doutorando aponta a Ação Penal 470 como grande erro no uso de doutrinas importadas. “Alguns ministros do STF compreenderam que a mera posição ocupada em um cargo seria suficiente para se imputar responsabilidade penal. Um equívoco! Tal compreensão é oriunda, na verdade, do direito anglo-saxão, denominada de joint criminal enterprise (empresa criminal conjunta), o que nada tem a ver com a teoria do “domínio do fato”, ressalta.

Realidades distintas


              Durante o seminário na USP, o doutor alemão Christopher Paulus evitou ser enfático ao ser questionado sobre esses erros de importação de doutrina. Ressaltou que ocorrem mais em questões penais, sendo que sua especialização é em Direito Falimentar. Mesmo assim, analisou que o processo pode de fato ser perigoso.

“O perigo de se importar doutrinas alemãs é que a realidade da Alemanha é muito diferente da de outros países. Falo aqui da minha área, do Direito Falimentar. Na Alemanha existem muitas grandes companhias. Na Grécia, a maioria das empresas são pequenas e familiares. As realidades são muito distintas e elas podem não ‘bater’”, disse.

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Fernando Martines é repórter da revista Consultor Jurídico.

Publicado originalmente naRevista Consultor Jurídico, 22 de maio de 2018

 

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