Por Leonardo Léllis em Consultor Jurídico
Promulgada no Congresso Nacional sob forte pressão de músicos no dia 15 de outubro, a Emenda Constitucional 75 de 2013 imuniza de impostos CDs e DVDs, ou arquivos digitais, com obras musicais de autores brasileiros. O objetivo é proteger a indústria nacional da pirataria e a expectativa é que o preço seja reduzido em 30%. Com alcance nacional, a venda desses trabalhos estará livre de impostos estaduais, municipais ou da União.
“A desoneração de bens culturais é sempre uma boa ideia, mas a realização foi infeliz”, avalia o tributarista Igor Mauler Santiago, do Sacha Calmon-Mizabel Derzi, que classifica a discriminação das mídias como um “anacronismo”. Para ele, o problema é a emenda ter sido concebida para beneficiar os músicos e produtores brasileiros, e não o público. “É estranho que não se tenha pensado em um regime abrangente de todo o setor cultural, incluindo cinema, teatro, dança ou artes plásticas”, completa.
O advogado Hélder Galvão, sócio do escritório Candido de Oliveira Advogados e especialista em Direitos Autorais, vê as mídias digitais como uma realidade já consumada e acha que a lei já nasceu velha. “Falar em mídias, como CD, é atingir um pequeno nicho. Os fonogramas viraram souvenires de shows ou objeto de colecionador.”
Galvão lembra que o mercado editorial já possui benefício semelhante. “Vamos aguardar o movimento dos produtores audiovisuais que, no embalo, poderão pleitear essas isenções para os bens que produzem”, disse.
Na opinião do advogado Bruno Zanin, tributarista do escritório MPMAE Advogados, a vantagem deve ser mais ampla. “Todos os serviços e quaisquer mercadorias que visam fomentar a cultura, da forma que for, devem ser imunes”.
“Música é uma forma de arte, assim como pintura e escultura, de modo que a imunidade deveria recair sobre o gênero e não sobre a espécie. Por este fundamento, pode-se alegar que a PEC viola a isonomia, por criar vantagem para o ramo musical, não o fazendo para os demais ramos artísticos, que, pela natureza, estariam em situação equivalente”, diz Carlos Henrique Crosara Delgado, tributarista do Leite, Tosto e Barros Advogados.
Já o advogado especialista em propriedade intelectual Luiz Fernando Villela Nogueira, do Salusse Marangoni Advogados, tem opinião um pouco diferente. Para ele, a EC 75 traz equilíbrio a um mercado fortemente afetado pela internet e pela pirataria. “Vejo como uma equiparação de um setor que vem sofrendo perdas históricas”, disse.
Galvão aponta que, no aspecto econômico, a medida poderá ser uma resposta contra a pirataria no médio prazo. “A tendência é os custos de produção baixarem e tornar o produto mais competitivo e acessível”, disse. Villela Nogueira se mostra otimista quanto ao alcance da medida. “Uma série de profissionais envolvidos estavam sendo prejudicados. Barateando a mídia, todos os envolvidos acabam sendo beneficiados”.
“Veja bem”
Ao mesmo tempo em que a EC 75 tem as melhores intenções reconhecidas, a restriçãoo de origem do material é alvo de ponderação. De acordo com a norma, só trabalhos produzidos no Brasil, de artistas brasileiros, se beneficiam da imunidade. “Um disco do Nelson Freire tocando Carlos Gomes fica de fora, se for gravado na Alemanha, assim como o DVD de um show dos Scorpions no Rio de Janeiro, mesmo que produzido em São Paulo”, exemplifica Mauler Santiago.
O advogado conta que o protecionismo já foi a tônica da Constituição de 1988, mas perdeu força na década de 1990. Em sua redação original, por exemplo, o artigo 171 previa que a lei poderia conceder, às empresas brasileiras, “proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento”.
O artigo foi revogado pela EC 6, de 1995. “Agora [o protecionismo] tem-se insinuado na legislação infraconstitucional como o Inovar Auto [programa de estímulo à indústria automobilística nacional], por exemplo, e reaparece na Constituição com esta emenda”, explica Mauler.
Crosara Delgado afirma que a Constituição veda tratamento diferenciado para contribuintes que estejam em situação equivalente e que as empresas nacionais e multinacionais sujeitam-se à mesma carga tributária com relação aos chamados fatos geradores (que originam o imposto) praticados no Brasil. Isso, segundo ele, pode gerar questionamento. “Entendo que a nacionalidade não seria um bom descrímen para justificar o tratamento tributário entre nacionais e estrangeiros que produzem música no Brasil.”
Para Helder Galvão, a discriminação não é legítima. “O Brasil é signatário de tratados internacionais, como o TRIPs [acordo sobre propriedade intelectual], e isso pode ferir o princípio da nação mais favorecida”, afirma. Em sua avaliação, entretanto, a medida dificilmente sofrerá questionamentos na Organização Mundial do Comércio. Isso porque outros países adotam medidas semelhantes sob a justificativa de estimular a cultura nacional. Portanto, para o advogado, as discussões devem ficar restritas ao âmbito doméstico.
Villela Nogueira reconhece a série de questionamentos sobre igualdade e livre concorrência que a emenda desperta, mas para ele a “função social” de valorização da cultura deve prevalecer. “A EC 75 pode ser encarada como protecionista, mas não vejo nada muito diferente do expediente que muitos países colocam em relação ao produto nacional”.
Amazonas contra
Três dias depois de ter sido promulgada, a EC 75 já ganhou seu primeiro desafeto. O governo do Amazonas ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5.058) contra a emenda no Supremo Tribunal Federal. Como estende a imunidade tributária a todo território nacional, o estado teme prejuízos à Zona Franca de Manaus, polo que concentra boa parte da indústria fonográfica. Os parlamentares do AM votaram contra sua aprovação.
O estado argumenta na ação que a emenda viola princípios e dispositivos que que garantem a diferenciação tributária aos produtos fabricados em Manaus até 2023 — previstos nos artigos 40 e 92 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Na prática, o estado quer evitar que a emenda incentive uma debandada de fabricantes para fora da Zona Franca, em busca de regiões com melhores condições logísticas e mais próximas dos mercados consumidores. O relator da ADI é o ministro Teori Zavascki.