CECGP

CENTRO DE ESTUDOS CONSTITUCIONAIS E DE GESTÃO PÚBLICA

CECGP articula suas tarefas de pesquisa em torno de Programas de Pesquisa em que se integram pesquisadores, pós-doutores provenientes de diferentes países.

POLÍTICA E DIREITO NA TEORIA DE BOBBIO, por Sergio Tamer

bobbio-norberto-ok

 

 POLÍTICA E DIREITO NA TEORIA DE BOBBIO

 

  

SERGIO TAMER

 

Poucos pensadores conseguiram transmitir, analisar e debater, com clareza e densidade, como fez Norberto Bobbio, as idéias mais complexas do mundo político e jurídico da atualidade. Foi um filósofo extraordinário e, por isso mesmo, um dos raros que o século 20 viu nascer no Ocidente. Autor de obras conhecidas no meio acadêmico brasileiro, como A Era dos Direitos, Direita e Esquerda, A Teoria das Formas de Governo, Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, Locke e o Direito Natural, Ensaios sobre Gramsci, O Futuro da Democracia, Os Intelectuais e o Poder , As Ideologias e O Poder em Crise, Teoria do Ordenamento Jurídico, Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna, Teoria Geral da Política [1] –, BOBBIO enriqueceu, sobremaneira, as questões que perpassam dois dos temas de sua grande predileção filosófica: a política e o direito. Aliás, a relação entre política e direito, o “estado de tensão” permanente existente entre ambos[2], mereceu de BOBBIO  um dos mais importantes capítulos na sua Teoria Geral da Política.

Assim, ao teorizar sobre a matéria, BOBBIO[3] diz que a política se comunica com o direito em pelo menos dois pontos distintos: (a) –  o exercício da política através do direito; e (b) – a delimitação e disciplina da ação política pelo direito. No primeiro ponto, a ordem jurídica, como é inevitável, representa simplesmente a vontade do poder político. Assim, o direito[4] nada mais seria do que um produto do poder, sendo que o nexo entre poder político e direito seria tão somente a força física. No entanto, para os que acreditam que há de haver uma correspondência das leis ao ideal de justiça, o direito, então, deixa de ser, unicamente, o produto da vontade dominante. Mas, para que não haja, aqui também, em última instância, a interferência do detentor do poder político, um outro critério de distinção se afigura, qual seja, a distinção entre poder legítimo e ilegítimo. Nesse ponto, a relação entre direito e política é invertida e o poder político deixa de produzir o direito e este é que passa a justificar aquele. O poder político, juridicamente fundado, diferencia-se assim das várias formas de poder de fato. O poder legítimo, ressalta BOBBIO, transforma uma relação de mera força em uma relação jurídica. ROUSSEAU, no seu tempo, já havia percebido que para transformar a obediência em dever, o mais forte precisa transformar a sua força em direito. O mais forte, nas sociedades democráticas, constitui-se no governo das maiorias, exercido, portanto, legitimamente, em nome de todos. Assim entendido, o poder político legítimo é exercido mediante o consentimento da maioria, não podendo, por isso, extrapolar os limites fixados pelo estatuto político.

Com efeito, os governos despóticos não fazem leis, dão ordens, que são as leis ditatoriais, os atos políticos arbitrários, os quais estão enlaçados, com freqüência, à satisfação dos desejos e aspirações exorbitantes dos governantes. As leis democráticas, ao contrário, respeitam as tradições, a cultura e, conseqüentemente, a vontade de um povo para as quais elas se dirigem.

Mas BOBBIO[5], retomando o tema, traça um paralelo entre o princípio fundamental do positivismo jurídico, centrado na máxima hobbesiana de que “não é a sabedoria, mas a autoridade que cria a lei”, e a máxima oposta, da doutrina do Estado de direito, segundo a qual “não é o rei que faz a lei, mas a lei que faz o rei” (“auctoritas facit legem” ou “lex facit regem” ?). Diz, então, que aquele que governa com base em um poder que lhe foi atribuído por uma lei superior a si mesmo, tem a autoridade e não apenas o simples poder do mais forte. Em suma, “quando se exige que o poder seja legítimo, espera-se que aquele que o detém tenha o direito de possuí-lo.”  Porém, em se tratando da legalidade do poder, “exige-se que quem o detém o exerça não segundo o próprio capricho, mas em conformidade com as regras estabelecidas e dentro dos limites dessas regras.”   O filósofo de Turim, então, sublinha que  “o contrário do poder legítimo é o poder de fato, o contrário do poder legal é o poder arbitrário.” 

Ora, da Antiguidade clássica até chegar na doutrina do “constitucionalismo” , após passar pelo pensamento jurídico medieval e moderno, a idéia do primado do “governo das leis”, em contraposição ao “governo dos homens”, parece ter vencido o antigo dilema. É que o poder dos governantes também é regulado por normas jurídicas, as normas constitucionais, a que todos devem respeito . Para BOBBIO, a noção de “Estado de direito” não deve ser entendida restritivamente como Estado no qual o poder político está subordinado ao direito, mas como “a própria destinação final de todo grupo político”, o qual, apoiado num sistema normativo, faz valer a força dessas normas mediante a coerção. Sob o ponto de vista estritamente positivista: “o direito é produto do poder contanto que se trate de um poder por sua vez derivado do direito.”

Norma jurídica e poder, assim, caminham juntos e podem ser considerados como  anverso e reverso de uma mesma medalha.  Ou seja: do ponto de vista do poder, antes existe o poder e depois o direito; para os que entendem o Estado como um conjunto de normas incidentes em um determinado território, antes existe o direito, e depois o poder. O imbricamento, aqui, é inevitável: o direito torna legítimo o poder, enquanto que o poder torna efetivo o direito. Registra-se, então, um permanente e complexo confronto entre direito e poder, isto é, entre “o poder que produz as normas do sistema que por sua vez regulam o poder”. Tal fato faz sobressair, a toda prova, o entrelaçamento indissociável dos dois conceitos, o que levou BOBBIO a afirmar que “o poder sem direito é cego, mas o direito sem poder é vazio”. 

O primado do “governo das leis” resulta no moderno constitucionalismo, com a regulação do poder dos governantes e com a promulgação de constituições escritas. O governo deixa de ser “o senhor das leis” para ser o seu servidor[6] . A legitimidade do poder, então, consiste no exercício de um poder nos limites e na conformidade de leis positivas, distinguindo-o do direito natural; a legalidade permite distinguir o poder legítimo do poder de fato. Legitimidade e legalidade, portanto, devem caminhar juntas, de forma indissociável,  pois uma pertencendo à doutrina do poder e a outra à doutrina do direito, representam,  ambas, a summa potestas, ou soberania. Assim, uma conclusão acerca da norma fundamental teorizada por KELSEN somente seria possível, para BOBBIO, com o entrelaçamento das doutrinas do positivismo jurídico (doutrina do direito) e do Estado de direito (doutrina do poder político). Isto porque a função de “fechar o sistema” da norma fundamental na teoria normativa do direito, é a mesma função que a soberania tem em uma teoria política. Enquanto a primeira (norma fundamental) significa o primado do direito sobre o poder, a segunda (soberania) representa o primado do poder sobre o direito, fato que bem caracteriza a simetria existente entre os dois temas. Donde se conclui que, no vértice do sistema normativo, “lei e poder convergem” [7].

   Adepto da corrente doutrinária que pugna pelo exercício político do liberalismo social – afastando, portanto, à esquerda, os regimes que afrontam as liberdades e, à direita, a “vaca sagrada” do mercado neoliberal, BOBBIO terá escrito uma fecunda e inigualável obra jurídico-política, reflexo direto de sua cintilante e profícua cátedra em diversas instituições italianas.

____________________

P.S.  Neste mês de outubro de 2018, o CECGP – Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública, por meio de seu Núcleo de Ciência Política, celebra o 109º aniversário de nascimento de Norberto Bobbio (1909 – 2004) enaltecendo, assim, sua extraordinária contribuição para o pensamento político contemporâneo. 

___________________

SERGIO TAMER é doutor em direito constitucional pela Universidade de Salamanca e autor dos livros Fundamentos do Estado Democrático e a Hipertrofia do Executivo no Brasil (RS, Fabris, 2002); Atos Políticos e Direitos Sociais nas Democracias (RS, Fabris, 2005); La garantia judicial de los derechos sociales y su legitimidad democrática (Salamanca, Ratio Legis, 2018); é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública- CECGP.

__________________ 

 

[1] Obras editadas no Brasil pelas editoras: Campus, Unesp, UnB, Paz e Terra e Brasiliense, com as traduções respectivas de Daniela Beccaccia Versiani, Carlos Nelson Coutinho, João Ferreira, Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, Marco Aurélio Nogueira, Sérgio Bath, e Alfredo Fait.

[2] Na expressão de CABRAL DE MONCADA, in L. Filosofia do Direito e do Estado. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, Parte II – p.46

[3]  BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política. Rio de Janeiro: Editora Campus, trad. de Daniela Beccaccia Versiani, 2000, p. 232/252

[4]  Conf. Bobbio, o direito aqui exemplificado é entendido como o conjunto de normas, o sistema normativo, dentro do qual se desenvolve a vida de um grupo organizado(Ob.cit., p.232).

[5]  Ob. cit., p. 235

[6]  Numa inversão das palavras de PLATÃO, repetidas como uma máxima políticaPLATÃO, Leggi, 715d. , apud BOBBIO, ob. cit., p. 250

[7]  Ob. cit., p. 252

 

Compartilhe!