Constituição e segurança pública: os desafios do arranjo federal
· MARIA PIA GUERRA
Militares do Exército participam de operação das forças de segurança na comunidade do Preventório, em Niterói. Foto Fernando Frazão/Ag. Brasil
O presente artigo está incluído em uma série dedicada aos 30 anos da Constituição de 1988. Este espaço é compartilhado por professores e pesquisadores integrantes do grupo de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” (UnB – Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição), por componentes do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) e por pesquisadores convidados.
Até o início de 2018, os desafios da segurança pública eram pouco debatidos sob a perspectiva constitucional. Pode-se dizer que as crises políticas da área não chegavam a produzir verdadeiras crises constitucionais. Os trinta anos da Constituição Federal de 1988, no entanto, surpreenderam a todos com a ativação, pela primeira vez, da Intervenção Federal, um instituto destinado a situações de exceção. Esta medida, na realidade, é mais uma solução improvisada para um dilema constitucional latente, parte dos desafios originários do regime constitucional definido em 1988.
O primeiro desafio, a ser debatido neste e num próximo artigo da série, diz respeito ao arranjo federativo. Durante a vigência da Constituição de 1946, a segurança pública era matéria de competência estadual: cabia à União a defesa externa e a organização das forças armadas, cabia aos Estados a defesa interna e a organização das polícias. Durante o regime militar, porém, em virtude da influência da doutrina de segurança nacional, a segurança interna foi parcialmente federalizada: o controle e a direção foram progressivamente absorvidos pelo governo federal militar, embora o custo da execução direta tenha sido mantido nos Estados. Dentre outras medidas, a ditadura (i) militarizou o policiamento ostensivo, que ocorre nas ruas em contato direto com a população, determinando a criação de polícias militares em todos os Estados; e (ii) vinculou as polícias diretamente às forças armadas, o que fez, por exemplo, por meio da criação de um órgão de controle nacional (Inspetoria geral das polícias militares) e da obrigação de nomear generais para o comando das polícias militares.[1] Criou um sistema policial composto por polícia civil responsável pela investigação e polícia militar responsável pelo policiamento ostensivo, duplamente subordinadas aos governadores e ao Exército.
Durante a redemocratização, em decorrência de um desgaste social do autoritarismo e de um fortalecimento dos governadores após as eleições de 1982, o sistema de segurança foi parcialmente alterado. A única modificação relevante, no entanto, foi a descentralização.[2] As competências de controle das polícias retornaram em sua quase totalidade às mãos dos governadores, mas a organização permaneceu a rigor a mesma. A exceção, aqui, foi a política de alguns governadores de oposição ao regime, como André de Franco Montoro em São Paulo e Leonel Brizola no Rio de Janeiro, que buscaram, com sucesso apenas mitigado, reformar as suas polícias.
A Assembleia Nacional Constituinte cristalizou este modelo problemático, a um só tempo descentralizado e engessado. Por um lado, repassou a competência material aos Estados, sem previsão de responsabilidade para a União ou para os municípios, salvo no que se refere a uma futura lei nacional de organização das polícias – nunca elaborada – e à constituição de guardas municipais (art. 144, § 7º e 8º). Por outro, porém, detalhou demasiadamente estas competências no texto constitucional, limitando a autonomia dos Estados na adaptação do modelo aos seus interesses. A segurança pública foi reduzida a um sistema jurídico penal, que para além do trinômio prender-julgar-punir se atém pouco às funções político-administrativas e à necessária articulação institucional entre os atores.
Limitando-nos, como anunciado, ao problema federativo, se o modelo já era originalmente problemático, tornou-se crítico ao longo dos anos. Tanto a União como os Municípios tem progressivamente ampliado os seus investimentos, mas de forma errática, sem coordenação e planejamento, reproduzindo os erros do modelo anterior.
Durante os anos 1990, o governo federal se retirou do campo das políticas de segurança, mantendo apenas uma contida Secretaria de Planejamento de Ações Nacionais de Segurança Pública, sucedida pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). O resultado foi a criação de políticas de segurança fragmentadas na formulação e execução e estreitas na definição de objetivos e estratégias. Durante os anos 2000, acenou para modificações relevantes, ainda no mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, por meio do Plano Nacional de Segurança Pública e do Fundo Nacional de Segurança Pública. A SENASP passou a ter a função de planejar, implementar e avaliar as políticas de segurança em parceria com os Estados e os Municípios, os quais poderiam aderir à produção de planos financiados pelo FUSP a partir das diretrizes federais. Em 2007, o governo Lula lançou o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), para articular, no âmbito federal, estadual e municipal, políticas de segurança e políticas sociais, prevendo investir cerca de R$ 6 bilhões até 2012. O programa inovou ao concentrar esforços na qualificação de profissionais e no desenho de ações a partir de indicadores sociais e de violência, mas pecou pela ausência de medidas de reforma institucional e de adequado monitoramento e avaliação dos projetos financiados. Embora inicialmente ambicioso, foi reduzido no primeiro ano do governo Dilma e abandonado em 2013, fruto do retorno da opção por uma atuação restrita do governo federal.
Algo semelhante ocorre com os municípios. De uma atuação praticamente inexistente nos anos 1990, vem ampliando os investimentos da área de forma acentuada desde 2004. O volume de gastos saltou de 0.03% para 0.08% do PIB entre 2000 e 2015[3] (Peres e Bueno, 2016). As guardas municipais, porém, muito pela ausência de uma coordenação estratégica nacional, têm mimetizado a polícia militar, reproduzindo os mesmos problemas do modelo tradicional ao sobrepor atribuições sem garantir eficiência. A definição constitucional sobre os limites da atuação legislativa local para disciplinar as atribuições destinadas à proteção de bens, serviços e instalações do município, vale notar, teve repercussão geral reconhecida no Supremo Tribunal Federal no RE n.º 608.588 RG / SP.
A Constituição Federal de 1988, não obstante ter instituído um modelo de segurança criticável, dá instrumentos para estabelecer um equilíbrio entre a descentralização favorável à participação local e a centralização promotora de eficiência no planejamento e alocação de recursos. Porém, à diferença do que foi feito com as políticas de saúde e de educação, as quais, além de terem fundos com receitas vinculadas, vêm desde os anos 1990 construindo parâmetros para a distribuição de recursos entre os entes federativos e para a avaliação das suas políticas, nenhum sistema coordenado de segurança pública foi ainda construído. Mesmo se rejeitarmos a ideia de um novo fundo de receitas vinculadas, permanece o vácuo regulatório quanto à organização das polícias no país. Sem definição nacional de estrutura e gastos mínimos, formação básica, protocolos de atuação e protocolos de registro de informações, as políticas continuarão a ser regidas pela improvisação e ineficiência.
Assim, a intervenção federal decretada no Rio de Janeiro, se por um lado indica um novo arranjo político que obriga o governo federal a se envolver nas questões de segurança, por outro, na realidade, acaba por reafirmar o antigo padrão de uma atuação errática vigente desde o fim do regime militar. Sendo operação com custo alto e metas não definidas, pulveriza recursos públicos especialmente necessários em tempos de restrição orçamentária. A ser tomada como parâmetro a Ocupação do Complexo da Maré, foram gastos cerca de R$ 700 milhões durante os 14 meses, aproximadamente R$ 1.7 milhão por dia, sem um relatório adequado de avaliação das metas e resultados. Neste momento, torna-se imprescindível ao menos refletir sobre os legados positivos que a intervenção pode deixar ao sistema estadual e nacional de segurança, a exemplo de novas estruturas institucionais de controle ou parâmetros para a nomeação de comandantes das polícias. Em uma sociedade democrática, mesmo operações emergenciais devem ter instrumentos de controle e de avaliação de resultados. Pouco existe de novo em uma sequência de operações de grande porte que tratam a redução da violência de modo voluntarista. Distinta, neste caso, foi apenas a opção por soluções que desconsideram os contornos constitucionais.
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[1] Decreto-lei federal n.º 317/67, o Decreto-Lei Federal n.º 667/69 e o Decreto Federal n.º 66.862/70.
[2] Decreto-Lei Federal n.º 2.010/83, Decreto Federal n.º 88.777/83.
[3] PERES, Ursula; BUENO, Samira. Pacto federativo e financiamento da segurança pública no Brasil. In: MINGARDI, Guaracy (org.). Política de segurança: os desafios de uma reforma. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013.