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Notícia

Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

A judicialização da saúde, a LINDB e o conceito da integralidade assistencial – por Lenir Santos

 

A judicialização da saúde, a LINDB e o conceito da integralidade assistencial

 

Por Lenir Santos

 

A judicialização, fenômeno que atinge a saúde pública há quase duas décadas, tem na imprecisão jurídica do conceito da integralidade da assistência à saúde a sua principal fonte. Desde o início dos anos 2000 que se discute na saúde e no meio jurídico se o atendimento integral previsto no inciso II do artigo 198 da Constituição comportaria tudo o que existir no campo da saúde assistencial. É essa imprecisão que alimenta a concessão de medidas liminares, muitas vezes em detrimento da organização sistêmica da saúde, que, além de se desorganizar, faz encorpar a sua incompreensão.

A indeterminação conceitual — basta a leitura do inciso II do artigo 7º da Lei 8.080[1], de 1990 — tem levado ao entendimento de que saúde tudo comporta, com o céu sendo o seu limite. Esse conceito inexato e a não adoção das balizas jurídicas, técnicas e sanitárias existentes[2], ao lado da ausência de outras, agudizam os problemas da saúde e agradam o mercado da saúde, em especial as indústrias farmacêuticas[3], advogados e médicos menos comprometidos com o bem comum e até mesmo algumas entidades de pacientes, infelizmente.

A integralidade é um conceito jurídico vago, fluido, equívoco na esteira do conceito de saúde. Basta a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS)[4] de que saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a mera ausência de doenças e enfermidades, afirmação que levou Giovanni Berlinguer[5] a dizer que se adentrasse o saguão da OMS, em Genebra, com tal frase, todos diriam estar ele louco.

Contudo, trata-se de uma importante definição que elevou a saúde a considerações maiores do que a da doença e da atividade curativa, estendendo-a à concepção biopsíquico-social. As condições socioeconômicas são determinantes para a saúde de um povo, tanto que a Lei 8.080, em seu artigo 3º, afirma que os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do país, lembrando, contudo, que sua gestão deve ser única, de um só setor administrativo, não podendo ser dispersa (artigo 198, I, da CF).

Sendo a definição de saúde não unívoca, consequentemente a integralidade da assistência também o será. Daí a organização técnico-administrativa dos sistemas públicos de saúde serem complexos e necessários para conter a vagueza dos conceitos mencionados. Por mais paradoxal que possa ser, a imprecisão da concepção de saúde atua como salvaguarda em relação a mutabilidade saúde-doença-sociedade para manter a perenidade da norma. Por isso a imprecisão jurídica do conceito de integralidade exige constantemente medidas de continência[6] mediante leis que definam estruturas organizativas, diretrizes técnico-sanitárias, parâmetros assistenciais, que devem cercar os sistemas públicos de saúde, de acesso universal, de racionalidade.

Seria impensável conceber um serviço público de saúde sem estrutura organizacional, sem contornos jurídicos a conter o seu transbordamento. O direito à saúde precisa ser modulado por regras legais dotadas de racionalidade sanitária que não o desidrate nem o turbine[7]. Sem esse comedimento, os sistemas públicos podem se desorganizar, sendo até motivo de sua falência. As restrições orçamentárias, o mau uso político, os ataques cotidianos da mídia[8], os interesses escusos, a má judicialização, com mais de um milhão de ações judiciais e os interesses do mercado da saúde prejudicam o SUS dia a dia.

Assim, pode-se perguntar em que a Lei 13.655, de 2018, que altera a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, poderá contribuir para a modulação da integralidade da saúde pelos gestores públicos e pelo Judiciário. Alguns artigos publicados entendem que ela possa vir a ser um freio na concessão de liminares e que se descortinaria uma nova frente para a judicialização, com mais racionalidade nas decisões judiciais em face de dispositivos, como o artigo 20, que dispõe sobre a necessidade de a decisão judicial, administrativa ou a de controle que fundar-se em valores jurídicos abstratos ter que considerar as consequências práticas da decisão.

Essa determinação genérica, de ampla abrangência no campo do Direito e também aplicável no caso da judicialização da saúde, deverá considerar, contudo, as consequências práticas da decisão. Nada mais contundente e prático do que alegações que fazem antever a morte de alguém por falta de socorro público, exceto se se puder demonstrar, com clareza absoluta, que a medida individual poderá causar a morte de dezenas de outras pessoas em contraponto.

O disposto no artigo 22, ao rezar que, na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados, podem suscitar questões difíceis, como uma ação judicial que reclame a realização de tratamento urgente para combate de um câncer, em razão de o tempo definido pelo serviço público para o atendimento ser incompatível com a eficácia do tratamento; ao mesmo tempo pode haver dificuldades concretas do gestor em cumprir a Lei 12.732, de 2012[9], pela falta de financiamento, filas infindas, dentre outras: o que prevalecerá na decisão?

Se o magistrado se prender às agruras do gestor (artigo 22 da LINDB), aceitará o subfinanciamento público e outras incúrias desde o nascimento do SUS? Negará o pedido ou determinará de imediato o cumprimento da Lei 12.732, mesmo sabendo das dificuldades para os demais pacientes e o prejuízo a causar-lhes?

Para casos complexos, não há soluções simples, o que nos leva ao entendimento de que a judicialização da saúde poderá sofrer algum impacto com a Lei 13.655, de 2018, sem, contudo, mudar o seu ritmo. Por quê? Porque a mudança do ritmo da judicialização somente ocorrerá, primeiramente, se as suas causas estruturais forem enfrentadas, como o seu subfinanciamento, a diminuição dos vazios assistenciais, o atendimento às necessidades de saúde mediante planejamento; a melhor compreensão por todos os envolvidos (julgadores, administradores, legisladores e controladores) sobre a organização e funcionamento do SUS; as dificuldades na gestão interfederativa, dentre outras.

É preciso ter a compreensão de que o SUS é um sistema de complexa organização jurídico-administrativa e técnico-sanitária, com vasto arcabouço legislativo, que não somente o artigo 196 da Constituição, para dar conta de comedir a sua imprecisão. Lembramos, ainda, que nem sempre os próprios gestores detém tal conhecimento nem mesmo os advogados públicos que devem defendê-lo.

Resumidamente, podemos arriscar afirmar que a judicialização poderá começar a refluir quando:

·                     as suas causas públicas forem atacadas, como a do subfinanciamento, da regionalização, do planejamento consequente às necessidades de saúde;

·                     ocorrerem melhorias qualitativa e quantitativa na atenção primária;

·                     o conhecimento do direito sanitário for alargado;

·                     houver respeito às normas constitucionais, legais e infralegais que conformam o sistema, em especial a das portas de entrada e da avaliação de tecnologia em saúde, com respeito à Conitec;

·                     houver restrição ao atendimento de prescrição de médico privado para paciente que optou pelo serviço privado[10] (70% da judicialização no SUS em São Paulo é para atender pacientes de planos de saúde);

·                     não for permitido ao médico prescritor ser incorporador stricto sensu de medicamento e produto no SUS, sem avaliação da Conitec e fundamentos sobre as evidências científicas e a não existência de similar no SUS;

·                     o médico do SUS cumprir as normas existentes e não prescrever medicamento e produto não incorporados no sistema;

·                     não circular medicamento e produto sem registro na Anvisa;

·                     a consciência estiver alerta sobre a indústria farmacêutica que atua de modo agressivo na obtenção de altos lucros.

 

As situações apontadas devem ser consideradas como de resguardo da garantia do direito à saúde, sendo algumas delas impostas por lei como balizas de redução do poder discricionário do administrador, para conformar um cinturão de segurança jurídica em torno do conceito da integralidade da assistência à saúde, indeterminado pela sua natureza e que, por isso, exige do legislador e administrador a imposição de parâmetros e balizas moderadoras.

A liberdade do administrador que poderia se estender ao longo do percurso de imprecisão de um conceito jurídico, no dizer de Celso Antonio Bandeira de Mello[11], é limitada, contudo, por um arsenal de outras regras, conceitos, princípios, como no caso do SUS. Os limites do SUS são o seu arcabouço jurídico específico, as normas gerais aplicáveis à administração pública, os valores sociais, o direito sanitário, dentre outros.

Um exemplo seria o Decreto 7.508, de 2011, em seu artigo 28, que ao determinar que o medicamento somente pode ser concedido a paciente que esteja em tratamento no SUS e tenha a sua prescrição feita por médico do SUS, em atendimento nas instalações do SUS, atua como excludente do atendimento de pessoas que não estão em tratamento no SUS, por terem escolhido os serviços privados; isso pode se configurar como medida de contenção da abrangência do universo de atendimento no SUS, organizando-o em benefício de si mesmo e do direito à saúde.

Medidas moduladoras da fluidez do conceito, como a incorporação de tecnologia no SUS (medicamento, produto e procedimentos), mediante avaliação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia em Saúde (Conitec), conforme previsto nos artigos 19-M a 19-U da Lei 8.080, de 1990, com a alteração da Lei 12.401, de 2011[12], são relevantes e precisam ser consideradas ao lado de outras.

Quando um médico do SUS julgar necessário prescrever algo não incorporado como única medida de salvação do paciente, deve fundamentar seu pedido na comprovação de evidências científicas e de que não há no SUS nada que se compare em relação à sua eficácia e outros motivos técnico-científicos. Esse parecer médico deve ser encaminhado à Conitec para que o aprecie, e, após suas informações, ser submetido ao julgamento do magistrado. Sem parecer da Conitec, salta-se um degrau importante na avaliação da tecnologia, mesmo quando stricto sensu. Não há possibilidade de se incorporar tecnologia no SUS sem sua devida avaliação para atender à diretriz do uso racional de medicamentos, preconizado pela OMS[13], sob pena de se estar incorrendo em violação de norma legal. Se se viola todo o tempo essa norma especial (avaliação de tecnologia), porque haveria de a nova norma geral, a Lei 13.655, ser cumprida de modo irrestrito?

Além do mais, o artigo 22, in fine, ressalva que a decisão não poderá causar prejuízo aos direitos dos administrados. Alguém alega que irá morrer ou que a sua saúde ficará agravada de modo irremediável sem este ou aquele tratamento, o que levará o julgador a mudar a sua conduta de hoje? Pensamos que somente se ele lançar mão do arcabouço jurídico-administrativo e sanitário do SUS poderá enxergar prejuízo maior, por encarar os efeitos sistêmicos do SUS. Enquanto não se admitir que o conceito da integralidade da assistência à saúde é indefinido por natureza, impondo-se à lei, e outras normativas administrativas, a contenção racional de seu conteúdo.

Todos esses fatos nos levam a entender que a Lei 13.655, de 2018, poderá balizar melhor as decisões judiciais na área da saúde, sem a amplitude pretendida por alguns, como se a judicialização da saúde passasse a um novo patamar em razão, fundamentalmente, dos seus artigos 22 e 23. Entendemos que esses artigos podem fazer alguma diferença, acrescentando argumentos para lastrear decisões nesse campo, sem ser causa de sua diminuição. Talvez exija mais racionalidade no deferimento de liminares.

Mas estamos longe do verdadeiro enfrentamento da judicialização em seus reais termos, e sem isso ela não refluirá a contento; nem mesmo a medida adotada pelo CNJ, em acordo com o Ministério da Saúde, de contratar pareceres técnico-científicos sobre determinadas doenças, medicamentos, procedimentos conseguirá alcançar a meta de desjudicializar a saúde; talvez possa dar mais consistência técnico-sanitária às decisões dos magistrados. Quem sabe, melhorar as relações entre o Poder Judiciário e a Conitec — que detém o poder de avaliar as tecnologias sob os ângulos da eficácia, efetividade, custo-benefício e evidências científicas — seria mais producente.

Por fim, as medidas necessárias para que a judicialização reflua ainda escorregam pelas mãos, pela ausência de uma sequência de atos do Legislativo, Executivo, Judiciário e da sociedade, que possam, mesmo a longo prazo, produzir os efeitos requeridos. Mas não será a Lei 13.655, de 2018, que conterá essa judicialização, pelos fatos aqui mencionados sobejamente de que leis específicas a respeito de muitos temas em saúde, em especial como se incorpora tecnologia, como devem ser a prescrição de medicamentos e consequentemente quem pode ser considerado paciente e ter legitimidade da ação judicial, a repartição de competências federativas e outras medidas. Se cumpridas, poderiam evitar ser o SUS visto como se fora uma farmácia pública, um serviço complementar aos serviços privados e outras distorções. O SUS tem natureza sistêmica, e essa característica é de sua genética, sem o que não teremos uma sinfonia, mas tão somente notas musicais isoladas.

 


 

[1] Inciso II do artigo 7º: “A integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de competência do sistema”.
[2] Caso o legislador tivesse ao término da definição do inciso II do artigo 7º da Lei 8.080, de 1990, inserido uma vírgula e acrescido: “em acordo à Relação Nacional de Medicamentos (RENAME) e à Relação de Ações e Serviços Públicos de Saúde (RENASES)”, teríamos mais uma norma de contenção da indefinição do conceito, sem se perder de vista a racionalidade das relações que não devem ferir o direito à saúde, reduzindo-o.
[3] Uma leitura da obra de Marcia Angell, A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Como somos enganados e o que podemos fazer a respeito. Rio de Janeiro: Editora Record, 2010; e também do autor Peter Gotzsche, Medicamentos Mortais e Crime Organizado, Editora Bookman, 2014 nos fará ou mudar de ideia quanto às indústrias farmacêuticas ou nos deixar alertas em relação ao seu papel de vendedoras de ilusões caras, que geram altos lucros e podem matar. A autora americana afirma que os americanos gastam o total de US$ 200 bilhões por ano em medicamentos vendidos sob prescrição médica, valor que cresce à taxa de 12% ao ano.
[4] World Health Organization (WHO): www.who.int
[5] Giovanni Berlinguer. Medicina e Política. São Paulo: Editora Hucitec, 3ª ed. 1987.
[6] Os países lançam mão de estruturas que possam auxiliá-los nessa delimitação, como é o caso da britânica Nice (National Institute for Health and Care Excellence), fundada em 1999. A alemã Institutfür Qualitätund Wirtschaftlichkeitim Gesundheitswesen (IQWiG) foi criada em 2004. A agência francesa Haute Autorité de Santé foi fundada também em 2004. A canadense, em 2006, Canadian Agency for Drugsand Technologies in Health, em substituição a agência datada de 1990. Em 1993, foi criado o International Network of Agencies for HTA (INAHTA), que reúne as agências nacionais de ATS e, em 2003, foi criada a Health Technological Assessment International (HTAi), que congrega pesquisadores e operadores de ATS em todo o mundo. Fonte dessas informações: Reinaldo Guimarães. Incorporação Tecnológica no SUS: o problema e seus desafios. Revista Ciência & Saúde Coletiva. Vol. 19, n. 12, Rio de Janeiro, Abrasco, 2014.
[7] O Poder Judiciário e o Ministério Público devem cuidar para que a contenção necessária não extrapole seus limites e restrinja o direito à saúde.
[8] Relatamos fato que ocorreu com um programa do Fantástico, da TV Globo, que fez uma excelente reportagem sobre transplante no Hospital de Clínicas (HC) de São Paulo, em 2018, sem em nenhum momento ter mencionado tratar-se de um hospital público que integra o sistema público de saúde.
[9] A referida lei determina como política pública o prazo de 60 dias para o início do tratamento de câncer, desde o seu diagnóstico.
[10] Defendemos que não encontra fundamento constitucional e legal a proponente da ação ser pessoa que optou pela saúde privada (plano, seguro-saúde ou pagamento direto) e sua ação judicial se fundamente em prescrição de médico privado como se o SUS fosse complementar aos serviços privados por ela escolhido. Não que qualquer pessoa, a qualquer momento, não possa adentrar ao SUS, mas que observe os seus regramentos, suas portas de entrada, devendo até utilizar os exames e prognósticos do serviço privado, mas não usar o SUS como um complemento de seu tratamento.
[11] Mello, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.
[12] Avaliada a tecnologia, caberá à autoridade competente do Ministério da Saúde (Decreto 7.646, de 2011) a sua incorporação, ou não.
[13] Uso racional de tecnologias em saúde, preconizado pela OMS em 1984 e aprovado na Assembleia Mundial da Saúde em 1986.

 

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Lenir Santos é advogada, especialista em Direito Sanitário pela USP, doutora em Saúde Pública pela Unicamp e coordenadora dos cursos de especialização do Idisa — Instituto de Direito Sanitário Aplicado.

 

Revista Consultor Jurídico, 19 de junho de 2018, 6h32