Publicado por Lenio Luiz Streck em Consultor Jurídico
Todos conhecem o famoso livro Papillon, que retrata a fuga espetacular da pior prisão do mundo, a Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Há também o livro escrito pelo verdadeiro prisioneiro que fugiu, René Belbenoit, A Ilha do Diabo (Dry Guillotine — nome original), publicado em 1938. Depois desse livro, a França desativou o presídio. O livro retrata o inferno. O filme, com Steve McQueen, provoca fortes emoções, raiva, indignação.
Pois bem. Desafio a qualquer pessoa a assistir ao filme sem se emocionar. Embora o livro retrate um acontecimento real, trata-se de uma ficcionalização. Quanto mais ficcionalizado, mais nos emocionamos. Choramos. Fungamos pelos cantos do cinema. Ficções da realidade…realidade das ficções, como dicotomizava Warat, deixando cair as cinzas do cigarro que não tragava sobre os papéis em cima da mesa, rodeada de xícaras vazias de café de vários dias.
Emocionamo-nos com as ficções e damos uma banana para a realidade. Qualquer folhetim, com boa trilha sonora, arranca-nos algo que, sem sonoplastia, não verteria. Por isso, tenho uma proposta, sobre a qual já escrevi em outro(s) lugar(es): colocar-sonoplastia-no-cotidiano. Flambar a realidade. Assim, quando a gente vai dar um esporro no mendigo, antes disso toca o alto falante do cotidiano… E a gente se torna terno. Imagine a música do filme Ghost… Minha mão começaria a tremer e uma lágrima desceria em slow motion, fazendo tobogã nas rugas que o tempo já me deu. Bingo. E eu abraçaria o meu semelhante… Isso. Tudo pode ser como…no Natal. Tudo pode ser… Como nas propagandas. O mundo estaria salvo. Alvíssaras. Até que levo jeito para a coisa, pois não? E a verdade… bem, a verdade deve estar lá fora.
A verdade está lá fora… em Pedrinhas e por aí
A verdade está lá fora… em Pedrinhas, no Maranhão, no Presidio Central de Porto Alegre, em tantos lugares. A Ilha do Diabo é aqui. Não só o Haiti é aqui. Papillon é aqui. Imaginem os leitores se, na hora em que o ministro da Justiça estivesse concedendo uma coletiva, alguém mostrasse em um telão as cenas de Pedrinhas… com sonoplastia feita pela Rede Globo. As cabeças decepadas dos presos rolando pelo chão, com trilha sonora dessas holiudianas. O corpo com mais de 150 facadas mostrado com a música do filme Papillon. Os presos gritando em slow motion e um Vangelis de fundo musical. E quando o ministro ou alguma autoridade dissesse “as prisões brasileiras são masmorras medievais”, um música potente da trilha do filme Laranja Mecânica irrompesse no estúdio em que a entrevista estivesse ocorrendo. E aquela gargalhada do personagem do filme de Kubrick, o Alex (A-Lex) entrondamente constrangesse a todos…
Talvez assim pudéssemos levar a sério a discussão sobre essa vergonha nacional que são essas masmorras medievais. Só com sonoplastia no cotidiano. Só com um grande alto-falante. Só com uma espécie de alto-falante fundamental, se me entendem a ironia. Como é possível que o Brasil não se levante face à ignominiosa situação do presídio de Pedrinhas? Perdemos totalmente a capacidade de indignação. Nosso cotidiano nos esfalfelou.
De tanto vermos o vilipêndio dos presos, “normalizamos o nosso olhar”. Não por menos, durante o mutirão carcerário do CNJ em todo país, descobriu-se que 10,4% dos detentos estavam presos ilegalmente. Quer dizer, quase 50 mil pessoas (aqui)! Isso revela que em boa medida o Judiciário e o Ministério Público também são parte do problema, afinal, como é que não se enxerga um contingente de gente que lotaria qualquer estádio da Copa? E olha que o mutirão ainda não terminou… Uma explicação, talvez, esteja no fato de que as responsabilidades legais e éticas individuais terminam por se diluir no conglomerado, em que cada ser humano — ator jurídico — se funcionaliza, transforma-se em uma espécie engrenagem dentro da grande máquina do sistema punitivo. Assim como Arendt aponta em Eichmann in Jerusalem, é o espaço da burocracia que desumaniza o homem e dessignifica a barbárie.[1] Criamos capas de sentidos que nos imunizam contra o dar-se-conta-da-barbárie. Puzilanimizamos o nosso cotidiano. Sim: pu-si-la-ni-mi-za-mo-NOS!
Em 2009, em face de vários processos nos quais oficiei como procurador de Justiça, pelos quais constatei a barbárie no sistema prisional gaúcho, representei ao procurador-geral da República pela intervenção federal no estado. Mostrei filmes, documentos, depoimentos. Números e mais números. Desgraças e mais desgraças. Mostrei que o presídio central está(va) loteado pelas facções criminosas. Parte do presídio foi “vendida” por uma facção a outra. Quando o preso ingressa no sistema, deve optar por umas das facções… Pois bem. O então procurador-geral pediu informações à governadora. Que disse estar tomando providências-que-nunca-foram-implementadas. Como está hoje? Perguntem à Associação dos Juízes do RS que representou à ONU e à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
E Pedrinhas? Muito pior. Dezenas de mortos no ano passado, três só este ano. Cabeças cortadas, corpos picados à faca. Os presídios brasileiros deixam as celas abertas, exatamente para que as facções dominem as galerias. As pedras sabem disso. Pedrinhas sabem disso. Todos sabemos. Mas, sem sonoplastia, sem fundo musical, não nos indigna(re)mos. Os dominadores-chefes dos presídios cobram pela droga distribuída, pelos celulares, pelo “seguro-de-bunda”, pelo lugar para dormir… E furam a mão (ou o pé) do inadimplente. Muitos presos não querem sair no Natal e em datas festivas porque têm de executar tarefas fora do “sistema”. Os familiares dos presos têm que comprovar os depósitos por recibo bancário. Tudo profissionalizado. Pelos menos a ordem é que se use o banco estatal. Parece que não confiam nos bancos privados…
Beccaria morreu e nasceu o canibalismo
Quando pensávamos que o sistema carcerário tinha atingido o fundo do poço em Pedrinhas… esta semana a revista Época narrou canibalismo em um presídio do Rio Grande do Norte (aqui). Então? Escrevi esta coluna sem fundo musical. Ainda consigo me indignar. Mas o grosso da comunidade jurídica e parcela considerável da população acha que, se os presos estão lá e sofrem, é “porque alguma coisa devem ter feito para merecer isso”. Como se isso fosse um carma que cada preso tivesse que carregar. Beccaria teria arrepios se visse os castigos corpóreos pelos quais passam os presos de terrae brasilis. Mas, não foi para isso — o fim das penas corporais — que surgiu o iluminismo penal? Beccaria morreu. Nem seu legado teórico é respeitado.
E sabem o que vem pela frente? Em vez de construirmos presídios dignos, como os países civilizados fazem, vamos criar um atalho. Pindorama é pródigo nisso. Vamos atirar a água suja fora…com a criança dentro. Ou seja, em vez de construirmos presídios, já começam a surgir propostas de acabar com tudo. Sim. Para que prender? Se a prisão é tão ruim, acabemos com as penas e as prisões, dizem alguns setores.
Eis o busílis da questão. Criamos o caos, incentivamos o inferno prisional, não fazemos nada para evitá-lo e, depois, apresentamos a solução: prisão só para quem “precisa”. Só que não se sabe o sentido da tal “precisão”. Ah, dizem alguns, prisão é só para crimes violentos. OK. E o que é um crime violento? Sinto um cheiro “estamental” no ar… Voltarei a esse assunto em outra coluna.
De todo modo, ao escrever esta coluna, lembrei-me de Anatole France, poeta e escritor que viveu no século XIX. Com sua ácida crítica, cunhou um “aforisma” genial: “A Lei, em sua magnifica ‘igualdade’, proíbe ao rico e ao pobre dormir debaixo de pontes, assim como mendigar pelas ruas e furtar pão”. A diferença é que, desde logo, sabemos quem não será jamais “pego pelas malhas dessa lei”. Por mais igualdade que exista na lei, alguns não serão apanhados… pela simples razão que a eles não se destina. Há outro dito castellano que ajuda a entender o problema: Las leyes son como las telarañas: los insectos pequeños quedan atrapados en ellas, los grandes las rompen.
Numa palavra final
O que me impressiona, entre tantas coisas — e peço para os meus estagiários ligarem a trilha sonora — é que a OAB e outras entidades precisem fazer queixas para organismos internacionais. Inacreditável. Isso é a confissão de que fracassamos. Cá para nós. Um rotundo fracasso. Se não temos mecanismos internos para preservar os direitos humanos da população carcerária, vamos entregar os pontos. Arriar a bandeira. Não confiamos em nossas instituições para resolver isso? Não, por favor, não respondam…
[1] Está para sair um livro de um orientando meu, Rosivaldo Toscano, que aborda essa dimensão perversa contida na transformação das instituições estatais em grandes corporações, voltadas a uma eficiência numérica e cega, e seus efeitos nefastos ao sistema de Justiça como um todo.