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Notícia

Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Observatório Constitucional

Publicado por André Rufino do Vale em Consultor Jurídico

O próximo 3 de fevereiro marcará o início de mais um ano judiciário, com a já tradicional cerimônia de abertura no Plenário do Supremo Tribunal Federal, onde estarão reunidas as principais autoridades dos três Poderes da República para, entre outras solenidades, destacar os avanços, diagnosticar os problemas e traçar as metas para o aperfeiçoamento das atividades do Judiciário neste ano de 2014. Entre os vários possíveis temas que estão a merecer maior atenção no momento, talvez o que esteja a cobrar um maior espaço no debate público seja o referente à deliberação no Supremo Tribunal Federal.

É cada vez mais notória entre os juristas a percepção de que algo não vai bem com a prática deliberativa do STF. Não obstante, apesar de ser crescente a noção quanto a alguns sintomas mais agudos — como atestam os múltiplos comentários que nos últimos meses vieram a público sobre os “julgamentos midiáticos”, os “votos extremamente extensos”, “o sensacionalismo” etc. —, o diagnóstico dos efetivos problemas que podem ser constatados na prática deliberativa do STF[1] parece estar distante de constituir uma pauta para debates mais produtivos.

O resultado tem sido um exagerado gasto de energia com o tema da transmissão dos julgamentos pela TV Justiça, que parte do pressuposto — muitas vezes equivocado — de que a comunicação televisiva representa o único ou o principal fator responsável pelos perceptíveis déficits de deliberação nos julgamentos do STF. Alegações sem base empírica e discussões pouco aprofundadas têm levado ao número cada vez maior de adeptos às propostas de suspensão da transmissão ao vivo dos julgamentos, o que culminou no já amplamente conhecido projeto de lei que, protocolado na Câmara dos Deputados em dezembro passado, pretende acabar com essas transmissões.

É inegável que a TV Justiça representa um elemento relevante na atual prática deliberativa do STF e que precisa fazer parte das análises e dos debates que sobre o tema devem se produzir. Mas resumir e limitar a discussão à sua existência e à sua atividade de transmissão ao vivo dos julgamentos é menosprezar em demasia o potencial que o tema da deliberação possui para ser estudado e levar às reformas hoje necessárias nas práticas de julgamento do STF.

As práticas de deliberação das Cortes Constitucionais variam conforme os distintos desenhos institucionais que cada sistema pode assumir e que estão primordialmente relacionados, entre outros fatores, (1) ao ambiente institucional onde ocorrem as deliberações, que podem ser fechados ou secretos, por um lado, e abertos ou públicos, por outro; e à (2) apresentação institucional dos resultados da deliberação, as quais podem ocorrer em texto único, conforme o modelo de decisão per curiam, ou por meio de texto composto, que corresponde ao modelo de decisão seriatim. A atual prática do STF conforma um modelo bastante peculiar de deliberação aberta ou pública que adota o modelo de decisão seriatim e que faz parte da histórica tradição de julgamentos da Corte. Basta uma consulta rápida às principais obras sobre a história do STF para se constatar que, já nos seus primeiros anos de funcionamento, nos julgamentos mais rumorosos o tribunal se transformava em verdadeiro “teatro” aberto ao público, o qual lotava a sala das sessões para aplaudir as sustentações orais de advogados como Rui Barbosa e se manifestar a favor ou contra um ou outro voto, muitas vezes sob as advertências do presidente[2].

A atual pretensão de se construir um debate em torno do papel da TV Justiça e verificar o seu impacto na argumentação jurídica produzida no Plenário do STF teria que envolver todos os aspectos desse modelo de deliberação, especialmente o da publicidade, para o qual a transmissão televisiva representa, observe-se bem, apenas um meio adicional de comunicação. No contexto mais amplo da publicidade dos julgamentos, a suspensão das transmissões televisivas seria um mero paliativo, pois remanesceriam os demais veículos de divulgação das atividades do tribunal, como a Rádio Justiça, o Canal do STF no You Tube e a onipresente imprensa especializada. Se quisesse ser de fato coerente e responsável por todas as suas consequências, o discurso que defende a suspensão das transmissões dos julgamentos teria que também justificar, com os mesmos argumentos, a eliminação de todos os canais de divulgação em tempo real das deliberações plenárias. E observe-se que ainda assim poderia ser falacioso, pois a eventual suspensão de todos esses mecanismos de comunicação não impedirá que uma sala de sessões lotada de juristas, de profissionais da imprensa e do público em geral possa causar tanto impacto na postura deliberativa de cada ministro quanto as transmissões televisivas. Para uma teoria da argumentação jurídica, as influências externas nas interações argumentativas entre os juízes podem ter causas muito semelhantes entre si em se tratando do telespectador ou do público presente no Plenário. O problema então seria, no fundo, a publicidade dos julgamentos, em todos os seus aspectos, e não apenas as transmissões pela TV Justiça.

Assim, levado às últimas consequências, esse discurso teria que defender a adoção de um genuíno modelo fechado ou secreto de deliberações, utilizando-se dos modelos institucionais que são referência no direito comparado, como os praticados em tribunais constitucionais europeus, em especial os da Alemanha, da Itália, da Espanha, de Portugal, entre outros. Nesse caso, poderia encontrar a barreira estabelecida pelo art. 93, IX, da Constituição. Mas se ainda assim o fizesse, não deveria deixar de considerar que mesmo nesses modelos secretos ou fechados os tribunais deliberam sob os olhares atentos da imprensa, que se utiliza de diversos mecanismos — em alguns casos não necessariamente legítimos — para obter informações sobre tudo o que se passa no interior do ambiente fechado das deliberações, e muitas vezes consegue saber de detalhes tão fidedignos quanto aqueles que poderiam ser alcançados nos sistemas que adotam a publicidade dos julgamentos, e que não raro podem exercer alguma influência na argumentação jurídica desenvolvida reservadamente entre os magistrados.

É preciso entender, portanto, que “julgamentos midiáticos” podem existir em qualquer modelo de deliberação, público ou secreto, e que as propostas de soluções meramente paliativas, como a suspensão das transmissões televisivas, não agregam nada de substancial à necessária construção de um profundo debate sobre esse interessante tema. O aperfeiçoamento das práticas deliberativas dos tribunais constitucionais não exige impreterivelmente soluções de “tudo ou nada”, como o fechamento dos modelos públicos ou a abertura dos modelos fechados. Ele pode ser alcançado pelo paulatino desenvolvimento de uma série de práticas internas de interação colegiada que visem produzir uma maior qualidade das trocas argumentativas entre os juízes, cujo resultado é a construção de decisões melhor fundamentadas.

Tudo parece indicar que as principais questões sobre a deliberação no STF devem ser buscadas, entre outros aspectos institucionais, na atual configuração do modelo de decisão seriatim que é praticado no tribunal, e que, ressalte-se novamente, pouco ou nada seria alterado se eventualmente fossem suspensas as transmissões ao vivo dos julgamentos. Em contraste com o modelo de decisão per curiam, que privilegia a apresentação do resultado da deliberação como “opinião do tribunal” em texto único, o modelo de decisão seriatim se caracteriza pela produção de um agregado das posições individuais de cada membro do colegiado, cujos votos são expostos “em série” em um texto composto — aí está o significado do termo em latim seriatim. Nos tribunais que adotam esse modelo, a deliberação comumente não se desenvolve com o objetivo de produzir um texto final com uma única ratio decidendi que possa representar a posição institucional da Corte — unívoca e impessoal —, mas como uma proclamação sucessiva das decisões individuais dos membros do tribunal, normalmente precedidas de um discurso que cada juiz tem o direito de fazer, seja por meio de um texto escrito por ele preparado previamente ou por meio da improvisação oral, para apresentar publicamente sua própria argumentação e seu julgamento individual do caso. O resultado da deliberação é apresentado em texto composto pelos diversos votos e suas respectivas ratio decidendi, tornando bastante complicada em algumas ocasiões a tarefa de definir com precisão o fundamento determinante da decisão do tribunal, a qual normalmente pode ser realizada pela extração do “mínimo comum” entre os distintos argumentos individuais. Na prática, uma das consequências da adoção desse modelo é a maior importância que adquirem as ratio decidendi de cada juiz individualmente consideradas para a técnica de precedentes. Cada juiz passa a estar mais vinculado a suas próprias decisões e argumentos, de modo que não é estranha a esses sistemas a produção de um “overruling pessoal”, na hipótese em que determinado juiz tenha que rever seu próprio posicionamento.

Atualmente, talvez seja a prática deliberativa do Supremo Tribunal Federal do Brasil um dos exemplos mais claros e fidedignos desse modelo de decisão seriatim e de publicação dos resultados da deliberação em forma de texto composto. E é bem provável que ela remanesça como uma das poucas práticas que ainda mantém, de modo bastante íntegro, as mencionadas características desse modelo seriatim, visto que outros tribunais, que um dia também chegaram a adotá-lo, posteriormente promoveram amplas reformas que o modificaram ou o substituíram por completo em seus procedimentos de julgamento, ou pelo menos estão discutindo profundamente a necessidade de sua alteração. O modelo de decisão seriatim corresponde à tradição dos órgãos judiciais colegiados do Common Law, como o King’s Bench, cujas sessões deliberativas ficaram caracterizadas pelo pronunciamento “em série” (seriatim) dos discursos (speech) individuais de cada juiz, os quais eram dessa forma consignados nos textos das decisões destinados à publicação (published reports)[3]. O costume britânico de proferir e publicar decisões na forma de seriatim opinions foi incorporado pela Câmara dos Lordes (House of Lords), que, no exercício da função judicial pela Law Lords — ressalte-se, sempre considerada não muito distinta daquela exercida por um organismo legislativo, como é a House of Lords — por muito tempo manteve a prática de se manifestar através do conjunto das decisões individuais de cada juiz, as opinion of the Lords. Esse tradicional modelo sofreu algumas modificações no recente ano de 2009, com a criação da Supreme Court of the United Kingdom, a qual assumiu as funções judiciais antes exercidas pela Law Lords e incorporou uma prática de apresentação institucional do resultado de suas deliberações que ainda proclama as opiniões dos Lordes, mas que desde então passou a ser alvo de contundentes críticas e, muito provavelmente, deve ser objeto de alguma reforma que o torne mais próximo dos modelos per curiam.

Um exemplo claro de alteração desse modelo por meio do desenvolvimento de práticas alternativas de deliberação pode ser encontrado na história da Suprema Corte norte-americana. Nos seus primeiros anos de funcionamento — precisamente entre os anos de 1793 e 1800 —, seguindo o costume judicial inglês, a Suprema Corte norte-americana anunciava suas decisões através das seriatim opinions de seus membros[4]. Cada Justice pronunciava seu voto individualmente e o conjunto de todas as opiniões expostas “em série” era assim apresentado ao público. Quando John Marshall se tornou Chief Justice, a Corte passou a adotar a prática de anunciar seus julgamentos em uma single opinion, que dessa forma passava a representar a opinião expressada pela maioria de seus membros. A partir de 1801, os Justices deixaram paulatinamente o costume de proclamar individualmente seus votos e passaram a estar mais comprometidos com a representação da unidade institucional da Corte, através da construção colegiada de uma única decisão, a opinion of the Court, dotada de uma única ratio decidendi. A redação seria então incumbida ao Chief Justice, que no caso era Marshall, mas o texto deveria expressar, em vez de sua posição pessoal, a opinião do colegiado de juízes, o qual teria que falar em uma só voz (speak in one voice). Essa inovação na prática deliberativa dos Justices demonstrou-se crucial para a afirmação da Suprema Corte como unidade institucional em face dos demais Poderes, num contexto político conturbado que marcou os primórdios da república norte-americana, e foi reconhecida posteriormente como um dos grandes feitos da histórica carreira de Marshall[5].

Este é apenas um exemplo. Existem outros mais, mas não é necessário dar continuidade a esse relato. O fato é que o modelo de decisão seriatim praticado no STF tem dado sinais claros de esgotamento e talvez este seja o momento oportuno para se começar a refletir sobre a necessidade de sua reforma. As experiências históricas de outras Cortes Constitucionais que um dia adotaram o mesmo modelo, mas que em algum momento o substituíram ou o modificaram, ou pelo menos estão produzindo um debate sobre a necessidade de sua reforma, podem trazer algumas luzes para o debate. Não se trata de importar modelos estrangeiros, mas de conhecer e compreender o fato de que, invariavelmente, as Cortes Constitucionais que adotam esse modelo de decisão mais cedo ou mais tarde acabam sentindo, na prática, a necessidade de reformá-lo de algum modo que resulte em mais unidade de seu órgão colegiado e lhe permita falar com uma só voz. A unidade institucional do corpo deliberativo, independente das figuras individuais de cada magistrado, acaba sendo percebida como um requisito indispensável para a autoridade jurisdicional e o prestígio político e social de uma Corte.

O aperfeiçoamento das práticas deliberativas do STF deve passar por reformas justificadas por essa preocupação de fazer o tribunal se pronunciar como uma unidade institucional, as quais não envolvem, pelo menos em princípio, a suspensão das transmissões dos julgamentos pela TV Justiça. Tais reformas exigirão uma série de aperfeiçoamentos nos diversos aspectos que caracterizam o peculiar modelo brasileiro de deliberação, em especial o formato de apresentação pública do resultado do julgamento. Este não é momento nem o lugar para apresentar e justificar propostas de reforma, mas é possível antecipadamente vislumbrar que muito em breve chegará a hora de se rever, por exemplo, o formato dos acórdãos, especialmente das ementas. O ano judiciário que agora se inicia pode ser uma boa oportunidade para se refletir sobre todos esses aspectos e repensar os desenhos institucionais da deliberação no STF.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

[1] Um levantamento preliminar (não exaustivo) de problemas, como hipóteses de trabalho de pesquisa empírica, está apresentado em: VALE, André Rufino do. A deliberação no Supremo Tribunal Federal: ensaio sobre alguns problemas e perspectivas de análise teórica. In: FELLET, Andre; NOVELINO, Marcelo (org.). Constitucionalismo e Democracia. Salvador: Juspodivm; 2013, pp. 329-348.

[2] COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2ª Ed. São Paulo: Ieje; 2007, pp. 35-36.

[3] ZOBELL, Karl M. Division of Opinion in the Supreme Court: a history of judicial disintegration. In: Cornell Law Quaterly Review, vol. 44, 1958-1959, pp. 187-192.

[4] ZOBELL, Karl M. Division of Opinion in the Supreme Court: a history of judicial disintegration. In: Cornell Law Quaterly Review, vol. 44, 1958-1959, pp. 186-214.

[5] ZOBELL, Karl M. Division of Opinion in the Supreme Court: a history of judicial disintegration. In: Cornell Law Quaterly Review, vol. 44, 1958-1959, pp. 193-194. Sobre os primeiros anos de Marshall na Suprema Corte e seu papel na construção da nova prática das opinion of the Court, vide: HASKINS, George L. Law versus politics in the early years of the Marshall Court. In: University of Pennsylvania Law Review, vol. 130, 1981-1982, pp. 1-27.