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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Justiça Criminal

Publicado por Pedro Canário em Consultor Jurídico

Há um “autismo completo” quando as autoridades brasileiras decidem discutir o sistema carcerário do país. Na análise do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, existe uma infinidade de ideias, que não são difíceis de implantar e podem atenuar o problema, mas que nunca saem do papel. O motivo, dispara, é o “jogo farisaico” do qual participam União e estados: este diz que não tem verba suficiente para tratar do problema como deve; aquela alega que pode ajudar, mas que não tem nada com isso. 

Quando foi presidente do Conselho Nacional de Justiça, o ministro pôde ver de perto o tamanho do problema do sistema carcerário e concluiu que, na verdade, não se trata de um problema carcerário. “É um problema de segurança pública, e todos temos que nos envolver”, insiste. E por “todos” quer dizer todos mesmo: Executivo, Legislativo, Judiciário e sociedade. 

Dados do Departamento Penitenciário Nacional, o Depen, do Ministério da Justiça, mostram que o Brasil hoje tem 550 mil presos. Desses, cerca de 220 mil, ou 40%, estão em prisão provisória. Ou seja, estão presos aguardando uma decisão condenatória. Para o ministro Gilmar Mendes, “isso fala mal da Justiça Criminal, e fala que o sistema precisa de reforma”, conforme afirmou em entrevista à revista Consultor Jurídico. 

À frente do CNJ, o ministro acompanhou casos de pessoas presas há mais de dez anos ainda sem condenação, ou, pior, pessoas que já haviam cumprido suas penas mas continuavam encarceradas. Por isso criou o Mutirão Carcerário, grupos de servidores do Judiciário que iam, em regime de força-tarefa, aos estados para mergulhar nos processos criminais com réus presos e fazer o acompanhamento da situação. 

Hoje, o problema continua. E as soluções apontadas pelo ministro continuam as mesmas: fazer os inquéritos policiais andarem, para que os crimes cheguem aos tribunais e, depois, fazer os processos andarem. Outra medida é ampliar as penas alternativas e investir mais em outras formas de medidas cautelares. Mas o que pode mesmo ajudar é pôr as ideias em prática.

Como avalia o ministro, os estados reclamam que não têm verba, mas o Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), do governo federal, já dispõe de R$ 2 bilhões, que não é reclamado pelas administrações estaduais. E “as autoridades do Ministério da Justiça falam como se estivessem falando do sistema carcerário da Bolívia. O Maranhão é no Brasil”. 

Em visita à redação da ConJur, em São Paulo, o ministro falou aos jornalistas Márcio Chaer, Maurício Cardoso, Marcos de Vasconcellos e Elton Bezerra.

Leia a entrevista:

ConJur  — Anos atrás, quando se falava em ativismo judicial, havia certo entusiasmo, até aplausos. Hoje parece que a coisa está se revertendo, o senhor não acha?

Gilmar Mendes — É preciso ter muito cuidado com isso. A Constituição confere tarefas muito diferenciadas para o Judiciário. Por exemplo, o controle da omissão, que é uma inovação radical da Constituição de 88. Criaram-se dois instrumentos para isso: a ação direta por omissão e o mandado de injunção, que é uma ação de caráter individual. Claro que, aqui, o constituinte está querendo que o Judiciário supra as omissões existentes, ou concite o Legislativo a fazê-lo. Ou mesmo que eventualmente edite normas provisórias. Quer dizer, como não ser “ativista”, por assim dizer, nesses contextos? Diante de omissões, às vezes, históricas, de legislações que nunca se editam. Ao mesmo tempo, sabemos que legislações muito complexas não serão editadas pelo Judiciário.

ConJur — Por quê?

Gilmar Mendes — Porque elas envolvem aspectos orçamentários escolhas e ponderações. São regras de transição que dificilmente poderão ser feitas pelo Judiciário. E quando o Judiciário intervém, acaba provocando problemas. Vide o caso dos precatórios, em que o Legislativo tinha encontrado um modelo de parcelamento, o CNJ regulamentou, veio o Supremo e declarou inconstitucional. Depois se descobriu que os governos municipais passaram a não pagar nem aquele mínimo estabelecido, porque, não podendo pagar o máximo, também não pagavam o mínimo.

ConJur — Isso até que se decida pela modulação.

Gilmar Mendes — Até que se decida pela tal modulação. Coube a nós o papel – estranho, para dizer o mínimo – de dizer que, enquanto não vier a definição da modulação, que fique em vigor a regra que declaramos inconstitucional. Então foi um gol contra do ativismo. É aquela coisa de “calcemos as sandálias da humildade”, um caso atípico.

ConJur — Como o senhor avalia esse movimento da classe política procurar cada vez mais o Judiciário para resolver seus problemas, inclusive os institucionais?

Gilmar Mendes — Talvez seja porque não haja instâncias de solução. Talvez os conselhos, conselhos de líderes, comissões de líderes etc. não estejam funcionando a contento, o que leva a um esgarçamento. E aí tudo acaba num mandado de segurança no Supremo. É o que tem acontecido. Falta de um diálogo institucional no âmbito do próprio Congresso. Essa, talvez, seja a causa. Agora, por que é que isso ocorreu? Talvez porque tenhamos muitos partidos, muitas forças políticas, e talvez as próprias lideranças congressuais já não tenham condições de arbitrar muitos desses conflitos.

ConJur  — Mas muito se fala sobre a judicialização da política como um aspecto negativo.

Gilmar Mendes — Um dado é inevitável: a possibilidade ampla de impugnar leis em ADI já é bastante amplo. No caso do parlamentar, basta o partido com um representante em uma das casas para entrar com a ação. No Congresso, essa voz vale pouco. Então, quem estiver na oposição a um projeto aprovado, obviamente que vai tentar derrubar no Supremo. Agora, fala-se muito em judicialização em relação às questões políticas. A desentendimentos quanto a projetos, modelos de regimentos, etc. Nesse caso, me parece que é mais um esgarçamento, uma falta de legitimidade do próprio processo político.

ConJur — O STF caminha para ser uma corte puramente Constitucional?

Gilmar Mendes — Isso não existe. O tribunal já é a corte constitucional do país, mas se olharmos qualquer corte constitucional — a Corte Constitucional alemã, que talvez seja hoje o maior paradigma, por exemplo —, veremos que há competências penais, eles processam seus próprios juízes, o presidente da República etc. Ela tem competências específicas, que não são apenas constitucionais. Alguns conflitos que são de natureza constitucional, como conflitos federativos importantes, mas não existe esse modelo puro. E as questões que realmente ocupam o Supremo hoje são questões constitucionais que vêm nas ações de controle abstrato [ADI, ADC e ADPF] e nos REs. E tem uma linha talvez menos clara, mas que discute questões importantes, que é o Habeas Corpus.

ConJur  — Nos outros países as cortes constitucionais julgam Habeas Corpus?

Gilmar Mendes — Não, mas se discutem, às vezes, questões relativas à liberdade num recurso constitucional específico. No Habeas Corpus, muitas vezes são discutidas questões puramente constitucionais, ligadas à liberdade. Mas também muitas vezes discutimos questões processuais importantes. Por exemplo, a aplicação do do Código de Processo Penal, ou o uso da prova ilícita, o direito de defesa. Muitos poderiam dizer  que isso não deveria estar no Supremo, mas agora há uma tendência de alguns colegas, e eu tenho muito medo, de fazer uma restrição ao Habeas Corpus.

ConJur — Por que medo?

Gilmar Mendes — Até por causa do aspecto estatístico. O índice de concessão de Habeas Corpus é muito alto no Supremo. Chega a 30% nas Turmas, o que é um índice alto e significa que houve algum erro, alguma violação, em 30% dos casos que chegaram até lá. E às vezes são questões básicas, como prisão por crimes famélicos, crimes de pequena monta.

ConJur — E isso demonstra que o HC não pode ser restringido.

Gilmar Mendes — Ora, isso mostra que esse é um papel importante do Habeas Corpus, porque hoje há uma discussão no tribunal sobre essa questão. A própria 1ª Turma chegou a sustentar que, para o Supremo, só deveria ir o recurso ordinário e não o Habeas Corpus autônomo. Eu sou contra. Isso vai afetar aquilo que se chama jurisdição constitucional da liberdade.

ConJur — Então a competência para julgar Habeas Corpus não pode ser reduzida?

Gilmar Mendes — Se há uma competência que não pode ser reduzida é essa. O Habeas Corpus é exatamente o mecanismo da jurisdição constitucional da liberdade, é uma forma importante de se discutir pelo menos a legalidade da prisão. Isso corresponde a uma tradição muito antiga, ainda da República Velha. Romper com isso agora é romper com uma tradição já centenária em nome de argumentos estatísticos.

ConJur  — Hoje se fala muito na quantidade de processos que estão no Supremo. Seria o caso de uma redução de competência?

Gilmar Mendes — Veja, as cortes em geral — e aí tanto a Corte Suprema dos Estados Unidos quanto as cortes constitucionais europeias —, quando elas têm recursos, restringem por um modelo de seleção. Entre nós foi muito difícil aprovar a Repercussão Geral. E a seleção, portanto, é muito restritiva. O que é que se diz na Constituição? Que será rejeitado o recurso se houver oito votos no sentido de sua rejeição. É a Repercussão Geral. É o contrário do que se pratica em todo o mundo. Em geral, com turmas, grupos de três, quatro, já pode rejeitar. Aqui, precisa de oito votos para rejeitar a Repercussão Geral. O que significa, contrário senso, que com quatro votos a favor você manda subir o recurso.

ConJur — E por que ficou assim?

Gilmar Mendes — Isso não foi uma opção do Supremo, mas do legislador constituinte. Foi difícil passar a reforma constitucional. Teve a pressão da OAB e da sociedade, dizendo que não pode restringir o acesso à Justiça, que todos têm de ter acesso ao Supremo. Então ficou esse modelo.

ConJur — Passaria uma emenda restringindo?

Gilmar Mendes — Ainda mais? É uma conversa que tem que se ter com o Congresso.

ConJur — Para o senhor faz sentido uma emenda como essa?

Gilmar Mendes — Pode fazer. Mas teríamos que administrar isso, e temos que testar um pouco todo esse quadro. Nós estamos há um ano e meio, praticamente, com as atividades quase que suspensas, dedicadas ao mensalão.Significa que não estamos julgando os casos de Repercussão Geral, o que legitima a reclamação dos tribunais.

ConJur — De que o STF está parado?

Gilmar Mendes — De que está parado. E é um mecanismo de stop and go, porque ficam suspensos os processos semelhantes nas instâncias ordinárias. Isso é muito problemático. Agora precisamos, de fato, retomar as atividades, retomar a vida normal e ver como isso anda. Mas essa conversa de que precisa ser uma corte somente constitucional é bobagem. Em linhas gerais, o que de fato ocupa o tribunal são questões constitucionais. Se pegar a pauta, vão estar lá algumas extradições, ou reclamações, mas esse é o tipo de ideia de reforma [transformar o STF em corte estritamente constitucional] que não vai funcionar.

ConJur — Por que o tribunal parou de editar súmulas vinculantes?

Gilmar Mendes — Porque está conexo, basicamente, com a Repercussão Geral. A gente não tem votado casos com Repercussão Geral. Teve um momento em que a gente votava um caso de Repercussão Geral e, em seguida, editava a súmula. Depois isso parou.

ConJur  — Mas por que parou?

Gilmar Mendes — Porque nós paramos. O tribunal, há algum tempo, não tem dado prioridade a isso. Admite muitos casos de Repercussão Geral e não consegue, depois, transformar isso em julgamento. Depois veio o mensalão, e então, quantas sessões com matéria criminal?

ConJur — Ministro, a nossa Constituição tem 200 e tantos artigos, mais os incisos, alíneas etc…

Gilmar Mendes — São mil e tantas disposições, mas tem que ser um número condizente com a nossa realidade institucional. Não posso dizer que temos de ter um modelo americano. Nossa realidade institucional é toda peculiar. Giovanni Sartori, um autor italiano da área de Ciências Políticas e de Direito, contou os artigos e concluiu que a nossa Constituição chega ao tamanho de um Código Civil. Ele tem uma obra, até já traduzida para o português, Engenharia Constitucional.

ConJur  — A Lei da Anistia voltou a ser motivo de comentários ultimamente, e muitos têm falado em levar o caso de volta ao Supremo. Falam que a composição mudou, e que o posicionamento da corte também já não é mais o mesmo. Faz sentido o STF rever a posição que ele já adotou? Existe um mecanismo para isso?

Gilmar Mendes — A não ser que haja um fato relevante, independentemente da composição pessoal, nesse e em outros casos, não faz sentido proceder essa revisão. Por outro lado, se o tribunal sequer consegue apreciar tudo o que está pendente de julgamento, como os casos de repercussão geral, parece sensato revisitar o que já foi decidido? Mas, em suma, nós temos que aguardar. Mas temos de esperar ser provocados. Até porque entre o julgamento e a publicação de um acórdão, às vezes, passam-se vários anos. E isso não significa recomposição do tribunal. É razoável que quem vier, agora, nos embargos da declaração, diga: “Minha opinião é diferente”. Mas o julgamento de mérito já ocorreu. Se quiser preservar a seriedade da Corte, tem que ter certo escrúpulo processual. Do contrário, vira um lance de opinião, o que não é razoável.

ConJur — O número de reclamações que chegam ao STF também subiu bastante, ao ponto de alguns ministros apontarem que é o desejo de se chegar “per saltum” ao Supremo.

Gilmar Mendes — É um instrumento que se desenvolveu, inicialmente, na jurisprudência e no Regimento Interno, mas que depois ganhou status constitucional. É um mecanismo importante, hoje, em função do efeito vinculante de algumas decisões, termos a súmula vinculante. Mas talvez tenhamos que encontrar um tratamento adequado, como julgar nas turmas, porque o Plenário está inviabilizado. São mais 700 processos em pauta aguardando julgamento. É reciso ser inventivo. Talvez ter mais sessões, diminuir os pedidos de vista, dar prioridade aos casos com repercussão geral. São medidas que podem ser tomadas.

ConJur — Uma reforma mesmo?

Gilmar Mendes — Talvez tenha uma reforma regimental. A reforma que já foi feita, na minha gestão e depois na do Peluso, já deu frutos.

ConJur  — A Emenda 45 vai fazer dez anos este ano. Surtiu o efeito que se esperava?

Gilmar Mendes — Tenho a impressão de que sim. Aliviou o Supremo. Agora, a essa altura, teríamos que discutir uma reforma da reforma, como essa questão do modelo da Repercussão Geral.

ConJur  — Há espaço para isso?

Gilmar Mendes — Sim. O STJ já fez uma parte disso com os processos similares e idênticos, por exemplo. O TST tem isso autorizado e até agora não tomou nenhuma medida. No Supremo há espaço para a reforma. Eu só não subscrevo teses, por exemplo, de restrição de Habeas Corpus, porque a gente sabe onde isso vai dar. Com esse grau de concessão, com essa situação de examinar a discussão da prisão provisória lá em 1º Grau, temos um índice de concessão de 30% no Supremo. Se introduzirmos, agora, reservas procedimentais e tentarmos barrar o acesso ao Supremo, via Habeas Corpus, muito provavelmente vamos negligenciar direitos.

ConJur — Sem falar nos casos insignificantes.

Gilmar Mendes — Em 2010 ou 2011 chegamos a conceder 30 Habeas Corpus na 2ª Turma ligados ao princípio da insignificância. É a prisão por causa do furto do bambolê, do chocolate, da fita de vídeo. Coisas desse tipo.

ConJur  — O CNJ está cumprindo seu papel?

Gilmar Mendes — Tenho a impressão de que há mais acertos do que erros. Agora, se a gente considerar a potencialidade, pode ficar frustrado. E há uma visão, muitas vezes da própria magistratura, de que se o CNJ estabelece metas, está interferindo nas funções, nas autonomias estaduais ou coisa do tipo. Mas é um discurso escapista para evitar a prestação de contas. Tanto é que foram flexibilizando as metas, reduzindo a responsabilidade do próprio CNJ para os mutirões etc. Em suma, isso resulta em um recolhimento do órgão na sua atividade principal. A atividade principal do CNJ não é — e esse é que é o equívoco — punir juiz, ficar fazendo estatísticas.

ConJur  — E qual é?

Gilmar Mendes — É atividade de planejamento e de contribuição da execução das atividades do Judiciário. De gestão. Essa [a de que o CNJ existe para punir juízes] é uma visão equivocada, mas tem um efeito simbólico. Descobriu-se que há um malfeito, tem que punir. Mas ela não é a atividade central do CNJ.

ConJur  — Mas o foco, ultimamente, tem sido esse.

Gilmar Mendes —  E a própria mídia contribui para isso. Comemora como se fosse um dado altamente promissor. Mas o que tem que se perguntar é: “O Judiciário melhorou?”; “em que ponto melhorou?”; “quais são os pontos de estrangulamento?”; “o que é que tem sido feito em termos de meta?”; “os processos estão mais céleres?”. É isso que precisa ser perguntado.

ConJur  — O que o senhor acha dessa Meta 18 do CNJ, que obriga os tribunais a julgarem os casos de improbidade administrativa?

Gilmar Mendes — É importante que o CNJ estimule o julgamento dessas ações. Também há abuso em não julgar, em deixar essas questões pendentes, principalmente com relação aos inocentes. E muitas vezes essas ações são usadas politicamente. No entanto, não se ignora que a Lei de Improbidade precisa de revisão. É bastante genérica. Há um tipo, por exemplo, de improbidade administrativa que diz assim: “Deixar de cumprir a lei ou o regulamento”. Então em qualquer caso em que foi concedido um Mandado de Segurança teria que haver uma ação de improbidade administrativa. Veja o absurdo. E isso foi usado politicamente, muitas vezes. Fatos corriqueiros, que podem ser resolvidos, por exemplo, com uma ação de indenização, viram ações de improbidade. A não ser que prove que há dolo, que há o propósito de enriquecimento, não há motivo para uma ação dessas. Muitas vezes o promotor quer entrar com uma ação e entra com uma de improbidade, quando poderia ser uma ação de responsabilidade simples. Mas o que eu acho que o CNJ quer aqui, em princípio, é que julgue. Porque também pode estar havendo abuso em não julgar, e aí tem de fazer a pesquisa para saber.

ConJur  — Mas no caso específico da meta, o que se percebe é quase uma pressão pela condenação. Os informes que chegam às redações comemoram “X condenações”. Alguns juízes têm entendido essa ação como uma tentativa de disciplinar tribunais, para dizer que eles têm de condenar.

Gilmar Mendes — Não pode ser assim, mas na verdade é até bom para o réu que o processo seja julgado e ande. Em matéria criminal, por exemplo, e tenho batido muito nisso, há milhares de presos provisórios, sem sentença condenatória. Vemos pessoas presas há 12, 14 anos, sem condenação. Ora, isso fala mal da Justiça Criminal. E fala que esse sistema precisa de reforma. E no sistema criminal, só a ação já é um ônus. É terrível para o cidadão, e levamos um tempo enorme para julgar, 10, 12 anos.

ConJur  — E ainda há os casos do sujeito que, quando é finalmente condenado, já cumpriu toda a pena em regime provisório.

Gilmar Mendes — Ou do processo que corre há anos e ele está solto. Imagine o impacto disso numa pequena comunidade. O sujeito cometeu um homicídio e todo mundo sabe, mas ele está solto, obteve Habeas Corpus porque o processo se alongou demais. Ou está solto porque ficou solto. Então se alguém me perguntasse qual é a prioridade hoje, eu diria Justiça criminal. Temos um grande problema aqui. E a ação de improbidade tem um consectário fortemente penal. Às vezes, até mais forte do que a ação penal. Porque se você falar que Fulano responde por ação de improbidade tem um certo viés.

ConJur  — E isso é usado politicamente.

Gilmar Mendes — Politicamente, claro. Tanto é que, nesse contexto, tem feito falta — e tem projetos de lei bons já analisados por comissão no Congresso — uma lei atual de abuso de autoridade. As autoridades cometem abusos a toda hora. Por exemplo, quando oferecem denúncias indevidas: ação de improbidade, ou mesmo uma ação penal, ou quando pedem abertura de inquérito quando não deveriam.

ConJur  — Falta responsabilizar o Ministério Público?

Gilmar Mendes — Não só o Ministério Público. Pode ser o juiz, o parlamentar numa Comissão Parlamentar de Inquérito, o fiscal por excesso de exação. Em suma, todas as autoridades. O guarda de trânsito! A nossa lei de abuso de autoridade é de 1965, é de autoria do Milton Campos. São tipos genéricos. O país passou por enormes evoluções nesses anos todos e nós não temos uma lei de abuso de autoridade atualizada. Tanto é que ninguém fala hoje em aplicação da lei.

ConJur  — Outro tema muito caro ao senhor é o sistema penitenciário, mas quando se fala nisso, a solução parece sempre ser construir mais presídios. É isso mesmo que deveríamos fazer?

Gilmar Mendes — Quando falamos de reforma do sistema prisional, temos é que ter uma estratégia de segurança pública, que é o que tentamos no CNJ, que envolveria a atuação de todos os setores. Temos um grande índice de inquéritos abertos não concluídos e por isso também um grande índice de crimes não descobertos. Chegamos a ter, em Alagoas, 4,5 mil homicídios sem sequer inquérito aberto.

ConJur  — E tudo sem autoria.

Gilmar Mendes — Claro! Se nem abriu nenhum inquérito, já está sem autoria a priori. Depois, quando abrem o inquérito, ele não prossegue, porque não tem investigação. Uma das estratégias era fazer concluir os inquéritos, e isso é tarefa da polícia e do Ministério Público. E quando oferecer denúncia, fazer o processo andar.

ConJur — Também há falta de acesso à Justiça.

Gilmar Mendes — Temos sérios problemas na área da defesa, da defensoria. Se estamos falando de 550 mil presos, 90% são pobres. Péssima assistência judiciária. Insuficiente. Poucas iniciativas. Precisa ter uma estratégia nesse sentido. Há muita gente que poderia não ser presa.

ConJur — Isso passaria pelas penas alternativas?

Gilmar Mendes — É uma boa ideia para reduzir o abuso das prisões provisórias, mas, de novo, temos uma lei que não está pegando.

ConJur — Por que não pega? É questão de custo?

Gilmar Mendes — Não, é que não tem gestor. Está cheio de caciques, mas ninguém está aplicando isso. Eu venho defendendo, por exemplo, e que está na Convenção Interamericana, a necessidade de internalizar na legislação a apresentação do preso em flagrante ao juiz, que então vai decidir se vai manter o flagrante ou não, mas falando com o sujeito. É claro que isso vai ter embaraços burocráticos, mas evita que o juiz, burocraticamente, referende o flagrante. É o que leva a esses abusos que temos tido. No crime de tráfico: a legislação veio para atenuar a pena por tráfico, mas estamos aumentando o número de presos por esse crime. E muitas vezes é aquela confusão, naquele quadro entre usuário e traficante.

ConJur  — Fica sempre baseado na questão da quantidade.

Gilmar Mendes — É. E quem é que decide isso? O policial! Não é o juiz que avalia isso, porque ele só cuida do processo no julgamento. Veja, não são medidas difíceis de serem implantadas, e muitas delas não precisam sequer de legislação. É só a adoção de orientação administrativa. Mas é preciso ter essa visão integrada. É preciso olhar o sistema como um todo. Se falarmos em recursos para o sistema prisional: temos uma massa de dinheiro, o Funpen. Fala-se em R$ 2 bilhões. Todo ano é contingenciado. A lei de execução penal é de 1984, a que criou todos esses regimes. Mas temos déficit de vagas, 25 mil pessoas no sistema semiaberto e o dinheiro está contingenciado.Em verdade, não temos regime semiaberto. E com R$ 400 milhões resolveria isso, mas tem alguém gerenciando? O Brasil vive um apagão em termos gerenciais.

ConJur  — R$ 400 milhões para resolver?

Gilmar Mendes — Sim. É isso. Dinheiro que está aí, disponível. Hoje nós estamos melhores que ontem. Nós temos o CNJ, que tem dados, o CNMP, o Ministério da Justiça tem foco, inteligência para fazer isso, mas um tema totalmente negligenciado. Muita gente tem preconceito: “Ah, isso é tema de direitos humanos”. Não. Esse é um tema de segurança pública. Porque não cuidar dos presídios significa entregá-los às organizações criminosas.

ConJur  — De quem é a falha?

Gilmar Mendes — Basicamente, do Executivo, principalmente do Executivo federal. Mas a responsabilidade é de todo o sistema, inclusive Poder Judiciário e Ministério Público. Por isso é que tinha que ter uma visão integrada, holística disso. O país, na verdade, precisa pensar em termos institucionais e administrativos, num tipo de SUS para a segurança pública.

ConJur  — Como seria isso?

Gilmar Mendes — Um modelo integrado de gestão, e parar com esse jogo de culpa recíproca. A União sempre diz “eu posso ‘ajudar’, mas não tenho nada com isso”. Como não tem nada com isso?! Ela é quem legisla sobre Direito Penal, sobre Processo Penal, sobre Execução Penal. Ela é quem tem a Polícia Federal. Em geral, o crime organizado é interestadual, no mínimo. E a União é quem tem as Forças Armadas.Mas fica com esse jogo farisaico de dizer que não tem nada com isso. “Não, isso é problema de segurança pública, é problema estadual”. E os estados, com as finanças em pandarecos. Porque o modelo, também, gerou essa concentração de recursos no plano da União — com exceção de algumas poucas unidades, São Paulo incluída. Os estados estão em estado de penúria.

ConJur  — Houve um caso no Maranhão, em que o juiz mandou o estado construir um presídio em até 60 dias. O Judiciário pode fazer isso, ignorando, por exemplo questões orçamentárias do estado? 

Gilmar Mendes — A ConJur publicou uma entrevista com a secertária de Justiça do Paraná, Maria Tereza Uille Gomes, em que ela diz que há exigência do Conselho de Política Criminal conta a metragem dos novos presídios, da sala do diretor, do número de vagas no estacionamento, quando não tem vaga nem para os presos. Isso está onerando brutalmente o sistema. Ela diz também que um convênio inicial com o estado teria uma contrapartida de R$ 30 milhões, mas, com esses novos critérios, subiria para R$ 90 milhões. Imagine como isso repercute nas finanças do estado. Há um autismo completo. As autoridades do Ministério da Justiça falam do problema prisional como se estivessem falando do sistema carcerário da Bolívia. O Maranhão está no Brasil.

ConJur — Este ano o golpe militar completa 50 anos. Qual a visão do senhor sobre o papel do Supremo durante a ditadura?

Gilmar Mendes — Isso comporta uma análise bem mais profunda, que é difícil de resolver numa resposta. O tribunal teve, acho que no começo, um papel de moderação dos próprios exageros do movimento em relação às prisões, por exemplo. Aí entram os Habeas Corpus concedidos ao Miguel Arraes, ao ex-governador lá de Goiás.

ConJur — Mauro Borges?

Gilmar Mendes — Isso. Inclusive, esse momento é uma nova fase no Supremo, que empresta nova significação ao Habeas Corpus. A concessão de liminar naquele quadro, me parece extremamente importante. Mas depois o próprio tribunal foi envolto próprio contexto da crise. Não vamos nos esquecer de que, em 1968, veio o Ato Institucional número 5, que suspende as garantias da magistratura. E, em 1969, temos as aposentadorias dos juízes [o governo militar aposentou compulsoriamente os ministros Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva]. Já tinham mexido na composição do Tribunal, há o aumento no número de membros, antes, logo numa das primeiras alterações. Em suma, então, o tribunal, ele próprio, padece de vicissitudes. Imagine o tribunal traumatizado, em 69.

ConJur — Era um tribunal já sob intervenção do governo militar.

Gilmar Mendes — Sempre cito um caso, de 1971, em que se discutiu se o Procurador-Geral da República estava obrigado ou não a representar ao Supremo. A provocação vinha do MDB e tinha como pano de fundo a lei, ou o decreto-lei, que estabelecia censura prévia a livros, jornais e periódicos. Veja, o tribunal julgou isso em 71, mas em 69 perdera três membros aposentados compulsoriamente. Era um tribunal fragilizado, e esse episódio de 71 foi muito curioso. O único que falou pela aceitação dessa reclamação foi o Adauto Lúcio Cardoso, um homem que fora nomeado ministro pelos militares e obviamente tinha sua interlocução. Ele defendeu bravamente a ideia [de derrubar o decreto-lei], mas o tribunal acabou decidindo que aquilo não era matéria para o Supremo. O Procurador-Geral, então, não entrou com a ação. Era muito difícil o tribunal se manter com toda autonomia naquele contexto, especialmente depois da instalação do AI-5, que estabelecia um tipo de segunda ordem que, de quando em vez, era utilizada e estava sempre lá, presente.

ConJur  — Quando interessava, era só acionar.

Gilmar Mendes — Era só acionar que se aposentava juiz. As garantias estavam suspensas. Mas eu acho que nem só o Supremo, mas acho que o Brasil deve ao próprio Judiciário, como um todo, um papel de moderação dos exageros cometidos na década de 1970. Inclusive a Justiça Militar. O STM, eu me lembro no meu tempo de estudante, de 75 a 78, era considerado um tribunal de padrão liberal…

ConJur  — É mesmo?

Gilmar Mendes —  Inclusive nas questões de Habeas Corpus, em relação aos presos políticos, e por conta, talvez, da própria autoridade dos seus componentes, muitos deles generais que, obviamente, percebiam os exageros que estavam sendo cometidos Eu acho que agora é o momento de reflexão histórica importante. Esse é um dado importante, especialmente no momento atual, em que se fala na supressão da Justiça Militar.

ConJur — O STM também teve um ministro aposentado, não é? 

Gilmar Mendes — Sim, o general Peri Bevilacqua, em 69. O STM teve um papel importante, e muitos advogados dessa época hão de se lembrar.

ConJur — Faz sentido acabar com a Justiça Militar?

Gilmar Mendes — Não acredito que seja essa a solução correta. Tenho a impressão de que talvez algumas competências para julgar civis possam ser revistas, mas me parece que a Justiça Militar tem uma função especialmente no que diz respeito ao quadro organizatório e disciplinar das próprias Forças Armadas. Nesse sentido, o tema precisa ser visto com cuidado. A gente tem que ter muito cuidado com modismos. Tem que respeitar a cultura histórica e ter certa moderação nas invencionices.

* Texto atualizado às 13h12 do dia 2/2/2014 para correção de informações.