Publicado por Christine Oliveira Peter da Silva em Consultor Jurídico
A ideia de um Estado de direitos fundamentais[1] surge inevitavelmente associada à comunidade constitucional que prestigia tais direitos como a ordem geral objetiva do complexo de relações da vida[2]. Se tal modelo de Estado for associado à dimensão cooperativa do exercício do poder, tem-se o que venho chamando de “Estado cooperativo de direitos fundamentais”[3].
Por Estado cooperativo de direitos fundamentais entenda-se aquele vinculado objetivamente aos direitos fundamentais. Ou seja, o Estado em que a supremacia da Constituição e todas as relações entre as funções de Poder submetem-se à dogmática dos direitos fundamentais, associado àquele modelo político que se alimenta de redes de cooperação econômica, social, humanitária e antropológica, de forma que há necessidade de desenvolvimento de uma cultura e consciência de cooperação[4].
Este modelo implica que o exercício democrático do poder vincule-se irrestritamente aos direitos fundamentais, ou seja, pressupõe hermenêutica comprometida com o dirigismo concretizador de tais direitos, em todos os âmbitos de atuação dos seus agentes, sejam eles políticos, públicos e também os quase-públicos, ou seja, os particulares que atuam legitimamente nos espaços públicos.
Perguntar por que é oportuno valer-se do método comparativo em Direito significa questionar qual o aspecto da ciência jurídica está em evidência. Aquilo que era considerado como um complemento útil, mas dispensável, do direito nacional, como uma curiosidade, ou apenas como uma preocupação compreensível sobre as realidades externas, transformou-se, para o jurista contemporâneo, numa necessidade, em algo imprescindível e essencial.
As causas de tal fenômeno podem ser identificadas com o fato de que o mundo atual é um mundo onde os homens, os Estados, enfim, as sociedades e comunidades nacionais não podem bastar a si mesmas, nem recusar-se às trocas, e nem, muito menos, evitar ou negligenciar o conhecimento do outro e pelo outro. A consequência mais evidente, portanto, é a de que conhecer algo passa a ser também a superação e o intercâmbio de práticas entre sistemas tradicionais. O Direito Comparado, torna-se, assim, uma realidade viva.[5]
Essa realidade viva pode ser evidenciada a partir de uma prática compartilhada, plural, relativa e evolutiva, em que o Direito não mais se apresenta como o substituto das religiões e ideologias, nem como a panacéia para as mazelas humanas, mas, sim, como um elemento de integração dialógica dos diversos sistemas, que deverá seguir uma metodologia alternativa: a lógica de “pensar o múltiplo, sem com isso reduzi-lo à alternativa binária”, ou seja, como uma fórmula que admite alternativas para além do “excluir ou impor identidades”[6].
Para o âmbito da dogmática e da metódica jurídicas, a imprescindibilidade do método comparativo deve-se, em parte, ao que se tem identificado como casos difíceis. Para essas situações, especialmente aquelas que envolvem concretização de direitos fundamentais com âmbitos de proteção complexos, revela-se particularmente importante o constante confrontar-se com as outras realidades subjacentes, pois as situações humanas cada vez mais se interpenetram e se reproduzem em contextos culturais geograficamente distintos.
A importância do Supremo Tribunal Federal, como Corte Suprema e Constitucional brasileira, é indiscutível no contexto do Estado cooperativo de direitos fundamentais. Não temo dizer que a missão institucional da Suprema Corte brasileira não mais se confina às práticas jurisdicionais que o caracterizam como Tribunal da federação: há muito mais a ser reinventado e repensado na missão institucional da Corte, principalmente porque ser o guardião da Constituição, como define expressamente a Constituição de 1988, parece não significar ser esta instituição a dona da última palavra, nem o oráculo constitucional máximo, como fizeram crer os estudiosos de outros tempos entre nós.
Acredito que não se pode abrir mão da força institucional do Supremo Tribunal Federal[7], porém não posso deixar de pontuar a necessidade de que sejam pensados e aperfeiçoados alguns parâmetros e mecanismos de diálogos aptos a criticar, com segurança dogmática e filosófica, as suas decisões. Se a sociedade aberta de intérpretes, formada no contexto de uma pedagogia constitucional consistente, não estiver preparada para enfrentar de forma crítica e permanente a jurisprudência da Suprema Corte brasileira, nada do que se pretenda avançar será de alguma utilidade.
Mesmo nos países de tradição democrática mais consolidada, como é o caso da Inglaterra, anota Christopher Mccrudden[8] que a aprovação do Human Rights Act de 1998 trouxe à tona o debate sobre a possibilidade, ou não, conveniência, ou não, de fazer uso de jurisprudência estrangeira nas decisões nacionais com o intuito de, com o olhar para a experiência de outros países, encontrar as melhores condições para concretizar o referido documento normativo.
Assim sendo, apresenta-se relevante apresentar alguns dados. Até o ano de 2012, no sítio do Supremo Tribunal Federal, estavam registradas quase 200 decisões com referências a precedentes estrangeiros como fundamentação dos votos dos ministros. Desse universo, 178 decisões foram analisadas de forma quantitativa e qualitativa em pesquisa que realizei por ocasião da elaboração de minha tese de doutorado[9].
A primeira decisão analisada na pesquisa era do ano de 1961 e a última era do ano de 2012, de forma que a pesquisa avançou por decisões da Suprema Corte Brasileira nos últimos 50 anos. Nesse período, somente a década de 70 não teve o registro de nenhuma decisão do Supremo Tribunal Federal em que se usou da jurisprudência estrangeira como tópico argumentativo de votos dos Ministros da Corte[10].
Outro dado interessante de ser ressaltado é que no século XXI estão registradas mais de 90% das decisões em que as referências estrangeiras são mencionadas, sendo que mais de 50% estão concentradas nos últimos três anos (2010 a 2012). É verdade que este dado, objetivamente analisado, explica-se pela dinâmica de registro que se estabeleceu na Seção de Jurisprudência da Corte a partir do ano 2000. Mas não deixa de ser um dado simbólico da importância que a Corte deu a tal fenômeno a partir de então.
Ademais, dessas decisões, a classe processual que mais merece destaque são os Habeas Corpus que representam mais de 40% das decisões que continham referências a precedentes estrangeiros, seguidos das ações diretas de inconstitucionalidade, que somaram pouco mais de 15% e dos recursos extraordinários que constituiram 15% do total de classes em que as referências cruzadas foram encontradas.
Ao todo, foram referenciadas seis Cortes Supremas e/ou Constitucionais estrangeiras, três Tribunais internacionais e cinco outras Cortes diversas[11]. A Suprema Corte dos Estados Unidos foi a mais referenciada nos votos, seguida da Corte Constitucional da Alemanha, da Câmara dos Lordes do Reino Unido e do Tribunal Constitucional da Espanha. Este dado demonstra que poucas instituições fazem parte do universo de comparação dos ministros, sobressaindo-se, por diversas razões, as Cortes dos Estados Unidos e Alemanha.
Os ministros Celso de Mello (58 casos), Gilmar Mendes (47 casos) e Rosa Weber (39 casos)[12] foram os que mais referenciaram decisões de Cortes estrangeiras em seus votos, sendo seguidos pelos ministros Joaquim Barbosa, Dias Toffoli e Sepúlveda Pertence, que também fizeram menção a precedentes de outras Cortes quando construíam argumentos para seus votos.
Os precedentes do Caso James Somerset (1771) da King’s Bench e Caso Buschel (1670) da Court of Common Pleas inglesa foram registrados como precedentes estrangeiros mencionados em quase 30 processos do Supremo Tribunal Federal, sendo, em dados numéricos absolutos, os precedentes mais utilizados na história jurisprudencial da nossa Suprema Corte. Em termos qualitativos mais fidedignos, o caso MacCulloch versus Maryland, da Suprema Corte americana é o que mais merece destaque, tendo sido referenciado 20 vezes. Por fim, ainda merecem destaque os casos Panhandle Oil Co. v. Mississipi (12 casos) e Marbury v. Madison (10 casos).
Não há como deixar de registrar que apenas 14 casos[13] do Supremo Tribunal Federal mencionaram os precedentes estrangeiros já nas suas ementas e que apenas cinco casos[14] efetivamente discutiram o argumento estrangeiro de forma mais ampla e com o comprometimento colegiado dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
Por fim, é importante registrar que 68% dos casos (121 casos) trataram da temática específica dos direitos fundamentais, 9,5% (17 casos) trataram de questões atinentes ao processo constitucional, 9% (16 casos) cuidavam de questões tributárias, 6% (11 casos) debatiam questões de competência do Supremo Tribunal Federal e 3% (6 casos) tratavam da competência do Ministério Público. Como era a hipótese inicial de minhas considerações, a concretização dos direitos fundamentais é a que mais se destaca nesse particular.
Tais dados demonstram que o argumento transjusfundamental vem ganhando alguma consistência qualitativa e, principalmente, quantitativa na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, nos últimos anos, e que os ministros estão, especialmente nos casos em que concretizam direitos fundamentais, mais atentos para a referência a precedentes estrangeiros como parte da fundamentação de seus votos.
Não se pode dizer, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal é uma Corte Suprema vinculada ao paradigma do Estado cooperativo de direitos fundamentais, nem muito menos que tem consciência da transjusfundamentalidade como metódica adequada para a concretização dos direitos fundamentais. As referências ainda são solipsistas e pouco consistentes, quando se pensa em comparação constitucional como método comprometido com o processo de tomada de decisão constitucional.
O que se pode afirmar, com alguma segurança, é que há um caminho iniciado, cabendo, a partir de agora, aos profissionais, acadêmicos e, sobretudo, aos interlocutores mais diretos da Corte, sejam advogados públicos ou privados, sejam membros do Ministério Público, ou mesmo a imprensa e a sociedade civil organizada, provocarem a Corte e seus Ministros a densificarem seus argumentos, a partir da metódica de comparação constitucional estrangeira e internacional. Acredito ser este o melhor caminho, principalmente diante da realidade que se descortina neste século XXI.
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Clique aqui para acessar o portal do OJC.
[1] A expressão não é inédita, podendo ser encontrada nos trabalhos dos professores portugueses Rui Medeiros (O Estado de direitos fundamentais português: alcance, limites e desafios, in Anuário Português de Direito Constitucional, II, 2002, p. 41 e SS) e Paulo Otero (A crise do “Estado de Direitos Fundamentais”, in Lições de direito constitucional: em homenagem ao jurista Celso Bastos, São Paulo : Saraiva, 2005, p. 179-197). No Brasil, a expressão está presente nos trabalhos do Professor Willis Santiago Guerra Filho (Estado Democrático de Direito Como Estado de Direitos Fundamentais com Múltiplas Dimensões, Disponível em: http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/300807.pdf; Acessado em 15.12.13), dentre outros.
[2] Este é o conceito de Constituição de Konrad Hesse, de forma que aqui, propositadamente, confundimos a própria ordem constitucional com a ordem de direitos fundamentais, de modo que Constituição e Direitos Fundamentais são, nesta perspectiva, considerados sinônimos. Sobre o conceito de constituição de Konrad Hesse vide: A força normativa da Constituição, trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1999, p. 18.
[3] Vide meu: A ADPF 130 e a democracia de antíteses no contexto do Estado Cooperativo de Direitos Fundamentais (no prelo). Livro da Associação dos Assessores e Ex-Assessores do STF em homenagem aos 25 anos da Constituição de 1988, 2014.
[4] Cfr. Häberle, Peter. El estado constitucional, trad. Hector Fix-Fierro. México : Universidad Nacional Autônoma de México, 2003, p. 68-69.
[5]ANCEL, Marc. Utilidade e métodos do direito comparado.Tradução: Prof. Sergio José Porto. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1980, p. 128.
[6] DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo : Martins Fontes, 2004, prefácio, p. VIII a XII.
[7] Aqui tenho que anotar o respeito às correntes que partem da premissa de que a Corte Suprema não deve ser protagonista nesse assunto, ou seja, de que a concretização dos direitos fundamentais deve ocorrer principalmente no espaço institucional próprio dos debates legislativos, mas também devo ressaltar que não é esta a minha premissa. Por todos vide: TUSHNET, Mark. Taking the constitutions aways from the Court. FLEMING, James E., Judicial Review Without Judicial Supremacy: Taking the Constitution Seriously Outside the Courts, 73 Fordham L. Rev. 1377 (2005). Available at: http://ir.lawnet.fordham.edu/flr/vol73/iss4/4.
[8] MCCRUDDEN, Christopher. A common law of human rights? transnational judicial conversations on constitutional rights, in Oxford Journal of Legal Studies, v. 20, n. 4, p. 499-532, 2000, p. 499.
[9] SILVA, Christine O. Peter da. Transjusfundamentalidade: diálogos judiciais transnacionais sobre direitos fundamentais. 2013, 274 f. Tese (Doutorado) – Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB. Disponível em http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/13876/1/2013_ChristineOliveiraPeterdaSilva.pdf
[10] Em entrevista com a servidora responsável pela seção em que os registros são feitos, obteve-se a informação de que somente a partir do ano 2000 a pesquisa é feita de forma institucional e sistematizada, de forma que os dados anteriores a esse ano são aleatórios. Assim sendo, o fato de não terem sido registrados precedentes na década de 70 não quer dizer que tais não existam.
[11] São elas: Cortes Supremas e Constitucionais dos Estados Unidos, Alemanha, Espanha, Itália, Portugal e Inglaterra (antiga Câmara dos Lordes); Cortes Internacionais – Corte Interamericana de Direitos Humanos, Corte Internacional de Justiça e Corte Europeia de Direitos Humanos; Outros Tribunais – Corte de Apelação da Califórnia, Corte de causa comuns do Reino Unido, Corte de Cassação da França, Corte de Ontário e Corte de Milão.
[12] Aqui é preciso registrar que os dados referentes aos processos da Ministra Rosa Weber não são ortodoxos, pois muito embora os casos sejam distintos, o argumento genérico é semelhante, e não entrariam normalmente na marcação da seção de documentação (que evita os processos repetitivos).
[13] São eles: HC 81963, HC 82424/RS, RHC 90376/RJ, HC 93050/RJ, HC 105348/RS, HC-MC 109544/BA, HC 107731/PE, HC 91867/PA, HC 82788/RJ, HC 85419/RJ, HC 89837/DF, HC 87610/SC, HC 94173/BA, HC 90099/RS.
[14] A saber: HC 40910; RP 1150; HC 82424; MS 25647 e ADPF 130.