Publicado por Adriana Estigara e Kristian Rodrigo Pscheidt em JusNavigandi
A Administração Pública necessita alinhar-se a um modelo descentralizado para garantir sua sustentabilidade.
Não se mostra plausível que o Brasil, inserido em um mercado mundializado e pautado pela eficiência econômica, continue malfadado à centralização e burocratização de sua infraestrutura. Não se admite que setores como saúde, educação e assistência social continuem precários e insubsistentes, especialmente em um país que almeja tornar-se a quinta maior economia mundial [3].
Destaca-se que desde 1997, em análise do Relatório do Banco Mundial, já se concluía que “o grande problema dos países em desenvolvimento é exatamente a precariedade de suas máquinas burocráticas, com baixo nível de profissionalização, incompetentes e pouco confiáveis, incapazes, sequer, de realizar as tarefas fundamentais requeridas em um Estado que se pretende moderno” [4]. Mudar esse cenário, ao contrário do que alguns profanam, não envolve profundas alterações legislativas ou reformas no modelo econômico, mas tão somente vontade política.
Isso porque no Brasil, ainda em 1967, com o Decreto-Lei nº. 200/1967, já se previa a possibilidade de utilização de instrumentos de segmentação e autonomia administrativa para o gerenciamento das atividades estatais pela via da desburocratização e da descentralização. Na década de 90, essa noção ganha importante reforço, na medida em que o Estado começou a se pautar por um modelo gerencial, que encontrou sustentação em uma economia neoliberal mais regulatória.
Primeiro adveio a desestatização dos setores de infraestrutura e a consequente criação das agências reguladoras. Por segundo, passou-se a impor um modelo descentralizado de gestão, calcado no princípio da eficiência da Administração Pública. A própria Constituição é amoldada em 1998 (Emenda Constitucional nº. 19/98) para viabilizar a construção de um modelo contemporâneo de administração empresarial, a qual alia maximização do rendimento a custo baixo.
Ocorre que, mais de 15 anos depois desta evolução na política administrativa, os gestores públicos sequer têm conhecimento destas mudanças estruturais. Diante disso, passa-se a tecer algumas considerações acerca de alternativas destinadas a fomentar a eficiência da Administração Pública.
A solução da descentralização
Tornar efetivo é assegurar, por meio de políticas de incentivo, que determinado segmento seja capaz de otimizar a exploração do recurso escasso. Desta forma, planejamento, especialização, profissionalização e autonomia surgem como elementos necessários a uma gestão de resultados [5].
De acordo com o preconizado pelo Decreto-Lei nº. 200/67 e exigido pela Emenda Constitucional nº. 19/98, a descentralização permite que o Estado alinhe-se com um projeto político que permita a transferência de poder decisório (planejamento), adquira autonomia para escolher os administradores (autonomia); comande diretamente sua administração (profissionalização); elabore uma legislação referente às competências que lhes cabem (especialização) e, por fim, cuide de sua estrutura tributária e financeira (autonomia financeira).
Conclui André Cezar Médici (1994) que a descentralização é um meio para melhorar a eficiência e a eficácia da administração pública, possibilitando o governo local desempenhar melhores resultados para a população, em função de sua proximidade. Por isso, a descentralização político-administrativa deve retomar o papel central das atenções da Gestão Pública nacional.
Saúde, Educação e Assistência Social: foco local e especializado
Duas das premissas que se destacam nesse novo modelo de gestão é a possibilidade de especialização e profissionalização de determinado segmento para atuação local e de acordo com os anseios da população envolvida. Somente o profissional especializado ligado à comunidade detém condições de melhor avaliar a eficiência dos projetos e seu resultado efetivo.
Ainda que a Administração Direta detenha plenos poderes de cautela [6], permitir que o profissional dedicado ao segmento gerencie os projetos aumenta sensivelmente o nível de satisfatoriedade do programa. Isso se aplica, em caráter de perfeição, às áreas da saúde, educação e assistência social, que são atividades locais de dever inalienável do Estado.
Saúde, educação e assistência social são objetivos fundamentais do Estado (art. 3º da Constituição) e se relacionam com o próprio bem-estar, o que exige a observância das especificidades culturais de cada localidade. Neste sentido que Osmir Antonio Globeneker [7] afirma que “o sentido de saúde a ser permanentemente construído e reconstruído só pode ser encontrado pelas próprias comunidades interessadas”.
Ainda que o Município seja o interlocutor principal na prestação dos serviços destas áreas, como é público e notório, possui uma série de funções extremamente complexas, situações decorrentes da diversidade de atividades desempenhadas. Isso gera uma sobrecarga de serviços sobre a máquina pública municipal centralizada, o que se faz acompanhar, muitas vezes, de maiores gastos públicos.
As vantagens de um sistema descentralizado
A descentralização administrativa, especialmente nas áreas da saúde, educação e assistência social, possibilita o incremento da especialização e da eficiência administrativas. Faz-se imprescindível no momento em que assegura a concretização do princípio da subsidiariedade, pelo fato de as atribuições e competências serem exercidas por um nível da administração melhor colocado para atuar com racionalidade, eficácia e proximidade aos cidadãos. Ademais, assegura-se a unidade na execução de políticas públicas e se evita sobreposição de atuações.
Assevera-se, inclusive, que a proximidade de atuação do ente descentralizado permite maior e intensa participação da população local, na medida em que facilita os meios de acesso e flexibilidade de gestão. Nesta ótica, é possível elencar diversas outras vantagens em termos gerenciais, decorrentes da instituição de uma autarquia ou fundação pública de direito público destinada a executar incumbências constitucionais conferidas ao Município:
- existência de patrimônio próprio (ocorre transferência de bens móveis e imóveis da entidade matriz, os quais se incorporam ao ativo da nova pessoa jurídica, e que podem ser utilizados, onerados e alienados, para os fins da instituição, na forma regulamentar ou estatutária, independentemente de autorização legislativa especial);
- existência de receita própria;
- criação por lei específica;
- personalidade jurídica própria;
- investidura dos dirigentes – na forma da lei específica da criação;
- cargos criados na forma e por lei específica;
- meios próprios de controle da atividade;
- prescrição quinquenal das dívidas passivas;
- presunção de legalidade;
- ação regressiva;
- administração própria;
- órgãos próprios;
- ausência de subordinação hierárquica à Administração Pública que a criou, embora se coloque, naturalmente, sob seu planejamento geral (art. 4º, único, Decreto-Lei federal nº. 200/67);
- atuação por direito próprio, por força da lei que a cria;
- privilégios administrativos (não políticos) da entidade estatal que a institui, auferindo também as vantagens tributárias e as prerrogativas processuais da Fazenda Pública, além dos que lhe forem outorgados por lei especial, como necessários ao bom desempenho das atribuições da instituição;
- impenhorabilidade de bens e rendas;
- impossibilidade de usucapião de bens imóveis;
- não sujeição a concurso de credores ou a habilitação de crédito em falência ou recuperação judicial ou extrajudicial, para cobrança de seus créditos.
Salienta-se inexistir a necessidade de contratação de novo pessoal ou formalização de contratos com empresas terceirizadas para a gestão da entidade, sendo possível, indicado e recomendável que ocorra a mera realocação dos profissionais (servidores ou empregados públicos) já integrantes do quadro da Administração Direta, mediante a cessão ou transferência de cargos.
A descentralização por meio de autarquia e fundação pública
Por tais razões, o processo de descentralização deve ser aprimorado, a fim de serem otimizados os resultados em matéria de saúde, educação e assistência social, especialmente no âmbito municipal. A via eleita, consagrada e que auxilia neste caminho é a instituição de Autarquias especializadas ou Fundações Públicas de Direito Público.
As Autarquias ou Fundações Públicas de Direito Público, assim entendidas aquelas criadas por lei específica, nos termos do art. 37, XIX, da CF/88, desenvolvem atividades beneficentes de assistência social nos campos da saúde, da educação e da assistência social. Neste sentido, desde já se afasta a polêmica sobre a terceirização do serviço, pois o ente público será o gestor da área.
A Autarquia é uma pessoa jurídica de direito público, dotada de patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada (art. 5, inciso I, do Decreto-Lei 200/67).
Quanto à fundação, o Poder Público tem duas opções constitucionais ao criá-la, como bem ressalta Gilson Carvalho [8]:
Pode constituir fundações públicas administradas sob o direito público (autarquias) ou fundações públicas administradas sob direito privado. Estas denominadas, informalmente, de fundações estatais cujos detalhes de regulamentação se encontram em discussão. Fundação Pública Estatal, administrada sob o direito privado não é um ente privado, mas sim um ENTE PÚBLICO. Constituir Fundações Públicas Estatais jamais poderia ser categorizado como um ato de privatizar o público. Fundação Pública Estatal sob direito privado só pode ser criada pelo público. É pública, com objetivos públicos, financiada pelo público, executando ações públicas, controlado pelo público, o que vale dizer, pelos cidadãos. (sem grifos no original)
Como ensina Di Pietro [9], as fundações públicas, embora definidas como pessoas de direito privado, passaram a ter, na esfera federal, a partir da Lei nº. 7.596/87, a natureza jurídica predominantemente pública.
A constituição de uma fundação pública regida pelo direito privado ocorre em razão de preferência do ente político que a cria, pela maior flexibilidade que o direito privado oportuniza em termos de gestão. Assim, por exemplo, o regime dos agentes públicos será o contratual (CLT), à diferença do estatutário, aplicado aos servidores de uma fundação pública de direito público.
O fato de estas entidades serem pessoas de Direito Público culmina na possibilidade de serem titulares de interesses públicos. Portanto, a Administração Pública Direta pode transferir competências de com acordo com a natureza das atribuições impostas a elas, acompanhada dos meios humanos, recursos financeiros e do patrimônio adequados para o normal desenvolvimento das atividades.
Sabe-se que as entidades públicas são criadas para o estabelecimento de regimes diferentes, técnicos, administrativos e jurídicos, adaptados às exigências de cada órgão, para assim realizarem suas próprias tarefas. E isso, nas palavras de Thereza Lobo [10], demonstra o conjunto de flexibilidade e gradualismo que faz com que a descentralização seja entendida como um processo, num continuum de tempo e espaço, de evolução do próprio Estado.
Pensar diferente, com a manutenção da centralização burocrática na administração pública brasileira, tal como no século XX, é retroagir a um momento político que pugnava pelo isolacionismo econômico e condução da economia pela força coercitiva, não mais condizente com o mercado contemporâneo.
Notas
3. Não é a toa que, em junho de 2013, milhões de pessoas em todo o território nacional saíram às ruas para exigir uma postura pró-ativas das autoridades executivas e legislativas.
4. Cita-se como exemplo a crítica de Valeriano Mendes Ferreira Costa (in O Novo Enfoque do Banco Mundial sobre o Estado. Revista Lua Nova no. 44. São Paulo: 1998, p.25).
5. De acordo com Binotto et al. Descentralização Político-Administrativa: o caso de uma Secretaria de Estado. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional. v. 6, n. 3, p. 186-213, set-dez/2010, Taubaté, SP, Brasil; citando-se MEDICI, A. C. Economia e Financiamento do Setor Saúde no Brasil. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública – USP, 1994.
6. Nas lições de Rojas (in Los Propósitos da La Desconcentracion Administrativa. Desconcentracion Administrativa. Secretaria de La Presidência. Dirección General de Estúdios Administrativos. nº 01, Coleccion Seminarios, 1974), a tutela é definida como defina como um controle administrativo limitado, outorgado por lei para uma autoridade superior aos agentes descentralizados e sobre seus atos, com o objetivo de proteger os interesses gerais.
7. A Saúde entre o Público e o Privado. Curitiba: Juruá, 2011, p. 34.
8. CARVALHO, G. Fundações Públicas Estatais administradas sob direito privado: entre a desinformação e má-fé. Revista Radis/FIOCRUZ, volume 67, setembro de 2007, p. 32.
9. DI PIETRO, M. S. Z. Direito Administrativo. 22 ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 324.
10. Descentralização: conceitos, princípios, práticas governamentais. Caderno de Pesquisa. São Paulo: Autores Associados, 1994.