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Notícia

Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

A culpabilização da mulher, vítima de estupro, pela conduta do seu agressor

Publicado por Lívia Magalhães em Jusnavigandi

O esclarecimento do conceito de estupro na legislação brasileira e dos aspectos culturais da nossa sociedade é essencial para a compreensão do resultado da pesquisa do IPEA, que apontou que a maioria dos brasileiros culpa a mulher, vítima do estupro, pela conduta do seu agressor. O objetivo, portanto, desse breve artigo é incentivar uma reflexão sobre as possíveis causas desse diagnóstico e as medidas necessárias para a desconstrução da cultura de culpabilização da mulher pelo seu próprio estupro.

O CRIME DE ESTUPRO NO BRASIL

O crime de estupro é considerado hediondo, nos termos da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (art. 1º, V), tanto na modalidade tentada ou consumada, abrangendo o estupro cometido com violência (real ou presumida) e grave ameaça. Em virtude dessa natureza, o crime de estupro, em todas as suas modalidades, submete-se a um tratamento penal mais rigoroso, como por exemplo, a insuscetibilidade de anistia, graça e indulto, assim como da fiança.

Quanto à sua classificação, apenas nos últimos anos a legislação brasileira foi alterada para reconhecer explicitamente a dignidade e a liberdade sexual das pessoas, tanto do homem quanto da mulher, como um bem jurídico protegido. Até 2009, o estupro era classificado como um “crime contra os costumes”, ou seja, o bem jurídico protegido era “a conduta sexual adaptada à conveniência e disciplina sociais” (HUNGRIA, p. 103-104, 1956) ou “um mínimo ético ligado aos comportamentos sexuais” (GRECO, p. 463, 2009). Inquestionável que a expressão “crimes contra os costumes” era extremamente conservadora e indicava um norte para o comportamento sexual imposto pelo Estado às pessoas por conveniências sociais. Ressalte-se que, até alguns anos atrás, somente a “mulher honesta” era tutelada por alguns tipos penais e o estupro cometido pelo próprio marido era questionado, uma vez que havia a obrigatoriedade do “débito conjugal” (MASSON, p. 795, 2013).

A figura típica do estupro consistia em “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. Dessa forma, o ato de subjugar a vítima ao ato sexual era dirigido sempre contra uma mulher e a conduta do agente, sempre do sexo masculino, estava restrita à conjunção carnal (penetração vaginal). Ocorrendo ato libidinoso diverso da conjunção carnal, a conduta era tipificada como atentado violento ao pudor.

O crime de estupro era processado mediante ação penal privada, ou seja, à exceção dos casos de violência real (Súmula 608, STF), era escolha da vítima acusar ou não o seu estuprador. A vítima deveria, portanto, oferecer queixa contra o seu agressor, no prazo decadencial de 6 meses (art. 38, CPP), para possibilitar a persecução criminal. Caso contrário, o criminoso não seria julgado, muito menos condenado. Por fim, diante do princípio da disponibilidade, a ofendida poderia desistir de dar início à ação penal ou de prosseguir na lide (perdão do ofendido) até o trânsito em julgado da sentença condenatória (ALVES, p. 88, 2010).

A partir da sanção da Lei n° 12.015, de 7 de agosto de 2009, o estupro passou a ser classificado como um crime contra a dignidade e liberdade sexual. Acertadamente, o legislador definiu que no crime de estupro, o bem jurídico tutelado é a liberdade sexual, ou seja, a liberdade das pessoas, seja do sexo feminino ou masculino, de ”escolher seu parceiro sexual, e com ele, praticar o ato desejado no momento que reputar adequado” (MASSON, p. 796, 2013).

O art. 213 do Código Penal passou a tipificar o estupro no ato de “constranger alguém, mediante violência e grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, portanto, tanto a vítima quanto o agressor podem ser homens ou mulheres, o que demonstra uma verdadeira evolução da lei penal em tutelar com isonomia a liberdade sexual dos brasileiros, independente do gênero. A conduta perpetrada consiste tanto na conjunção carnal quanto qualquer ato libidinoso, como por exemplo, o coito anal. O estupro ocorrerá também quando, apesar de não ocorrer contato físico de natureza erótica entre o estuprador e a vítima, houver o envolvimento corporal do ofendido no ato de cunho sexual (MASSON, p. 798, 2013), desde que exista a presença física (NUCCI, p. 47, 2013).

A ação penal não é mais privada, mas pública condicionada à representação, ou seja, a vítima deve autorizar, no prazo de decadencial de 6 meses (art. 38, CPP), que o Estado (autoridade policial e Ministério Público) dê início à persecução criminal. A vítima poderá se retratar da representação até o oferecimento da denúncia (e não do recebimento), impedindo o Ministério Público de promover a ação penal. A Súmula 608 do STF perdeu seu fundamento de validade, uma vez que foi editada à época em que o estupro era crime de ação penal privada (MASSON, p. 804, 2013). Portanto, em regra, nos termos legais, tanto o estupro com violência real ou presumida, simples ou qualificado, serão processados mediante ação penal pública condicionada.

Todavia, há uma exceção legal. Se a vítima do estupro for menor de 18 anos – sendo menor de 14 anos será tipificado como estupro de vulnerável – a ação penal será pública incondicionada, o que significa que independe de qualquer providência da vítima ou do seu representante legal a iniciativa e o prosseguimento da ação penal. Não se questiona o interesse do ofendido, pois o interesse do Estado se sobrepõe ao da vítima (ALVES, p. 71,2010).

Em contrapartida, imperioso diferenciar o estupro ocorrido no âmbito doméstico e familiar daquele perpetrado por um agressor desconhecido. A Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, foi inserida no ordenamento jurídico para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, razão pela qual criou mecanismos especiais, diferenciando o processamento desses crimes, o atendimento policial e a assistência do Ministério Público nas ações judiciais.

Nesse sentido, a Lei Maria da Penha define que a violência doméstica e familiar contra a mulher consiste em “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico ou patrimonial: I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independente de coabitação.”

A Lei Maria Penha prevê no seu art. 16 que nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia, e ouvido o Ministério Público. Todavia, o Supremo Tribunal Federal, em fevereiro de 2012, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4424 e da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 19, conferiu a esse artigo interpretação conforme a Constituição Federal, estabelecendo a natureza incondicional das ações penais em caso de crimes de lesão (inclusive as lesões leves), ou seja, elas independem da representação da vítima.

Portanto, o estupro cometido no âmbito doméstico e familiar receberá tratamento diferenciado, com a aplicação das normas previstas pela Lei Maria da Penha, além das disposições previstas no Código Penal e Código de Processo Penal e da jurisprudência recente do STF que conferiu natureza incondicional à ação penal nos casos de crime de lesão por violência doméstica. Por outro lado, ao estupro perpetrado por qualquer outro agressor serão aplicadas tão somente as disposições previstas no Código Penal e no Código de Processo Penal, sendo processada mediante ação penal pública condicionada à representação.

A VÍTIMA, O AGRESSOR E O CRIME

Apesar da acertada alteração legislativa que ampliou a abrangência da vítima de estupro, alcançando a vítima de qualquer gênero, a Nota Técnica “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde” – primeira pesquisa que traçou um perfil dos casos de estupro no Brasil a partir de informações de 2011 do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan) – apontou que 89% das vítimas de estupro são do sexo feminino. Do total, 70% são crianças e adolescentes. Dessa forma, são as mulheres, principalmente as crianças e as adolescentes, as maiores vítimas do crime de estupro em nosso país.

A maioria esmagadora dos agressores é do sexo masculino, independentemente da faixa etária da vítima, sendo que as mulheres são autoras do estupro em apenas 1,8% dos casos. Quando a vítima é criança 4,1% dos agressores são os próprios pais ou padrastos e 32,2% são amigos ou conhecidos da vítima. Em geral, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima, forte indício de que o inimigo aproveita a relação de suposta confiança da vítima e da cultura da violência doméstica. Ainda de acordo com a Nota Técnica, 24,1% dos agressores das crianças são os próprios pais ou padrastos, e 32,2% são amigos ou conhecidos da vítima.

Todavia, à medida que a idade da vítima aumenta o indivíduo desconhecido passa a figurar como principal autor do estupro. Na fase adulta, este responde por 60,5% dos casos. Quando o agressor era conhecido, a residência era o local principal onde ocorria o estupro, independentemente da idade da vítima. Por outro lado, quando o agressor era desconhecido, a via pública assumiu posição de destaque, sendo que, para o caso dos adultos, a incidência de estupro nesses locais correspondeu a 2,3 vezes aquela verificada nas residências.

Em 2011, foram notificados no Sinan 12.087 casos de estupro no Brasil, o que equivale a cerca de 23% do total registrado na polícia em 2012, conforme dados do Anuário 2013 do FBSP. A pesquisa estima que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil, no entanto, destes casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia.

Por fim, o IPEA ressalta que os dados coletados estão condicionados ao fato da vítima de estupro ter procurado os estabelecimentos públicos de saúde, uma vez que os dados foram coletados do Sinan (Ministério da Saúde). Dessa forma, os resultados obtidos devem ser observados com certa cautela, uma vez que muitos casos não foram registrados e há possibilidade de haver algum processo seletivo que interfira na veracidade dos fatos, ou seja, apenas determinado tipo de vítima de estupro procurar atendimento médico no sistema público de saúde.

A CULTURA PATRIARCAL E A CULPABILIZAÇÃO DA MULHER PELO ESTUPRO

Segundo o estudo apresentado pelo IPEA, a violência de gênero é um reflexo direto da ideologia patriarcal, que demarca os papéis e as relações de poder entre homens e mulheres. A cultura do machismo, disseminada muitas vezes de forma implícita, coloca a mulher como objeto de desejo e de propriedade do homem, o que termina legitimando e alimentando diversos tipos de violência, entre os quais o estupro. Tal argumento é capaz de justificar a ocorrência preponderante no Brasil dos estupros contra as mulheres (89% das vítimas) perpetrados pelos homens (98,2% dos agressores).

As pesquisas citadas causaram tamanho alvoroço exatamente por esse motivo: relembrou os brasileiros, e principalmente as brasileiras, de que, infelizmente, ainda vivemos em uma sociedade patriarcal. Ou seja, nossa organização social ainda é baseada na crença da dominação de homens sobre as mulheres, que por sua vez devem se sujeitar à sua autoridade e vontade. Inegável que nas últimas décadas as mulheres ganharam espaço na vida pública, porém o ordenamento patriarcal é reiteradamente reforçado em nossa cultura pela própria sociedade, seja na desvalorização das mulheres em todos os aspectos, seja na aceitação implícita da violência sexual.

A pesquisa afirma que o fenômeno da violência contra as mulheres, que consiste em um poderoso instrumento de perpetuação da ordem patriarcal, normalmente está relacionado a algumas características: a) é visto como aceitável (dentro de alguns limites); b) é naturalizado como algo pertencente à sociedade e inerente às relações entre homens e mulheres; c) o agressor tem sua responsabilidade atenuada, seja porque não estava no exercício pleno da consciência, ou porque é muito pressionado socialmente, ou porque não consegue controlar seus instintos; d) e a mulher é vista como responsável pela violência, porque provocou o homem, seja porque não cumpriu com seus deveres de esposa e de “mãe de família”, seja porque de alguma forma não se comportou da maneira esperada socialmente.

De fato, a existência das características apontadas pode ser comprovada pelos dados do IPEA. De acordo com o SIPS sobre a “Tolerância social à violência contra as mulheres”, 63% dos brasileiros concordaram, total ou parcialmente, que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família”. No mesmo sentido, 89% dos entrevistados concordaram que “a roupa suja deve ser lavada em casa”; e 82% que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Comprovado, portanto, que a maioria da população brasileira ainda possui uma visão de família nuclear patriarcal (com alguns contornos contemporâneos) e entendem que deve ocorrer a intervenção do público na esfera privada apenas quando os conflitos familiares se tornarem extremamente violentos.

Quanto à violência sexual contra as mulheres de forma abrangente, a percepção majoritária da sociedade brasileira, segundo a pesquisa do IPEA, é no sentido de culpabilizar a mulher, fato que pode ser considerado consequencia direta da cultura patriarcal. Tal conclusão pode ser comprovada pela concordância de 58% dos entrevistados de que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”. Tal afirmação apenas reforça a premissa equivocada de que os homens não conseguiriam controlar seus apetites sexuais e as mulheres seriam responsáveis por provocá-los. Resumindo: para evitar o estupro a mulher deve comportar-se adequadamente. A violência sexual poderia ser considerada, de certa forma, uma espécie de correção para as mulheres que não se comportaram da forma esperada socialmente, seja com atitudes liberais seja com o uso de roupas sedutoras.

A culpabilização da vítima pela violência sexual sofrida é uma prática comum na cultura oriental, tão conhecida pela desvalorização da mulher e pela sua submissão irrestrita às vontades do homem. Na Índia, por exemplo, em um caso de estupro coletivo, a mulher violentada foi considerada tão culpada quanto seus estupradores. De acordo com a imprensa indiana um guru espiritual chamado Bapu afirmou que a vítima deveria ter sido mais gentil com os violentadores, se quisesse preservar sua vida: “Ela deveria ter chamado os agressores de irmãos e ter implorado para que eles parassem. Isso teria salvado sua dignidade e a sua vida.” Parece ficção, mas a estória é verídica.

No entanto, culpar a mulher por figurar como vítima de violência sexual acontece tanto nas religiões orientais quanto ocidentais. De acordo com notícia veiculada pelo site Portal News, o padre Don Piero Corsi, da cidade de San Terenzo, na Itália, afixou na porta da igreja um comunicado dizendo que a culpa da violência sexual é das mulheres. Segundo o padre, “as mulheres com roupas justas se afastam da vida virtuosa e da família e provocam os piores instintos dos homens”. O padre afirmou ainda que “o homem fica louco porque as mulheres são arrogantes e autossuficientes”.

Os exemplos apresentados objetivam apenas demonstrar que o fenômeno da culpabilização da mulher pelo seu próprio estupro não se restringe ao Brasil ou aos países da América Latina. Ele contamina diversos países, preponderantemente aqueles nos quais a cultura do machismo ainda insiste em perdurar, causando inúmeros conflitos e julgamentos despropositados acerca da conduta da vítima, atenuando desarrazoadamente a conduta do agressor, que deveria ser o principal foco.

Sônia Rovinski, psicóloga judiciária do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e autora do livro Danos psíquicos em mulheres vítimas de violência, diz que esta culpabilização não é algo novo e que está longe do fim. “Historicamente, a mulher, no imaginário coletivo, sempre esteve associada a esta coisa de provocar o homem. É cultural. Se o homem perde o controle e comete uma agressão, a culpa não é dele, é da mulher que o seduziu. Isto é impregnado na sociedade desde as conversas no bar até a esfera judicial. Quantas vezes a gente ouve sobre a moça do bairro que foi violentada, mas andava por aí no escuro de roupas curtas?”, questiona. “É claro que muita coisa mudou de 20 anos para cá, antes essa discussão nem existia. Mas, ainda hoje, quem deveria proteger, como a polícia e a própria justiça, acaba questionando a real participação da mulher nestes casos”, aponta.

Portanto, a violência contra a mulher possui um caráter complexo e possui estreita relação com as categorias de gênero, classe e raça/etnia e suas relações de poder. Tais relações, por sua vez, estão norteadas por uma ordem patriarcal proeminente na sociedade brasileira, a qual atribui aos homens o direito de dominar e controlar suas mulheres. A culpabilização da mulher, vítima de estupro, pela conduta do seu agressor, por conseguinte, pode ser considerada uma das consequências desse ordenamento social patriarcal e a sua eliminação total depende de mudanças bruscas na sociedade brasileira.

CONSEQUêNCIAS DA CULPABILIZAÇÃO DA MULHER

De acordo com a literatura, são graves as consequências do estupro, que se estendem no campo físico, psicológico e econômico. Além das lesões que a vítima pode sofrer nos órgãos genitais (principalmente nos casos envolvendo crianças), quando há o emprego de violência física, muitas vezes ocorrem também contusões e fraturas que podem acarretar a morte da vítima. O estupro pode gerar ainda uma gravidez indesejada – situação na qual a mulher poderá realizar o aborto legalmente, nos termos do art. 128, inciso II do CP – e levar a vítima a contrair doenças sexualmente transmissíveis (DST).

Segundo o IPEA, os dados obtidos com a pesquisa são alarmantes, pois além das mazelas de curto prazo, o estupro gera no indivíduo consequências de longo prazo, como diversos transtornos, incluindo depressão, fobias, ansiedade, abuso de drogas ilícitas, tentativas de suicídio e síndrome de estresse pós-traumático. Tal fenômeno gera também consequencias sobre a sociedade em geral, pois há perda de produtividade e a violência doméstica reforça um padrão de aprendizado, que é em seguida compartilhado nas ruas.

Ainda, quanto ao estupro contra crianças e adolescentes, “As consequências, em termos psicológicos, para esses garotos e garotas são devastadoras, uma vez que o processo de formação da autoestima – que se dá exatamente nessa fase – estará comprometido, ocasionando inúmeras vicissitudes nos relacionamentos sociais desses indivíduos”, aponta a pesquisa realizada pelo IPEA.

Somada à todas as mazelas elencadas, figura a culpa da vítima. No entanto, não se trata apenas da culpa da própria vítima pela agressão sexual sofrida, com pensamentos recorrentes de que nada teria acontecido se ela tivesse agido diferente. A culpa surge da sociedade machista que cria uma punição extra-oficial para a mulher, afirmando que ela certamente deve ter dado motivo para a agressão, usando roupas “inapropriadas”, sendo supostamente promíscua, andando desacompanhada à noite ou confiando em pessoas desconhecidas. Dessa forma, a culpabilização da vítima pelo seu próprio estupro pode ser classificada como uma verdadeira tortura psicológica contra a mulher, que além de todo sofrimento físico e psicológico pós-estupro, também é penalizada socialmente pelo comportamento doentio do seu estuprador.

ELIMINAÇÃO DA CULTURA PATRIARCAL E DA CULPABILIZAÇÃO DA MULHER PELO ESTUPRO

Em abril de 2011, surgiu a “Marcha das Vadias” – movimento internacional de mulheres criado na cidade de Toronto – Canadá, em resposta ao comentário de um policial de que “para evitar estupros em uma universidade, as mulheres deveriam parar de se vestir como “sluts” (vadias, em português).” Assim, teve início a SlutWalk, em que mais de 3 mil mulheres canadenses foram às ruas para protestar contra o discurso de culpabilização das vítimas de violência sexual e de qualquer outro tipo de violência contra as mulheres. A partir daí, diversas manifestações semelhantes (SlutWalk, Marcha de las Putas, Marcha das Vadias) ocorreram em mais de 30 cidades, em diversos países – como Costa Rica, Honduras, México, Nicarágua, Suécia, Nova Zelândia, Inglaterra, Israel, Estados Unidos, Argentina e Brasil.

As mulheres da “Marcha das Vadias” lutam pelo seu direito de ir e vir, seu direito de se relacionar com quem e da forma que desejarem e seu direito de se vestir da maneira que lhes convier sem a ameaça do estupro, sem a responsabilização da vítima e sem sofrer nenhum tipo de humilhação, repressão ou violência. A motivação principal da “Marcha das Vadias” é a situação, compartilhada por mulheres de todo o mundo, de cerceamento da liberdade e da autonomia, de medo de sofrer violência e da objetificação sexual.

Recentemente, em resposta à pesquisa do IPEA, especialmente no que tange ao fato de que 65,1% dos brasileiros concordam, total ou parcialmente, que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas", a jornalista Nana Queiroz criou a campanha “Eu não mereço ser estuprada”, que já conta com mais de 44 mil adesões em um evento criado no Facebook. A manifestação consiste na postagem de fotos onde as mulheres seguram cartazes com frases repudiando o estupro e a violência contra a mulher. Celebridades já aderiram à campanha e o movimento foi citado inclusive pela presidente Dilma Roussef. Nana denuncia que, por ter idealizado o movimento, já sofreu centenas ameaças na internet de estupro e outras formas de agressão, além de mensagens de apologia ao estupro.

De fato, a violência contra a mulher tem raízes profundas que estão situadas ao longo da história da humanidade. No entanto, apesar da dificuldade da desconstrução dessa cultura de violência contra a mulher, grandes mudanças ocorreram no Brasil ao longo dos anos, em virtude de fortes mobilizações que combateram a violência de gênero. A articulação social em movimentos próprios, somada a uma intensa busca por parcerias com o Estado, para a resolução desta problemática, resultou em uma série de conquistas.

Uma das gloriosas conquistas das mulheres consistiu na aprovação da Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que criou instrumentos de combate a violência doméstica e familiar contra a mulher. Além da articulação no âmbito nacional, o não cumprimento dos compromissos firmados em Convenções Internacionais acarretou uma denúncia ao Sistema Internacional, através da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que após a avaliação do caso, publicou em 2001 o Relatório nº 54, que dentre outras constatações, recomendou que o Brasil desse prosseguimento e intensificasse o processo de reforma legislativa que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra as mulheres no Brasil.

Por conseguinte, a Lei nº 11.340/2006 caminhou em direção ao cumprimento das determinações da Convenção de Belém do Pará e da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra as Mulheres (CEDAW), além de regulamentar a Constituição Federal. Indubitavelmente, a Lei Maria da Penha consiste no maior exemplo brasileiro do sucesso da articulação social no combate à violência contra a mulher. O caminho foi longo e árduo, porém é a prova de que os movimentos sociais promovidos pela indignação da sociedade produzem resultados concretos.

Paralelamente, a implementação pelo governo de ações pontuais específicas como a concretização de políticas públicas que promovam a igualdade entre homens e mulheres e um ordenamento jurídico adequado e coerente com as expectativas e demandas sociais, dentre as quais figura a garantia da punição do estuprador, são medidas necessárias, tanto para a redução dos índices de violência contra a mulher quanto para a desconstrução da cultura patriarcal brasileira.

No entanto, não basta a existência de um ordenamento que tenha vigência jurídica. Ele deve ter vigência social, isto é, deve ser aceito e aplicado pelos membros da sociedade. Nesse viés, o combate ao fenômeno da violência contra mulher não é função exclusiva do Estado. A sociedade deve se responsabilizar, no sentido de não aceitar conviver com este tipo de violência, pois, ao se manter inerte, ela contribui para a perpetuação da impunidade.

A desconstrução da cultura patriarcal e a eliminação da culpabilização da mulher pela conduta dos seus agressores são desafios que, por certo, exigem a atuação conjugada da sociedade civil e do governo brasileiro. A questão da conscientização da natureza histórica da desigualdade de gênero e suas consequências, primordialmente a culpabilização da mulher vítima de estupro, precisa ser trabalhada com intensivas políticas públicas, campanhas publicitárias e com movimentos sociais organizados. Da mesma forma, um ordenamento jurídico adequado em consonância com as expectativas da sociedade é essencial para o fim proposto. Tais medidas certamente não são as únicas soluções e não irão desconstruir imediatamente a ordem patriarcal vigente, porém são degraus na longa busca pelo fim da desvalorização da mulher brasileira.

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