O jornalista, político, escritor e editor Carlos Lacerda completaria hoje cem anos. Figura proeminente no cenário nacional dos anos cinquenta e sessenta do século passado, após 37 anos do seu falecimento em 21 de maio de 1977, ainda divide opiniões acerca de sua controvertida personalidade. Para uns, era líder insubstituível, dotado de recursos retóricos inigualáveis. Para outros, o ambicioso que tentou conquistar o poder maior da República, sem lograr êxito. Visando o objetivo, com a ajuda de militares, seus seguidores: conspirou, derrubou presidentes, e terminou tragado pelo movimento de março de 64, que ajudou a deflagrar. Para compreender sua figura histórica é imprescindível um mergulho em seus dados biográficos.
Há um Lacerda menos conhecido, autor de contos, de poemas, do ensaio memorialístico “A Casa do Meu Avô”, considerado por Carlos Drummond de Andrade, obra prima do gênero. Além dos primorosos textos jornalísticos publicados no “Correio da Manhã” do Rio, e depois no “Tribuna da Imprensa”, por ele fundado em 1949, objetivando combater o ex-ditador Getúlio Vargas, seu principal adversário. Em 1950 defendeu a tese de que o caudilho não podia ser candidato, se eleito, não deveria ser empossado. Pregou sua deposição, na campanha moralista, invocando o “mar de lama” de corrupção envolvendo-o. Após o atentado da Rua Tonelero, em Copacabana, intensificou as denúncias, levando o presidente ao gesto do suicídio em 24 de Agosto de 1954. Empregava retórica inflamada, Afonso Arinos, mestre da oratória, dizia que ninguém o excedia.
Pioneiro na utilização do rádio e da televisão para fins políticos, prosseguiu as campanhas contra os herdeiros de Vargas, Juscelino Kubistchek e João Goulart. O primeiro o proibiu de usar a televisão durante seu mandato (1956-1960). Os assessores do segundo (1961-1964) planejaram seu sequestro. Articulou a candidatura de Jânio Quadros (1961). Tão logo este assumiu a presidência desentenderam-se. Foi à televisão denunciando tentativa de golpe de parte do presidente, desencadeando a crise da renúncia.
João Goulart assumiu a presidência, Lacerda começou a tramar a sua derrubada. Aliou-se aos militares, vitorioso o movimento, desentendeu-se com os generais Costa e Silva, Golbery Couto e Silva, e por fim, com Castelo Branco, após a prorrogação do seu mandato em 1966. Desencadeou virulenta campanha contra o marechal presidente e o ministro do planejamento Roberto Campos, acusando-os de política econômica antinacional e antidemocrática. Em seguida, aliou-se aos antigos adversários Juscelino e Jango na Frente Ampla, até a suspensão dos direitos políticos decretada pelo Ato Institucional 5, em dezembro de 1968.
Iniciou então nova fase da existência. Voltou ao jornalismo, correspondente internacional de revistas e jornais, fundou a editora Nova Fronteira, surgiu o empresário bem sucedido. Antes, como governador do Estado da Guanabara, revelou-se o administrador exitoso, realizou obras públicas vitais como os túneis. tornando possível a mobilidade urbana. Resolveu os problemas do abastecimento de água, de energia, do ensino fundamental. Concebeu obras ousadas, como o Aterro do Flamengo, executado por sua amiga Lota Soares. Adotou procedimentos inovadores de planejamento e gestão pública. E, no entanto perdeu a eleição, não emplacou o sucessor graças à inédita aliança entre o castelismo e as esquerdas.
Depois diria: “o meu forte não é a política, mas o poder, como forma de realização de ideias para o bem da coletividade”. No contexto dos anos sessenta Lacerda era visto como um autoritário, rondando os quarteis para chegar ao poder máximo, a Presidência.
Por que não conseguiu? O seu neto Rodrigo Lacerda, no livro “A República das Abelhas”, utilizando o método por Machado de Assis em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, inicia a revisão histórica do avô. No período compreendido entre 1930-1954, relata episódios vividos pelo clã Lacerda: seu pai Mauricio, os irmãos, eram revolucionários de Trinta, esquerdistas, sentiram-se todos traídos e depois presos por Getúlio Vargas.
Na versão de Rodrigo, desejava alcançar a democracia expurgando a política dos “vícios do getulismo” Aliou-se aos tenentes de Trinta, agora generais, também traídos por Vargas. Mas era impaciente, jogava no tudo ou nada, terminou perdendo.
Personagem essencial para a compreensão do Brasil da segunda metade do século passado, sem ele, talvez não ocorresse o suicídio de Vargas, a ascensão de Juscelino e o golpe de 64.
Enfim, o Brasil poderia ser outro. O centenário requer-lhe um biógrafo brasileiro, afinal, sua melhor biografia até hoje escrita é da lavra do norte-americano John Foster Dulles. O material está disponível na biblioteca da UNB e no acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa. Mãos à obra.