Publicado por Marcelo Passamani Machado em JusNavigandi
1- Introdução
Nos últimos 50 anos, vem ganhando cada vez mais força a corrente filosófica conhecida como relativismo cultural.
A origem do relativismo cultural está vinculada ao trabalho do antropólogo Franz Boas, alemão de nascimento que desenvolveu a maior parte de seu trabalho nas universidades dos Estados Unidos no início do século XX. Boas, por sinal, não utilizou em seus trabalhos a expressão “relativismo cultural”: esta parece ter sido cunhada pelos discípulos do antropólogo para resumir as suas concepções após a sua morte em 1942.
Durante o período da “Guerra Fria” o relativismo cultural teve repercussão apenas moderada, uma vez que os conflitos da época eram concebidos mais como o confronto de duas ideologias (Capitalismo e Socialismo) e menos como rivalidades entre diferentes grupos culturais.
Com o colapso definitivo da URSS veio a rápida proliferação de lutas separatistas, aquecidas pelo extravasamento de rivalidades locais reprimidas por décadas. Vale lembrar que, alguns anos antes, o mundo presenciara o aumento do nível de brutalidade do conflito entre israelenses e palestinos, com a explosão da 1ª Intifada (1987). Pois bem, todos esses “novos” conflitos acabaram por renovar o interesse dos estudiosos pelo relativismo cultural. Nos dias atuais esse processo de revivescência do relativismo ainda perdura, talvez impulsionado pela indignação de muitos com a política externa das grandes potências em relação aos países periféricos.
Ocorre que, apesar das boas intenções que normalmente estão por trás da defesa do relativismo cultural, tal doutrina possui reflexos perversos no que se refere à teoria dos direitos fundamentais, podendo mesmo chegar a solapá-la por completo. É isso que se quer demonstrar brevemente no presente trabalho.
2- O relativismo cultural e sua crítica
O relativismo parte da constatação de que pessoas que vivem sob condições materiais e culturais diversas acabam desenvolvendo valores e padrões morais diversos. Desse modo, não caberia a uma dada sociedade julgar os membros de outras sociedades com base nos seus parâmetros, que são diferentes dos daqueles que são julgados. Como conseqüência, chegaríamos à conclusão de que não existe superioridade dos valores de nenhuma sociedade sobre os valores das demais, na medida em que esses são produto de condições materiais e culturais únicas, não sendo legítima a sua imposição àqueles que são diferentes. Assim, não existiria algo como humanidade, mas sim diversos grupos profundamente distintos, como eslavos, árabes, aborígines, mamelucos, pigmeus, etc.
Vê-se que até esse ponto o relativismo cultural parece ser inofensivo. Na verdade, a idéia da impossibilidade de imposição de valores pode até ser considerada, num primeiro momento, um argumento contrário ao imperialismo cultural.
Ocorre que o relativismo, ao negar a existência de qualquer parâmetro ético universal, deixa a questão do respeito dos direitos humanos totalmente entregue às circunstâncias históricas, o que em última instância permite a aceitação de todas e quaisquer atrocidades.
Não é só isso: a partir do momento em que isenta de crítica qualquer traço cultural-axiológico de uma dada sociedade, o relativismo esvazia a crítica ao imperialismo cultural. De acordo com Peter Singer: “Segundo essa concepção, é impossível abstrair a moralidade da nossa própria sociedade e exprimir um juízo moral transcultural ou objetivo sobre qualquer coisa, inclusive sobre o respeito à cultura dos diferentes povos. Assim, se por acaso vivemos numa sociedade que exalta os que dominam outras sociedades e suprimem a cultura delas – e as mesmas pessoas que defendem o relativismo moral dizem com freqüência que essa é a tradição ocidental – essa é então nossa moralidade, e o relativismo não pode oferecer nenhuma razão coerente para que não devêssemos dar continuidade a ela”.1
Vê-se então que o relativismo, ao negar a existência de características humanas universais (negando, por conseqüência, a existência de algo como a “natureza humana”) torna-se racional e eticamente inconsistente.
Ora, se somos todos seres humanos e se os seres humanos possuem alguns direitos inerentes à sua própria condição, então existe um núcleo de direitos humanos mínimo, cuja proteção deve ser perseguida independentemente de condições materiais, culturais e históricas. É somente acima desse mínimo que as diferenças culturais podem atuar (e atuam), de modo a produzir a diversidade que enriquece o patrimônio da humanidade. Note-se que a assertiva acima não pode ser objetada com a afirmação (historicamente correta) de que nem sempre esse núcleo mínimo de direitos humanos foi reconhecido e respeitado nas diversas sociedades. De fato, uma coisa é o ser, outra coisa é o dever-ser.
Sem dúvida grande parte da popularidade do relativismo se deve ao seu verniz de tolerância e respeito à diferença (que, repita-se, enriquece a humanidade, desde que preservado um núcleo mínimo de direitos humanos). Entretanto, as suas implicações são perigosas.
A primeira delas já foi exposta anteriormente: se todas as comunidades são diferentes e se não é legítimo julgar o diferente por quaisquer critérios que não os seus próprios, então, somos todos obrigados a conviver com todas as diferenças, por mais aberrantes que possam ser. Assim, a mutilação genital, a submissão feminina, a violenta ditadura teocrática e a segregação racial devem ser aceitos sem qualquer contestação, como inevitáveis manifestações culturais dos povos.
Isso por si só seria um problema, pois em todos os casos acima o conteúdo mínimo dos direitos humanos parece estar sendo violado.
Mais grave que isso, entretanto, é o passo seguinte: além de aceitas, essas diferenças freqüentemente passam a ser exploradas em benefício de um pequeno grupo. Assim, os grupos dominantes em determinadas sociedades, possuidores de aspirações expansionistas, passam a explorar estruturas tradicionais de poder em outras localidades em benefício próprio. Com isso, a dissidência e os movimentos reformistas locais acabam sendo esmagados não apenas pelo poder local, mas também por grupos estrangeiros. Desse modo, estruturas e costumes até então cambaleantes, sem qualquer sustentação popular, acabam tendo sua sobrevida assegurada através da ajuda externa.2
3. Conclusão
É certo que a convicção na supremacia dos valores ocidentais e na universalidade de um determinado conjunto de direitos fundamentais (hoje tidos por muitos como essencialmente burgueses), no passado, animou uma série de iniqüidades contra os povos ditos “não civilizados”. Nessas oportunidades, não foram poucas as alusões à “missão civilizadora do homem branco”, cuja lembrança ainda hoje causa mal-estar generalizado.
No entanto, a resposta à questão a respeito da consistência ética dos diferentes costumes dos diferentes povos não pode ser dada de modo satisfatório pelo relativismo cultural.
Uma teoria racional e eticamente consistente a respeito dos direitos fundamentais não pode prescindir do reconhecimento de um núcleo mínimo e universal, por mais árdua que seja a tarefa definir quais são os direitos pertencentes a esse núcleo mínimo. Caso contrário, aquilo que foi conquistado em séculos de lutas pode ser perdido sob o manto de uma tolerância ilusória.
BIBLIOGRAFIA
– ALI, Tariq, Confronto de fundamentalismos – Cruzadas, Jihads e Modernidade, Rio de Janeiro, Record, 2002.
– EAGLETON, Terry, A idéia de cultura, São Paulo, Unesp, 2003.
– HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence, A invenção das tradições, 3ª ed., São Paulo, Paz e Terra, 2002.
– HUNTINGTON, Samuel P., O Choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial, Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 1998.
– SAID, Edward W., Cultura e Política, São Paulo, Boitempo, 2003.
– SINGER, Peter, Um Só Mundo: A Ética da Globalização, São Paulo, Martins Fontes, 2004.
Notas
1 SINGER, Peter, Um Só Mundo: A Ética da Globalização, Martins Fontes, São Paulo, 2004, p. 181.
2 “Embora os seres dotados de razão possam discordar acerca de muitas áreas da ética – e a cultura de cada um desempenha um papel nessas diferenças – , por vezes o que as pessoas dizem ser uma prática cultural distintiva só serve na verdade aos interesses de uma pequena minoria da população, e não ao povo como um todo.” (SINGER, Peter, Um Só Mundo: A Ética da Globalização, Martins Fontes, São Paulo, 2004, p. 182)