Getúlio Vargas, um dos construtores do Brasil moderno, a propósito do cumprimento das leis trabalhistas que copiara da Itália de Mussolini, teria pronunciado a célebre frase: “A Lei, ora a Lei…”. De formação positivista, o ditador acreditava em um Estado forte, governado pelos mais esclarecidos e por leis científicas. Após 1937 mostrou que a sua crença nos postulados positivistas era real, enquanto a questão do cumprimento das leis jurídicas ficava em segundo plano. Em um país que como couves, elas pegam ou não pegam, não é difícil encontrar as raízes históricas dessa atitude. Remontam a colonização, quando Portugal para cá mandava funcionários com ordenações. Eles eram os primeiros a descumpri-las, dentre outras razões, para enganar o Rei. Sem esquecer, este encarnava o Estado e suas regras.
Há, portanto, o carma histórico-cultural de descumprimento das leis, que passa de geração para geração, na monarquia, na república, na democracia, na ditadura, o comportamento é o mesmo. Se as leis não são cumpridas, pelas mesmas razões as sentenças judiciais delas derivadas. Os exemplos se repetem no cotidiano. O compositor Roberto Carlos acentua em uma canção: “tudo que eu gosto, é ilegal, imoral ou engorda”. O brasileiro cultua o gosto pela ilegalidade. O poeta José Chagas, com fino humor dizia: “a única coisa que funciona no Brasil é o jogo do bicho, porque é ilegal”. E acrescentava, no dia em que for legalizado não funcionará.
Em outras palavras traduzia o sentimento de que o legal, o institucional, foram feitos para não funcionar, situados que estão na esfera do surreal, bem expressado pelo jurista argentino Luiz Alberto Warat, interpretando o livro “Dona Flor e seus dois maridos”, de Jorge Amado, como a perfeita metáfora do Brasil, convivendo ao mesmo tempo com duas realidades. De um lado o marido legal, Teodoro Madureira, que não satisfazia, de outro, o boêmio Vadinho que a satisfazia.
Há outras geniais incursões no mundo da literatura para retratar a realidade das leis no Brasil, como a efetuada por Tércio Sampaio Ferraz Jr., Professor de Teoria Geral do Direito da USP, utilizando do clássico de Lewis Carrol, “A Doutora Alice no país da Lei”. Nele, a personagem interroga o Dr. Coelho Branco, depois de constatadas várias ilegalidades: “então, para que servem as leis?”. O Coelho responde: “servem para muitas coisas, para explicar o principio da legalidade insculpido na Constituição”. Mas como, se as ilegalidades e inconstitucionalidades vicejam e prosperam por aí? O mesmo Coelho retruca: “elas serão declaradas inconstitucionais na próxima Constituição”. Dito isto, ele despareceu e a advogada Alice despertou do sonho.
Se assim não fosse, ele poderia responder-lhe ainda acerca de outras fantasias, como a dos decretos-leis, chamados de medidas provisórias. De efeito imediato, com frequência ferem a direito líquido e certo, mas o poder interpretativo assim não os considera. Tornando irrelevante a situação fática de lesão concreta ou de ameaça aos direitos das pessoas. O Coelho Branco estabelece distinção entre Poder Judiciário e o poder interpretativo. E deixa claro: este último é quem prevalece movido por circunstancias e interesses.
O poeta Ferreira Gullar, em artigo recente publicado pela “Folha de São Paulo”, sob o título “Cidade do Barulho”, adverte: “o problema é que a lei, em nosso país, não vale, a não ser contra o cidadão que acredita nela”. O pressuposto é antigo e aparece na frase atribuída ao político mineiro Benedito Valadares: “para os amigos tudo, para os inimigos, apenas os rigores das leis”. Ou seja, elas não se aplicam aos donos do poder e seus amigos.
Diante da constatação é inevitável a indagação: assim, o Direito não existe? Claro que sim. Ele é que faz a maioria das pessoas cumprir as suas obrigações mesmo sem o funcionamento das instituições e das suas leis. Jean Cruet, na “Vida do Direito e a inutilidade das Leis” asseverava: todo o dia se vê os fatos mudando as leis, nunca ocorrendo o contrário.
O jurista alemão Savigny acreditava na inviabilidade da vontade arbitrária do legislador para regular a conduta das pessoas, preferindo apostar na força dos costumes para fazê-lo. Nessa hipótese, as leis são assunto sério demais para ficar apenas a cargo de políticos.
O legislador para tornar-se obedecido terá que submeter-se a ética do interesse geral. Será inútil impor regras de cima para baixo sem a concordância dos cidadãos.
Por que manifestantes, grevistas, policiais, não cumprem as leis e as correspondentes decisões judiciais? Porque não as pactuaram. Do jeito que está tudo caminha para a anarquia generalizada. Há necessidade de esboçar novo pacto social, e a partir dele formular leis geradas pelo consenso de todos.
Pois a assim continuar, caminhamos para o caos e a democracia corre perigo.