Publicado por Levy Moscovits em JusNavigandi
A Lei Maria da Penha fundamenta-se, essencialmente, na ideia de violência de gênero para estabelecer mecanismos jurídicos a fim de prevenir, punir e erradicar a violência doméstica contra a mulher. Para isso, pressupõe-se, que a legislação existente se baseou em um consistente estudo criminológico, o qual poderia averiguar qual a melhor estratégia o legislador penal poderia adotar diante deste tipo de violência. Resta agora analisar, com mais cuidado, o que sugerem os estudos criminológicos.
Analisando os dados coletados em estudo realizado pela Fundação Perseu Abramo, percebe-se que no ano de 2001, uma em cada cinco mulheres havia sofrido alguma espécie de violência[1]. Outro dado alarmante trazido pela pesquisa aponta São Paulo como o estado com o maior registro de agressões (334.589) do país, sendo que, desse universo, 25% foram vítimas de lesões corporais. Esses dados são ainda mais impressionantes quando se constata que do universo total de vítimas de violência, ¼ (um quarto) foi sujeito passivo do delito de lesão corporal. Ressalte-se que a pesquisa em questão contempla doze modalidades de violência contra a mulher[2].
Estabelecendo uma relação entre as modalidades de violência e a amostragem colhida, a pesquisa sugere que, de 2001 até 2012, percebe-se uma pequena redução nos casos registrados. Afinal, os dados referentes a 2011 revelam que 16% das mulheres já levaram tapas, empurrões ou foram sacudidas (em 2001, eram 20%), 16% sofreram xingamentos e ofensas recorrentes referidas a sua conduta sexual (em 2001, eram 18) e que 13% já foram ameaçadas de surra (em 2001, eram 11%). Tomando-se como base as ocorrências registradas e o contingente de mulheres representadas em ambos os levantamentos, o número de mulheres espancadas permanece alto, mas diminuiu[3].
Diante dos dados colhidos, é preciso ressaltar que a existência da Lei 11.304/06 foi importante, porém não decisiva. Isto porque, conforme acima demonstrado, a evolução percebida nos registros de casos é tímida perante a proposta apresentada pela multicitada lei. Ou seja, se houve um recuo nos registros, esse recuo não justifica as medidas político-criminais adotadas pela mencionada legislação. Não se está com isso, de maneira alguma, deixando de atribuir importância a Lei nº 11.304/2006. Contudo, as pesquisas criminológicas revelam é que é preciso fazer um amplo estudo sobre o fenômeno da violência contra a mulher (englobando tanto a violência doméstica como a intrafamiliar) com o escopo de aperfeiçoar as políticas públicas não só de combate à violência (que, sem dúvidas, ultrapassa a esfera jurídico-penal para incluir programas de educação e de reeducação dos agressores), como, também, de tratamento das vítimas. Caso contrário, corre-se o risco de banalizar o uso da legislação penal e, com isso, acabar provocando, na população, a indiferença para com a norma penal.
Este raciocínio tem por base a própria Lei Maria da Penha, a qual em seu art. 8º, II[4], determina que o poder político, nas três esferas administrativas, e as entidades não governamentais, de forma articulada, incrementem as políticas de que trata a Lei. Isto é, a própria legislação reconhece que ela pode ter resultado de um ato de precipitação do legislador. Em outros termos, é preciso reavaliar, periodicamente, as medidas que foram adotadas pelo legislador no que tange à violência contra mulher.
Aliás, acerca disso, o professor Isaac Guimarães, citando o jurista espanhol Escudero Moratalla, afirma:
“as políticas específicas para o trato do problema são abertas, permitindo não só adequações necessárias, mas, igualmente, o estabelecimento de metas. O tema, contudo, é complexo e não se fica na perspectivação de gênero, raça ou etnia: muitos outros fatores aderem ao universo fenomênico, incluindo os de ordem econômica e social. Escudero Moratalla, refere a propósito ‘[…] diversas circunstâncias que incidem tanto sobre o surgimento como sobre a configuração da conduta violenta. Fatores genéticos, sociais, educacionais, culturais e psicológicos, mesclados e inter-relacionados, determinam de modo parcial, fragmentário e complementário os comportamentos violentos[…]’” [5].
Neste sentido, é preciso reconhecer que há, ainda, muito a evoluir quando o problema é ter uma melhor compreensão do fenômeno da violência doméstica. Seja qual for a legislação criminal, é preciso ter em mente que ela será tanto mais legítima quanto maior for a sua sintonia com a realidade social. Por conseguinte, é preciso que a política criminal e a dogmática penal (o Direito Penal e o Processo Penal) estejam sempre em harmonia com a Criminologia, sob pena da legislação não ter a capacidade de desempenhar a função que dela se espera, qual seja, auxiliar o jurista na resolução dos conflitos jurídicos.
Por isso, é preciso investigar um pouco mais o que diz a criminologia acerca da violência contra a mulher. Há duas vertentes doutrinárias sobre o assunto. A primeira, essencialmente feminista, criada no início da década de 80 do século XX, que estabelece seu eixo central na desigualdade do gênero, sustenta que o Direito Penal é mecanismo capaz de pôr fim à desigualdade. A segunda põe em relevo certas condições que invalidam o fundamento da violência na desigualdade. São essas condições que serão comentadas adiante.
A tese feminista insiste na política de distinção de gênero como a causa principal da violência contra as mulheres. Isto porque, embora reconheça certos fatores de risco, como o comportamento psíquico de algumas mulheres, aponta para a situação de desigualdade estrutural como principal variável do fenômeno. Apesar de não se querer desenvolver críticas mais contundentes à mencionada vertente doutrinária, faz-se necessária algumas considerações.
Partindo-se da premissa de que a desigualdade encontra-se fortemente entrelaçada aos fatores culturais, como, por exemplo, a divisão de papéis dentro do organismo familiar (tendo a mulher assumindo, em razão disso, as tradicionais atividades domésticas), não merece prosperar a vertente criminológica exclusivamente fundada na culpabilidade diferenciada a partir do critério de gênero. Afinal, se a violência contra mulher é um produto cultural, o uso da legislação criminal para reprimi-la, ao invés de reverter o problema, colabora para perpetuidade desse, vez que acirra as diferenças existentes. Cria-se, assim, um circulo vicioso, a mulher, antes submissa no contexto das relações familiares, agora se torna, também submissa perante o sistema penal.
Ademais, é preciso atentar para advertência de Isaac Guimarães[6], citando Elena Larrauri, qual seja, não se deve reduzir, metodologicamente, o problema da violência doméstica à questão da violência contra mulher, como quer a Ley Organica contra la Violencia de Género (LOVG). A propósito, veja o que diz o referido autor sobre o assunto:
“…por um lado, simplifica excessivamente a violência contra a mulher nas relações conjugais ou de convivência ao apresentar este delito como algo que acontece ‘pelo fato de ser mulher’, como se a subordinação da mulher na sociedade fosse causa suficiente para explicar referida violência; em segundo lugar, expõe um raciocínio excessivamente determinista, de forma a que a desigualdade de gênero, à qual se atribui a categoria de causa fundamental, tivesse capacidade de alterar só por si os indicies de vitimização das mulheres, ignorando outras desigualdades; finalmente, confia e atribui ao direito penal a grande tarefa de alterar esta desigualdade estrutura, sobre a qual se pensa ser a principal responsável da vitimização das mulheres” (grifo nosso).
Todavia, apesar de tal advertência, não foi essa a vertente doutrinária adotada pela Lei Maria da Penha. O problema de enveredar por esse caminho não é, por óbvio, apenas uma divergência ideológica. O problema é que essa política criminal é uma política que credita ao Direito Penal o papel de protagonista no combate à violência contra mulher. E, ao fazê-lo, esquece-se que o Direito Penal não tem a capacidade de diluir esse problema. Antes, pelo contrário, agrava o problema da violência contra a mulher, a qual tende a ser, agora, mais sútil e sofisticada, logo, menos perceptível. Em suma, apostar em uma política criminal feminista é como tratar uma infecção grave, utilizando-se de analgésicos.
Por outro lado, a segunda vertente doutrinária criminológica sobre a violência contra a mulher, a que é defendida por certos setores da criminologia norte-americana, envereda por um caminho completamente contrário. Esta sustenta que a violência contra mulher não é ocasionada, exclusivamente, por força da questão de gênero, antes decorre de outros fatores sociológicos, como, por exemplo, o stress da vida urbana, a disputa por uma vaga no mercado de trabalho, a má distribuição de renda, a falta de acesso ao sistema de saúde, entre outros.
Ademais, as agressões contra a mulher não têm dimensões desproporcionais, quando comparada aos demais delitos, haja vista que se os atos violentos são frequentes na vida social, é previsível que também o sejam contra as mulheres. Além disso, partindo-se de uma analise universal, constatar-se-á que as mulheres são menos vítimas de atos violentos do que os homens. Não fosse isso suficiente, não se pode olvidar que as mulheres usam de força em seu ambiente familiar, afinal são elas que educam os meninos de hoje, os homens de amanhã. Ou seja, a violência contra a mulher, em parte, é gerada por ela própria, ao transmitir certos valores culturais por meio da educação que confere aos seus filhos.
A propósito, convém trazer à baila as palavras de Isaac Guimarães:
“estes estudos, para além do mais, derrubam as tese feministas quando esclarecem que as mulheres também recorrem à violência, embora seja possível distinguirem seus atos daqueles, praticados pelo homem, quando à intensidade, à finalidade (via de regra, para defender-se), aos motivos (a violência praticada pela mulher ocorre pontualmente e para intimidar ou castigar) e ao contexto (pois que não tende a produzir sensação de temor na pessoa agredida)” (grifo nosso).
Por fim, a tese criminológica norte-americana adverte que a melhor forma de prevenir a violência contra a mulher, não passa pelo uso da máquina estatal, ou do Direito Penal, ou dos operadores do sistema penal.
Daí, conclui-se que o caminho mais recomendável é a utilização de medidas materiais e educativas dirigidas a prevenir todo tipo de ato violento. O que se deve coibir não são os valores culturais compartilhados socialmente, mas, sim, os impulsos estimulados pela própria vida social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Apresenta dados sobre violência doméstica entre os anos de 2000 e 2001. Disponível em <www.fpabramo.org.br/galeria/violencia-domestica>. Acesso em: 05 de novembro de 2013.
GUIMARÃES, Isaac Sabbá; MOREIRA, Rômulo de Andrade. Lei Maria da Penha – Aspectos Criminológicos, de Política Criminal e do Procedimento Penal. 2ª Ed. Curitiba: Juruá, 2011.
Notas
[1] Disponível em <www.fpabramo.org.br/galeria/violencia-domestica>.
[2] Idem.
[3] Ibidem.
[4] (…) a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações importantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às consequências e à frequência da violência doméstica e familiar contra a mulher (…) – Art. 8, inciso II da Lei 11.304/06.
[5] A Lei Maria da Penha, cit., p. 67.
[6] Ibidem, p. 69