Publicado por Rui da Fonseca e Castro em JusBrasil
O antigo primeiro-ministro português, José Sócrates, foi detido na passada sexta-feira, dia 21, acontecimento que, desde então, e como é normal, se encontra na ordem do dia dos meios de comunicação social.
Aproveitemos então para – sem formular juízos de valor, quer no que respeita à culpabilidade indiciária, quer no que concerne à condução do processo – alinhavar alguns comentários ao regime processual penal português, na parte ora relevante.
Trata-se de um processo criminal que se encontra na fase de inquérito. Esta fase processual tem um escopo exclusivamente investigatório, sendo dirigida pelo Ministério Público, com a assistência dos órgãos de polícia criminal (artigos 262, n.º 1, e 263, n.º 1, do CPP).
Existem, contudo, determinados atos que, no âmbito do inquérito, apenas podem ser praticados, ordenados ou autorizados pelo juiz de instrução (artigos 268 e 269 do CPP). Dois deles consistem na realização do primeiro interrogatório judicial de arguido detido e na aplicação de medidas de coação e de garantia patrimonial (artigo 268, n.º 1, alíneas a) e b), do CPP).
Portanto, sempre que o Ministério Público pretenda que tais atos tenham lugar, deverá requerê-los ao juiz de instrução, o que presumimos que tenha efetivamente ocorrido, tendo sido o arguido detido para esse efeito.
Vejamos agora em que situações pode ou deve o arguido ser detido no decurso do inquérito.
A detenção tem as seguintes finalidades (artigo 254 do CPP):
– Para, no prazo máximo de quarenta e oito horas, o detido ser apresentado a julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coação; ou
– Para assegurar a presença imediata ou, não sendo possível, no mais curto prazo, mas sem nunca exceder vinte e quatro horas, do detido perante a autoridade judiciária em ato processual.
A detenção pode ser em flagrante delito ou fora de flagrante delito, sendo que, in casu, interessa apenas a segunda modalidade, uma vez que é evidente que não estave em causa uma situação de flagrante delito.
A detenção fora de flagrante delito só pode ser efetuada por mandado do juiz ou, nos casos em que for admissível a prisão preventiva, por mandado do Ministério Público, podendo ocorrer nas seguintes situações (artigo 257 do CPP):
– Quando houver fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria voluntariamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado;
– Quando se verifique, em concreto, alguma das situações determinantes da aplicação de medidas de coação que apenas a detenção permita acautelar; ou
– Se tal se mostrar imprescindível para a proteção da vítima.
As autoridades de polícia criminal podem também ordenar a detenção fora de flagrante delito, por iniciativa própria, mediante a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
– Se tratar de caso em que é admissível a prisão preventiva;
– Existirem elementos que tornem fundados o receio de fuga ou de continuação da atividade criminosa; e
– Não for possível, dada a situação de urgência e de perigo na demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária.
Presumindo que a detenção foi determinada pelo juiz de instrução ou pelo Ministério Público, é legítimo deduzir que a mesma teve lugar em virtude da existência de fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria voluntariamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado ou perante a verificação, em concreto, alguma das situações determinantes da aplicação de medidas de coação que apenas a detenção permitisse acautelar.
Para além desse circunstancialismo, resta somente analisar a relação entre o primeiro interrogatório judicial de arguido detido e a aplicação de medidas de coação.
Se frequentemente a aplicação de medidas de coação tem lugar em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido – normalmente, porque o arguido é detido em flagrante delito e tem que ser apresentado ao juiz de instrução para primeiro interrogatório judicial –, nem por isso este ato é condição sine qua non da aplicação das medidas de coação.
Com efeito a aplicação de medidas de coação é, por regra, precedida de audição do arguido, nomeadamente em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido (artigo 194, n.º 4, do CPP), mas este ato pressupõe que tenha havido motivos para a sua detenção, em flagrante ou fora de flagrante delito.
Por consequência, a aplicação de medidas de coação em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido depende da verificação prévia de motivos determinantes da detenção, nos termos supra assinalados.
Doutro modo, a aplicação deve ser precedida da audição do arguido em liberdade – presencial, a nosso ver – em ato para o qual o mesmo seja notificado.
* As referências ao CPP respeitam ao Código de Processo Penal português – Decreto-lei n.º 78/87, de 17/02.
* Texto redigido ao abrigo do Acordo Ortografico da Língua Portuguesa, de 1990.