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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

O Conflito entre a proteção universal dos direitos humanos e o respeito à diversidade cultural

Publicado por Eduardo Alessi em JusBrasil

1. INTRODUÇÃO

O Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos, que ganhou força e visibilidade com a Carta das Nações Unidas de 1945, constitui uma importante ferramenta de tutela aos direitos mais básicos de todo ser humano para que haja a convivência adequada e esperada por todos.

Entretanto, a diversidade cultural é o principal obstáculo enfrentado pelos chamados “universalistas” – os defensores da aplicação global dos direitos humanos – já que, dependendo da região do planeta, os preceitos morais, religiosos, e até políticos, não correspondem com aqueles que a ONU (ocidente) espera que sejam seguidos, a fim de se obter a tão sonhada “paz mundial”.

Questiona-se: O que se faz quando um índio (que jamais teve contato com a civilização) quer enterrar viva uma criança deficiente, pois, segundo sua crença, sua sobrevivência é um motivo para os deuses se irritarem e destruírem toda a tribo? Deve-se proteger a vida? Ou deve-se proteger a autodeterminação dos povos? Os dois direitos são protegidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigos 3º e 27, respectivamente).

Este trabalho busca apresentar a problemática deste conflito entre a universalização dos direitos humanos e a diversidade cultural, como alguns autores trazem a discussão e apresentam ideias que podem representar uma saída para este importante impasse tão universal quanto se quer que sejam os direitos humanos.

2. SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

Os Direitos Humanos são tidos, atualmente, como aqueles pertencentes a todos os seres humanos do planeta, de modo que não se pode negar a ninguém nenhum destes direitos. É o chamado princípio da indivisibilidade dos direitos humanos que define que todos eles devem ser garantidos. Junto com o princípio da universalidade, entende-se que todos os direitos devem ser garantidos a todas as pessoas.

Para (tentar) garantir a efetivação destes direitos tidos como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens), foi criado um sistema internacional de proteção aos Direitos Humanos. Como aponta Antônio Augusto Cançado Trindade, o Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Interacional do Trabalho estabeleceram precedentes históricos para o atual sistema de proteção aos direitos humanos.

O direito humanitário é aquele aplicado durante a guerra. “É o Direito que se aplica na hipótese de guerra, no intuito de fixar limites à atuação do Estado e assegurar a observância de direitos fundamentais”, segundo ele, impondo limites à soberania e autonomia dos Estados.

A Liga das Nações, criada após a Primeira Guerra Mundial, veio com o intuito de garantir a paz e a segurança internacional, também mitigando a ideia da absoluta soberania nacional.

Ainda, a Organização Internacional do Trabalho, também criada em Versalles, tinha como principal objetivo promover condições dignas de trabalho a todos, impedindo, assim, violações indiretas aos direitos humanos.

Desse modo, estes três ponteiros da proteção aos direitos humanos, segundo Cançado Trindade, marcaram o fim da era do direito internacional que regulava apenas as relações entre os Estados, passando a obrigar estes a garantir o bem-estar e os direitos das pessoas.

Entretanto, para o autor, é somente após a Segunda Grande Guerra que se consolida a imperatividade de se buscar os direitos humanos, garantindo-os a todos. Segundo ele, aquilo que Hitler praticou na Alemanha, mesmo que devidamente amparado pela legislação interna, foi o que desencadeou o mais efetivo processo de busca pelos direitos humanos, de modo a nunca mais se permitir que tais atrocidades voltassem a acontecer. “Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar sua reconstrução”, diz ele.

Tudo isso se desenvolveu de maneira tal que, para impedir novamente que a soberania fosse obstáculo, houve um processo de internacionalização dos direitos humanos por meio da normatização de sua proteção, possibilitando a decretação de responsabilidade de um Estado no caso da falha de suas instituições na missão de garantir estes direitos.

Com o fim da Segunda Guerra, notou-se que a Liga das Nações não logrou êxito no objetivo de garantir a paz internacional. Criou-se, então, em 1945 a Organização das Nações Unidas. Atualmente, a ONU é a principal organização internacional e é quem chefia o sistema internacional de proteção aos direitos humanos, o qual se materializa sob a forma de tratados internacionais de direitos humanos e seus protocolos facultativos, haja vista que não se pode, sob pena de violar a soberania, obrigar os Estados a agirem de determinada forma. Além das Nações Unidas, há três Tribunais Penais Internacionais para julgarem certos crimes sob sua jurisdição, bem como os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, como o interamericano, o europeu e o africano, com suas Comissões e Cortes, que visam efetivar a aplicação da tutela adequada vinculando os Estados partes. Vale lembrar, todavia, que o sistema global é subsidiário aos sistemas internos de tutela, de modo que só é posto em movimento quando o sistema nacional falhou em garantir os direitos humanos de forma plena e esperada.

3. UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

A globalização, fenômeno pelo qual há troca de informações, bens, serviços, etc. Entre diversos países pelo mundo, ajudou muito no processo de universalização dos direitos humanos. Ora, quando se há tanto acesso a uma cultura diversa, e essa cultura diversa possui o discurso do progresso, aliado ao poder do capital, tende-se a estabelecer uma relação de dependência da cultura “exportadora” sobre a cultura “importadora”. Exemplo mais evidente, hoje, é o dos Estados Unidos, que “vendem” sua cultura, filmes, fast-food e ideais liberais para o resto do mundo, de tal modo que hoje, são a maior potência que existe.

Isso culmina naquilo que Boaventura de Souza Santos chama de “localismo globalizado”, isto é, quando uma cultura local é exportada de modo a se fazer presente nas demais localidades, nos demais países, substituindo o padrão social que seria seguido naquela região.

Assim, faz-se o mesmo com os direitos humanos. O ideal surgido na França, incorporado por outros países europeus, transpassou fronteiras e continentes e, hoje, como a maioria das coisas, está em toda parte, orientando visões e ações. A universalização dos direitos humanos, portanto, é mais uma consequência da globalização, o que, a princípio, para os criadores destes ideais, é algo excelente, já que combina com sua forma de viver, sua cultura e seus costumes.

4. RELATIVISMO CULTURAL

Por outro lado, quando esta imposição de formas de pensar e agir colide frontalmente com valores locais, surge a lide. Por isso surgiu o relativismo, que defende, basicamente, que a cultura é uma construção histórica de cada povo, sendo que suas peculiaridades devem ser respeitadas e, por isso, a “imposição” dos direitos humanos viola o princípio da autodeterminação dos povos (tabula rasa de John Locke), pois, se cada povo constrói seus costumes e crenças através do tempo, possivelmente, seu estatuto moral é diferente daquele das outras culturas e outros povos.

Isso implica na impossibilidade de imposição dos direitos humanos sobre os outros povos, haja vista que eles podem ter como mais importantes outros “bens”, diferentes, estabelecendo, assim, a dignidade humana como diversa daquela dos europeus.

Uma forte crítica sofrida por esta corrente, conforme aponta Eduardo Loula Novaes de Paula, aponta que os relativistas defendem apenas a autodeterminação da cultura em si, e não dos indivíduos pertencentes àquela cultura, de modo que, segundo as críticas, os relativistas toleram a clitorectomia, por exemplo, mas não abrem a possibilidade de as mulheres pertencentes à cultura que a pratica não aceitarem se submeterem a este procedimento.

Deste modo, abre-se a pergunta: será correto violar a autodeterminação dos povos a fim de buscar a proteção dos direitos humanos?

5. A IMPOSSIBILIDADE DE SE IMPOR UMA CULTURA, POR MAIS “HUMANA” QUE PAREÇA

Mesmo que a ideia de proteção global dos direitos humanos, com a ONU, a Corte Internacional de Justiça, os Tribunais Penais Internacionais, as campanhas mundiais contra diversas práticas e discriminações, etc., nos soe como algo bom, algo que realmente deve ser buscado, a fim de proteger as pessoas de atrocidades e arbitrariedades de qualquer origem, não parece ser certo violar a identidade cultural para tanto.

Isso porque, primeiramente, conforme ensina Daniel Quinn, o ser humano é parte integrante do meio em que vive. O mundo não foi feito para ele e, portanto, ele não possui o direito de fazer do mundo o que quiser, devendo estar ciente de que precisa respeitar as leis da natureza, da mesma forma como todos os seres do planeta estão sujeitos à lei da gravidade, por exemplo. Partindo desta premissa, não se pode conceber que o homem, que pensa ser o “dono do mundo”, possui a faculdade de impor regras sobre a própria natureza. Isso é impossível porque não se está mais falando de uma questão social ou jurídica, mas sim de uma questão antropológica e natural, pois, a existência do homem em culturas distintas é algo que surge com ele, não é uma criação sua. Desse modo, é natural do homem se dividir em culturas, pois, ao deixar de viver simplesmente como mais um animal no planeta, o homem, não sabendo como viver, de certa forma, quis impor seu modo de viver sobre a natureza. O único problema, aponta o autor, é que a humanidade não sabe como viver. Quando era como animal, o homem estava sujeito àquilo que o planeta provia, de modo que poderia morrer a qualquer instante, poderia passar fome nas épocas da seca, por exemplo. Por volta de 10.000 a. C., o homem descobriu a agricultura, passando a viver de modo diferente, pois, a partir da revolução agrícola, ele pode produzir seu alimento, produzir mais do que precisava, guardar o excedente e consumir quando fosse época de seca, driblando a morte que a natureza havia reservado a ele.

Isso deu à humanidade a falsa ideia de que ela tem o poder governar o mundo, ditar as regras, usar os outros animais como ferramenta para suas empreitadas, etc. Com o pensamento kantiano, veio a máxima de que o homem deve ser fim, não meio. Tudo isso, aliado às descobertas científicas, pensamento racional que difere o homem dos outros animais, bem como as atrocidades cometidas durante a história (principalmente durante a Segunda Grande Guerra), incutiu-se a “urgência” de se proteger a humanidade de tais barbaridades. Amartya Sem aponta que os direitos humanos são muito mais celebrados no ocidente do que na África e Ásia, o que demonstra a sua regionalidade. Tendo o ocidente o poder de influenciar o andamento do resto do mundo, chegou-se à conclusão de que nada seria melhor para isso do que aplicar normas a todos, normas ditadas pelo ocidente.

O problema, claramente, mostra-se quando estas proteções afrontam culturas diversas, como por exemplo, os muçulmanos ou índios. Aqueles têm por norma cultural que a mulher deve ser submissa ao homem; algumas comunidades indígenas, por sua vez, têm o costume (que nos soa bárbaro) de enterrar vivas, ou matar antes, crianças deficientes. A princípio isso causa espécie, querendo-se promover os diretos das mulheres, proteger as crianças a todo custo, garantindo-lhes o direito à vida digna. O empecilho, entretanto, encontra-se justamente no conceito de “vida digna”, pois, para nossa sociedade, ela significa algo, enquanto que, para os muçulmanos e alguns silvícolas, ela é vista de outra maneira. Como então se quer ditar a todos quais as normas devem ser seguidas, a fim de garantir a vida digna a todos, sendo que o conceito de vida digna varia entre os povos?

As Nações Unidas adotou em 2001 a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, a qual afirma que respeitar a diversidade cultural é garantir dignidade humana e que estabelece que a diversidade cultural é patrimônio da humanidade, fator para o desenvolvimento. Diz ainda que os direitos humanos são garantias da diversidade cultural. Tudo isso demonstra a vontade da comunidade internacional em proteger a cultura, sendo, assim, requisito para a dignidade.

Considerando, então, a premissa apontada por Amartya Sem de que “tentar ‘vender’ os direitos humanos como uma contribuição do Ocidente ao resto do mundo, é não apenas historicamente superficial e culturalmente chauvinista, como profundamente contraproducente”, deve-se começar a pensar nas possíveis soluções para as situações em que nos depararmos com conflitos entre os direitos humanos e a diversidade cultural. Adverte, entretanto, o autor, que querer aplicar desde logo os valores ocidentais é uma “alienação artificial”, o que pode gerar, eventualmente a ideia de etnocentrismo, pois passa-se a ver as outras culturas como “inferiores”, que não chegaram ao nível de entender perfeitamente o “modo correto” de viver.

6. DAS POSSÍVEIS SOLUÇÕES

Buscando uma via pacífica para a solução da antinomia entre os direitos protegidos igualmente pela Carta das Nações Unidas, e ponderando os direitos tão importantes que se assemelham a princípios, Boaventura de Souza Santos traz o conceito de “hermenêutica diatópica” para tentar elucidar um caminho melhor dentre aqueles que possuímos atualmente. Hermenêutica Diatópica, segundo ele, consiste na ideia de que os valores máximos e incontestáveis da cada cultura (os topoi) são tão incompletos quanto a própria cultura, por mais fortes que sejam. Obviamente, esta incompletude não pode ser vista de dentro da cultura, pois seus ensinamentos estão demasiado arraigados no pensamento das pessoas que pertencem a ela. Mas, quando vistos de fora, os topoi, que dificilmente podem ser aplicados em outras culturas, apresentam suas falhas.

A partir disto, o autor entende ser possível aplicar este conceito de hermenêutica diatópica, desde que, primeiramente, as relações entre culturas atendam a dois imperativos intercuturais:

O primeiro diz que “das diferentes versões de uma dada cultura, deve ser escolhida aquela que representa o círculo mais amplo de reciprocidade dentro dessa cultura, a versão que vai mais longe no reconhecimento do outro”. Isso significa que, dentre as formas de se viver determinada cultura, deve-se seguir aquela que é mais tolerante com as outras culturas. Souza Santos traz, por exemplo, as versões de direitos humanos – a liberal e a marxista – e define que a marxista é a que deve ser seguida por acolher melhor a diversidade e atender às necessidades das pessoas de forma mais ampla. O mesmo deve ser feito com as outras culturas envolvidas nas relações, de forma a se escolher, por exemplo, o modelo de islamismo que dá mais direitos às mulheres e aos não-muçulmanos.

O segundo imperativo declara: “as pessoas e os grupos culturais têm o direito de ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito de ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza”. Ou seja, na evidência de tratamento diferente que certas culturas implementam aos pertencentes delas e aos que não o são, deve-se considerar iguais quando a diferença discrimina e considerar diferentes quando a igualdade descaracteriza, impedindo, assim, violações acintosas a bens sensíveis, como a vida e a dignidade, quando não é da comum da cultura a sua violação.

Desse modo, Boaventura De Souza Santos traz uma luz, um guia, para a urgente necessidade de relação harmoniosa entre as culturas distintas, garantindo sua autodeterminação, não esquecendo ou ignorando a autodeterminação individual de cada um, pois é plenamente possível que algumas pessoas não concordem ou não compartilhem de determinados valores da cultura a qual pertencem, devendo ter autonomia individual para se governarem.

7. CONCLUSÃO

Evidenciando, assim, a antinomia existente entre a proteção universal dos direitos humanos e a diversidade cultural, cujas particularidades são inerentes à condição humana de ser social e racional, este trabalho trouxe uma breve parte da discussão, que envolve excelentes argumentos dos dois lados da balança: aquele que entende que os direitos humanos são necessários à construção do mundo esperado; e aquele que defende a autodeterminação dos povos, considerando que a dignidade humana de cada povo está diretamente relacionado com os topoi de cada cultura.

Desta feita, e sem querer estabelecer a verdade (o que seria objetivo demasiado utópico), buscou-se demonstrar os motivos que levam os citados autores a posicionarem-se favoravelmente ao direito à autodeterminação dos povos, sob pena de se criar um pensamento etnocentrista no ocidente, fazendo-o crer que é o dono da verdade e que apenas ele sabe como a humanidade deve proceder durante sua existência, o que, como a história nos conta, pode levar à subjugação de outros povos, tidos como “inferiores”. A história serve, justamente, para que não cometamos os mesmos erros do passado.

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva.

Declaração universal dos direitos humanos. Disponível em <http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm>

Declaração universal sobre a diversidade cultural. Disponível em <http://direitoshumanos.gddc.pt/3_20/IIIPAG3_20_3.htm>

PAULA, Eduardo Loula Novais de. Direito internacional dos direitos humanos: em busca da superação da discussão entre relativismo X universalismo. Disponível em <http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/1149>

QUINN, Daniel. Ismael: um romance da condição humana. São Paulo: Pierópolis.

SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Disponível em <http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Concepcao_multicultural_direitos_humanos_RCCS48.PDF>

SEM, Amartya. Direitos humanos e diversidade cultural. Disponível em <http://www.dhnet.org.br/direitos/indicadores/amartyasen/amartya_sem_dh_div_cultural.pdf>;