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Notícia

Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos como limitação material ao Poder Constituinte Originário

Publicado por Elisa Nóbrega em JusBrasil

Cynthia Lays Feitosa de Brito[1] Elisa Karoline Nóbrega Avelino[2]

Resumo: O presente trabalho tem como escopo analisar um ponto nevrálgico do Poder Constituinte Originário, qual seja, a sua alegada ilimitação. Precipuamente, buscar-se-á verificar se os Tratados Internacionais de Direitos Humanos podem ser tidos como limitação material ao Poder Constituinte originário no caso de ruptura com a ordem constitucional anterior e a criação de uma nova Constituição. Objetiva-se, por conseguinte, advogar a efetivação da democracia, conquistada em meios pedregosos, e que de forma alguma poderia perecer no berço da teoria constitucional contemporânea. Isto implica com que a conduta estatal seja, de forma necessária, norteada perenemente pela defesa dos direitos fundamentais, sendo estes, reconhecidos mundialmente, dessarte, crescente seja a valorização da pessoa humana.

1. Introdução

O Poder Constituinte é um fenômeno entendido como o poder de criar ou modificar uma Constituição. Faz-se mister diferenciar, a priori, o Poder Constituinte da Teoria do Poder Constituinte. O Poder Constituinte surge com a Constituição dos Estados Unidos da América em 1787. A sua teorização, em contrapartida, representa a busca pela legitimidade do poder, surgindo também nos fins do século XVIII com a Revolução Francesa, para invocar a razão humana, ao mesmo passo que substitui Deus pela Nação como titular da soberania, decaindo, assim, as monarquias que justificavam o seu poder no divino.

Majoritariamente fala-se na dicotomia Poder Constituinte Originário e Poder Constituinte Derivado, sendo o primeiro considerado um poder de natureza política, enquanto o segundo de natureza jurídica. O Poder Constituinte Originário encontra-se fora da Constituição, ou seja, não está orientado por ela, uma vez que cria uma Constituição sem obediência a nenhum limite formal. Por sua vez, o Poder Constituinte Derivado está inserido na própria Constituição, obedecendo aos limites impostos pelo Poder Constituinte Originário.

Entrementes, entendemos, em oposição diametralmente oposta à doutrina dominante, que o Poder Constituinte Originário sofre limitações de fato e de direito. O mesmo é limitado faticamente tendo em vista que para ser legítimo -visto que não é legal- deverá estar em consonância com a cosmovisão da comunidade. Compreendemos também que o poder constituinte em sua vertente originária sofre limitações de direito, os Tratados Internacionais de Direitos Humanos.

2. Ruptura Constituinte e Processamento Constituinte

Consideramos ainda que o Poder Constituinte se divide em duas fases: momento constituinte e processamento constituinte. A primeira fase é a do momento constituinte que surge com a vontade social que anseia por mudança da ordem constitucional vigente; é um processo desencadeado de forma ilimitada, não podendo ser controlado. Segundo Emmanuel Joseph Sieyés o Poder Constituinte é inicial, porque não está submetido a qualquer regra ou forma (A constituinte burguesa, 2001). Acreditamos na limitação apenas do momento constituinte, pois como afirma Hugo Gusmão, há “la incomunicabilidade entre el nuevo orden y el anterio”. (GUSMÃO, 2008, p. 117).

A ruptura assemelha-se à teoria defendida por Nassim Nicholas Taleb em seu livro “The Black Swan”, no qual afirma ser, O Cisne Negro, um acontecimento futuro, improvável e impactante. Tal teoria retira seu fundamento da ideia que se tinha da existência apenas de cisnes brancos, no entanto descobriu-se na Austrália, no final do século XVII, um Cisne Negro, acontecimento este que implicou em uma crise de paradigmas na história e na ciência.

A segunda fase é o processamento constituinte. O mesmo surge a partir de uma “decisão política fundamental” que segundo Schmitt, é direcionada para a criação de uma nova Constituição que em sentido positivo pressupõe um ato do poder constituinte, o qual existe pela decisão de um povo em construir um sistema de direito (SCHMITT, 2008, p. 45). Dessa forma, inclinamo-nos para a afirmação de que o processamento constituinte seja limitado. Nas palavras de Hugo Gusmão “todo processamento constituinte autêntico pressupõe um momento constituinte, mas nem todo momento constituinte conduz, necessariamente, a um processamento constituinte” (informação verbal)[3]. Inúmero são os exemplos históricos que desencadearam ou não em um processamento constituinte.

Um exemplo da não ocorrência do processamento é a Primavera Árabe, ocorrida na Tunísia em virtude do descontentamento da população com o regime ditatorial (o estopim foi o caso do jovem Mohamed Bouazizi), contudo o mesmo instrumento normativo, criado em 1959, continuou em vigor; só veio a ser realizada uma Constituição, com ideais democráticos, em janeiro de 2014 devido às inúmeras revoltas. Exemplo da ocorrência do processamento constituinte é o evento que mudou o mundo, a Revolução Francesa. A ruptura eclodiu em 1789 com a crise do Antigo Regime. Desse modo, a burguesia, inspirada pelos ideais iluministas, passou a contestar os privilégios ao clero e à nobreza. Em 1791 foi elaborada a Carta Magna Francesa, tendo como preâmbulo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, esta após a Tomada da Bastilha.

3. Limitações que circundam o Poder Constituinte Originário

Notório é que perquirição causadora de querelas doutrinárias se refere à ilimitação ou não do Poder Constituinte Originário. Na tentativa de responder à inquirição supracitada, não nos restringiremos a uma postura meramente positivista ou jusnaturalista. Partiremos, diversamente, do pressuposto de que o Poder Constituinte Originário possui limites “de facto” e “de iure”, consoante afirmou Paul Bastid em curso de pós-graduação na Faculdade de Direito de Paris entre 1958 e 1959. Ressalta-se ainda que tais limitações circundam o Poder Constituinte apenas na fase de seu processamento.

3.1 Limitações fáticas e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos

Conforme dito anteriormente, existem limites “de facto” e “de iure” ao Poder Constituinte Originário, que o circundam no momento de seu processamento. Sobre os limites de fato, leciona Manoel Gonçalves Ferreira Filho que “quem estabelece uma Constituição não pode chocar-se frontalmente com as concepções mais arraigadas -a cosmovisão- da comunidade” (1999, p. 76). Ainda afirma o autor que “do contrário não obterá [o Poder Constituinte] a adesão dessa comunidade para as novas instituições, que permaneceriam letra morta, serão ineficazes.” (1999, p. 76), assim como ocorreu com a Constituição francesa de 1793, uma vez que “um acto constituinte não é um estampido isolado no tempo”. O novo instrumento constitucional não poderá prescindir daquilo que Burdeau chama de “ideia de direito”, ou seja, a concepção da sociedade sobre o que é justo. Só assim a obra revolucionária será legítima e, consequentemente, terá eficácia.

Ferdinand Lassalle também estabelecia limites ao Poder Constituinte ao fazer uma distinção entre constituição real e constituição jurídica. Esta era mero pedaço de papel e estava limitada pela constituição real – fruto dos fatores reais de poder que imperam na sociedade (O que é uma Constituição?, 1933). Carl Schmitt também estabelece limites ao Poder Constituinte ao assinalar que a elaboração de uma Constituição importa sempre numa decisão sobre o modo e a forma da unidade política (O conceito do político, 2008); ou, “se quiserem numa colocação menos precisa, sobre o modo de ser da comunidade” (FERREIRA FILHO, 1999, p.48). Konrad Hesse, afirma que a Constituição deve atender às necessidades da comunidade, para ele, um dos pressupostos de eficácia da Constituição seria a sua correspondente à natureza singular do presente (A força normativa da Constituição, 1991).

Conforme dito, o Poder Constituinte também tem limites de direito. Tal concepção se funda na constatação que constitucionalismo é um movimento cultural e político que pretende racionalizar o exercício do poder político e garantir os direitos fundamentais, e como se sabe, toda Constituição pressupõe o exercício de um Poder Constituinte, que a cria. Sendo assim, em decorrência lógica de como conceituamos Constituição, o fato de existir um ato dentro de uma sociedade estabelecendo os fundamentos de sua organização não significa, necessariamente, afirmar a existência do fenômeno constituinte. Os documentos anteriores, ainda que estabeleçam a organização de uma sociedade, não poderiam, a rigor, ser chamados de Constituição, uma vez que não continham os pressupostos citados anteriormente.

Assevera Antonio Negri que o Poder Constituinte e a democracia são conceitos correspondentes, que estão inseridos em um processo histórico, identificando-se cada vez mais. Afirma o autor que “[…] o poder constituinte tende a se identificar com o próprio conceito de política, no sentido com que este é compreendido numa sociedade democrática” (2002, p. 7) E ainda apregoa Negri que “[…] qualificar constitucional e juridicamente o poder constituinte não será simplesmente produzir normas constitucionais e estruturar poderes constituídos, mas sobretudo ordenar o poder constituinte enquanto sujeito, regular a política democrática”(2002, p. 7). A democracia tem princípios que protegem a liberdade humana e, baseia-se no governo da maioria, associado aos direitos individuais das minorias. Se Poder Constituinte e democracia são considerados conceitos correspondentes, o poder constituinte para ser assim considerado deverá estar em consonância com os direitos fundamentais. Onde houver Estado Democrático de Direito, não haverá divergência entre direitos humanos de validade mundial e soberania do Estado.

Reconhecemos que há dissenso doutrinário acerca da teoria da limitação do Poder Constituinte Originário. Contudo não há como negar que hodiernamente, devido à integração econômico-social dos países em blocos continentais, “[…] A uniformização do Direito interno pelo Direito Internacional será um exigência para que possa haver coexistência harmônica da nação no grupo a que pretenda aderir”, de acordo com Fernando Falcão (2014, p.2). Sendo assim, a nação que descumprir as normas internacionais de direitos humanos, seja porque não previu em seu texto constitucional a garantia aos direitos humanos, quer porque, tendo garantido-os, não lhes dá efetividade ou respeito, “além de ter seu ingresso no bloco internacional vetado pelos demais países, ainda deverá suportar as dificuldades várias que o isolamento econômico lhe trará”, ressalta Falcão (2014, p.2).

Conclusão

Em razão das breves considerações trazidas à baila, entendemos que a argumentação que se funda na sempre proeminência da soberania estatal em relação ao direito internacional, inclusive em relação às normas internacionais de direitos humanos, estaria prejudicando sobremaneira os princípios democráticos. Sabe-se que os princípios democráticos sempre devem guiar a conduta estatal, condição para que um Estado seja efetivamente Democrático de Direito e, por conseguinte, tenha legitimidade. Um poder que se intitule criador de uma nova ordem jurídica não poderá se afastar dos direitos humanos, sob pena de sua obra ser considerada qualquer outra coisa menos uma Constituição (repita-se: constituição pressupõe garantia de direitos fundamentais).

Entendemos, portanto, que o Poder Constituinte originário deve ser visto como ilimitado e incondicionado somente no momento da ruptura constitucional. Quando do processamento constituinte, não estaria legitimado a ir de encontro à “ideia de direito” da sociedade, muito menos poderia violar regras mínimas de convivência com outros Estados soberanos, estabelecidas no Direito Internacional. O Direito Internacional funcionaria, pois, como uma limitação ao Poder Constituinte originário, visto que seria juridicamente inaceitável, contemporaneamente, a elaboração de uma Constituição que contivesse normas frontalmente contrárias às regras internacionais de proteção aos direitos da pessoa humana.

Referências

FALCÃO, Fernando Antônio Jambo Muniz. Limites do poder constituinte originário. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3876, 10 fev. 2014. Disponível em:. Acesso em: 29 out. 2014.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 25. Ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

GUSMÃO, Hugo César A. De. Reforma constitucional e integración europea. Granada, España. Tesis Doctoral. Universidad de Granada, 2008, 480 p.

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: safE, 1991.

LASSALLE, Ferdinand. Que é uma Constituição? Tradução: Walter Stönner. Edições e Publicações Brasil, São Paulo, 1933.

NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

SCHMITT, Carl. O Conceito do Político / Teoria do Partisan. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. (Org. Aurélio Wander Bastos). 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

[1] Estudante de Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB.

[2] Estudante de Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB.

[3] Aula ministrada pelo Professor Dr. Hugo César Araújo de Gusmão na Universidade Estadual da Paraíba no componente curricular Teoria da Constituição.