Publicado por Dirley da Cunha Júnior em JusBrasil
Respondemos: claro que sim!
A eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais programáticas sempre foi palco de disputas doutrinárias, representando o maior desafio do Direito Constitucional contemporâneo. Na Itália, por exemplo, autores do quilate de Gaetano Azzariti sustentaram que as normas programáticas se limitam a indicar uma via ao legislador futuro, não sendo nem mesmo verdadeiras normas jurídicas, negando-lhes qualquer eficácia. Para essa doutrina tradicional, a falta de juridicidade das normas programáticas obsta o cidadão em invocá-las junto aos tribunais para pedir o seu cumprimento, ainda que contemplassem direitos sociais.
Com efeito, o caráter aberto e diretivo dessas normas sempre suscitou nos autores severas dúvidas acerca de sua juridicidade. Entretanto, partindo do postulado de que a Constituição define o plano normativo global para o Estado e para a Sociedade, vinculando tanto o Estado como os cidadãos, dúvidas não podem mais subsistir quanto à natureza jurídica das normas programáticas. Se a Constituição é, toda ela, norma jurídica, todos os direitos nela contemplados têm aplicabilidade direta, vinculando tanto o Judiciário, quanto o Executivo e o Legislativo.
Assim, as normas programáticas, sobretudo as atributivas de direitos sociais, devem ser entendidas como verdadeiras normas jurídicas, diretamente aplicáveis e imediatamente vinculantes de todos os órgãos do Poder. Reforça esta tese o § 1º do art. 5º da Constituição brasileira de 1988, segundo o qual as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. A Constituição brasileira define um modelo econômico de bem-estar. Esse modelo – afirma Eros Roberto Grau
“desenhado desde o disposto nos seus arts. 1º e 3º, até o quanto enunciado no seu art. 170, não pode ser ignorado pelo Poder Executivo, cuja vinculação pelas definições constitucionais de caráter conformador e impositivo é óbvia” (A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 35-36).
No plano científico, não pairam mais dúvidas nem subsistem mais questionamentos a respeito do caráter jurídico e, consequentemente, vinculante das normas constitucionais programáticas. O só fato de estas normas contemplarem direitos sociais dependentes de prestações positivas do Poder Executivo ou de providências normativas do Poder Legislativo, não lhes retira a eficácia jurídica. Para essa direção apontam as lições de Vezio Crisafulli quando sustenta o grande mestre italiano que das normas programáticas surgem situações subjetivas, que devem ser examinadas em um duplo aspecto: situações negativas ou de vínculo e situações positivas ou de vantagens.
Particularmente pela situação de vínculo, reconhecemos que das normas programáticas deriva um vínculo para o legislador que, por terem tais normas uma fonte superior (a Constituição), é de natureza obrigatória, de modo que a não observância dessas normas programáticas acarreta a invalidação total ou parcial do ato de exercício do poder. Ainda segundo Crisafulli, até as omissões ante a efetivação das normas programáticas gera a inconstitucionalidade do silêncio dos órgãos estatais.
Do exposto, compartilhamos o que sustenta Gomes Canotilho quando afirma que, quando se destaca o valor preceptivo das normas programáticas como normas vinculativas de todos os poderes públicos, pretende-se salientar, entre outras coisas, que os tribunais estão obrigados a aplicar e a concretizar essas normas, não obstante a sua eventual ‘abertura’ ou ‘indeterminabilidade’. Até porque, ainda consoante orientação do mestre de Coimbra, o modelo de democracia social e econômica expressa uma imposição obrigatória dirigida aos órgãos de direção política, no sentido de desenvolverem uma atividade econômica e social conformadora, transformadora e planificadora das estruturas socioeconômicas. No seu cerne essencial, o princípio da democracia social, econômica e cultural é um mandato constitucional juridicamente vinculativo que limita a discricionariedade legislativa quanto ao “se” da atuação.
Em face dessa nítida eficácia jurídica das normas constitucionais programáticas, que as transforma em permanentes fontes geradoras de verdadeiros “direitos subjetivos” para os cidadãos, Canotilho chega a anunciar a “morte” das normas constitucionais programáticas. Segundo o autor, existem, sem dúvidas, normas-fim, normas-tarefa, normas-programa que impõem uma atividade e dirigem materialmente a concretização constitucional. Contudo, afirma que o sentido destas normas não é o sublinhado pela doutrina tradicional como ‘simples programas’, exortações morais’, ‘declarações’, ‘sentenças políticas’, ‘aforismos políticos’, ‘promessas’, ‘apelos ao legislador’, ‘programas futuros’, juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade. Às ‘normas programáticas’ é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes ¬preceitos da constituição. E conclui:
“Concretizando melhor, a positividade jurídico-constitucional das normas programáticas significa fundamentalmente: (1) vinculação do legislador, de forma permanente, à sua realização (imposição constitucional); (2) vinculação positiva de todos os órgãos concretizadores, devendo estes tomá-las em consideração como directivas materiais permanentes, em qualquer dos momentos da actividade concretizadora (legislação, execução, jurisdição); (3) vinculação, na qualidade de limites mate¬riais negativos, dos poderes públicos, justificando a eventual censura, sob a forma de inconstitucionalidade, em relação aos actos que as contrariam” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1102-1103).
Assim, considerar essas normas como meras proclamações de cunho ideológico ou político é negar a existência delas como categoriais normativas. Em decorrência disso, é possível sustentar-se que, na hipótese de omissão dos órgãos de direção política (Legislativo e Executivo), na realização das tarefas sociais, notadamente quando deflagradoras de direitos sociais, deva ocorrer um sensível deslocamento do centro de decisões destes órgãos para o plano da jurisdição constitucional. Isto porque, se com o advento do Estado social e o papel fortemente intervencionista do Estado, o foco de poder/tensão passou para o Executivo, no Estado Democrático de Direito há (ou deveria haver) uma modificação desse perfil.
Inércia do Poder Executivo e a falta de atuação do Poder Legislativo podem ser perfeitamente supridas pela atuação do Poder Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos para esse fim, na própria Constituição (como, v. G., o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão) que instituiu e organizou o Estado Democrático de Direito.
Ora, como acentua Robert Alexy, com base na Constituição alemã, “vinculación jurídica implica control judicial” (Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 500), de tal sorte que, de modo algum a justiça constitucional é impotente frente a um legislador inoperante. É irrecusável, pois, a eficácia jurídica das normas constitucionais programáticas.
Desse modo, podemos concluir que o único problema da eficácia das normas constitucionais, notadamente das normas constitucionais programáticas, reside no tipo de jurisdição constitucional praticado em cada país. Uma jurisdição constitucional desassombrada, emancipatória e progressista, voltada a aproximar a norma da realidade, certamente contribuirá – e isso é decisivo! – para a eficácia e efetivação dessas normas constitucionais. O Judiciário, portanto, assume um papel absolutamente fundamental em um Estado que se afirma Democrático de Direito, exatamente pelo incontestável dado de que “o progresso da democracia mede-se precisamente pela expansão dos direitos e pela sua afirmação em juízo”.
Obrigado pela atenção e fiquem com Deus.