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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

“Vai de decote que é causa ganha”

Publicado por Camila Arantes Sardinha em JusBrasil

Uma coisa que já há algum tempo vinha pensando em escrever era sobre o preconceito contra a mulher advogada, sobretudo se for jovem. Pior ainda se for bonita! Entretanto, não sabia bem ao certo como escrever, ou por onde começar, então acabei "enrolando".

Todavia, com o advento do Dia Internacional da Mulher, no último domingo, dia 08 de março, retomei essa ideia, e então comecei a rascunhar este texto. Semana passada, por sinal, aconteceu algo bastante curioso, que me lembrou o motivo de eu querer abordar esse tema.

Mulheres de decote

Na sexta-feira, dia 06 de março, recebi um telefonema de um representante da Rádio Band News de Porto Alegre, interessado em fazer uma entrevista sobre um dos textos que escrevi sobre Descriminalização do Aborto. A ideia era falar sobre a saúde e os direitos da mulher nas vésperas do dia 08 de março. Aceitei de bom grado a entrevista, e no mesmo dia foi ao ar, por volta das 12h20.

Após esse evento, recebi uma série de emails, recados no Whatsapp, SMS, etc… A maioria de conhecidos parabenizando pela entrevista. Entretanto, recebi alguns emails curiosos. Um deles, de uma pessoa desconhecida, parabenizava pela entrevista, agradecia à contribuição para o debate sobre a legalização do aborto, e dizia "perdão pela pergunta, mas quantos anos a Dra tem? É que tens voz de menina." Um outro email dizia "Mas a senhora é advogada com OAB e tudo?", após ver uma foto minha no meu blog.

Seriam somente comentários engraçados, se não tivessem um impacto na minha vida profissional.

Eu decidi que faria Direito quando estava no segundo ano do Ensino Médio, aos 16 anos. Desde que resolvi qual curso faria (e sabia que não seria tão fácil entrar em uma boa Universidade), passei a estudar muito. Meu pai me foi claro que eu só poderia prestar vestibulares de Universidades Públicas, pois "já paguei as melhores escolas para você a vida toda, o mínimo que você pode fazer é passar em uma faculdade pública". Depois dessa, uma Universidade privada não era uma opção, definitivamente. Aos 17 anos, fui aprovada no vestibular da VUNESP, e fiz minha matrícula na UNESP, Câmpus de Franca, em fevereiro de 2007.

Em julho de 2011, terminando o meu nono semestre, prestei o Exame de Ordem, e fui aprovada de primeira. Aos 22 anos, terminei minha graduação, com a carteira da OAB em mãos, e pronta para começar a trabalhar.

Como nunca fui muito dada aos concursos públicos, e sempre tive uma paixão pela advocacia, sobretudo desde que estagiei em um escritório de advocacia em Franca, eu já sabia que me dedicar exclusivamente aos estudos não seria uma opção viável para mim. Eu queria independência financeira, emocional e psicológica. E queria ser advogada! E desde os 22 (e agora com 25) luto por isso.

Dentre cursos, audiências, atendimentos e alguns tropeços, fui aprendendo a prática da advocacia, e certamente ainda estou longe de aprender tudo. Aliás, sempre fui adepta do conceito de quanto mais se aprende, mais se tem a aprender. Obviamente cometo erros, equívocos, e nem sempre tenho o desempenho favorável que gostaria de ter. Mas me considero uma boa advogada. Sou dedicada, estudiosa, preocupo-me em atender bem aos clientes, em sanar dúvidas, em ser acessível. Nunca precisei de um advogado, mas imagino como gostaria de ser tratada caso precisasse (e caso fosse leiga no assunto), tal qual como gosto quando um médico, por exemplo, explica-me o que está acontecendo com a minha saúde, de forma que eu consiga entender.

Apesar disso, já me deparei com situações nas quais perdi um cliente (ou mais) para outros advogados por uma razão um tanto quanto estranha: eles eram homens, e eu, mulher. Parece bastante estranho quando dito dessa forma, mas é verdade. Por exemplo, certa vez atendi uma senhora de cerca de 60 anos, e após mais de 1h conversando e sanando todas as dúvidas que ela tinha, a ouvi dizer que agradecia o "favor", mas que procuraria "um advogado de verdade". Ora, mas eu sou uma advogada de verdade! Não é "de mentirinha". E então ela me respondeu "é que prefiro alguém com mais experiência, doutora". Depois soube que ela acabou por contratar um senhor com menos experiência profissional que eu, mas é homem e mais velho, e passa uma imagem de maior confiança.

Isso sem contar as inúmeras vezes em que atendi a algum assistido da Defensoria Pública pelo convênio OAB/DPE e ouvi coisas como "a senhora é estagiária?", "mas não tem um advogado para me atender?", "mas a senhora é mesmo advogada? Com OAB e tudo?" , "mas a doutora tem uma carinha de criança".

Quando comecei a advogar, eu já sabia que enfrentaria esse tipo de problema, e por isso mesmo meu pai me aconselhou, desde o início, a sempre trabalhar com a roupa mais formal possível, muita maquiagem, e salto alto. É um jeito de impor um mínimo de respeito. Mas aí acabou por me gerar outro problema: "A senhora devia ser modelo, e não advogada".

E se eu disser que já fui modelo? Já fui capa de editorial de moda. E isso em momento algum me impediu de ser advogada!

Fora as brincadeirinhas constantes sobre ter ganho uma ou outra causa em razão do decote, ou da saia. E ouvir frequentemente frases como "Vai despachar com o juiz? Não esquece de vir de decote" ou "Vem de vestido que é causa ganha".

Fato é que por mais que eu estude, por mais preparada que esteja para atender a algum caso, por mais que eu me preocupe em explicar ao cliente os detalhes do processo, sanar dúvidas, etc… Minha credibilidade sempre fica a desejar, ao menos em um primeiro momento. Obviamente tenho clientes que confiam muito em mim, mas essa confiança vem aos poucos. No quesito primeira impressão, meus Nobres Colegas do sexo masculino costumam ficar a frente.

Conversando com uma amiga, também advogada, ouvi outra história interessante de se comentar aqui. Ela também é conveniada da Defensoria Pública e atendeu uma senhora pelo convênio, mãe e um réu criminal. A primeira reação da senhora, antes mesmo de conversar sobre o problema jurídico que estava tendo, foi dizer que voltaria à Defensoria para pedir outro advogado, pois queria um "advogaDO, e não uma menina".

Para ajudar, tanto eu quanto essa minha amiga somos criminalistas, bem como a outra idealizadora deste blog, Dra Aline. E na área Criminal o preconceito contra as mulheres é infinitamente maior.

Lembro-me perfeitamente do dia em que "pedi as contas" do meu estágio em um escritório de advocacia em Franca. Meu chefe me perguntou qual área eu pretendia seguir depois de formada, e eu disse "Criminal, lógico, doutor. Posso até fazer outras áreas, mas Criminal sempre!". E ele me disse que não me aconselhava a seguir essa área, porque "não há espaço para mulheres jovens e bonitas nesse ramo, minha querida".

Nós, mulheres advogadas, sofremos preconceito na nossa profissão de todos os lados: de clientes, de outros advogados, de juízes, de promotores. E quando se fala em mulheres bonitas, mais ainda! Pode parecer meio ultrapassado, mas a verdade é que ainda existe um certo preconceito sobre a "mulher bonita e burra". Mulher bonita deveria ser modelo, deveria se preocupar em postar "self" no Facebook e no Instagram, deveria se preocupar com a cor do batom, o tamanho do salto, se a bolsa combina com o sapato e o que vai acontecer na novela das 8. Mulher bonita não se preocupa com audiência, atendimento a clientes, Resposta à Acusação, Memoriais, Agravo de Instrumento, Agravo Regimental, Apelação, Sustentação Oral… E Cálculos, obviamente, mulheres bonitas não sabem fazer.

Mulher bonita tem função de alegoria, de prêmio, de troféu para ser exibido para os amigos. Mas ninguém quer saber o que uma mulher bonita pensa (se é que pensa). E se consegue alguma coisa na profissão não é por ser inteligente, competente, esforçada ou dedicada. É porque é bonita e passou no "teste do sofá".

É triste, mas esse ainda é um preconceito muito comum. Muitas vezes precisamos nos esforçar ao máximo para conseguir passar a mesma credibilidade e confiança que um colega do sexo masculino passaria sem tanto esforço, simplesmente por ser homem. Obviamente não há que se falar em competência maior ou menor de homens ou mulheres. Como já disse, me considero uma boa advogada, assim como conheço muitos amigos e amigas colegas de profissão que são excelentes profissionais, independente de gênero.

O mesmo vale para outras profissões. Temos, (graças a Deus) muitas mulheres médicas, engenheiras, arquitetas, dentistas, juízas, promotoras! O mundo é cheio de mulheres bonitas, inteligentes e competentes. Porque, sim, beleza e inteligência podem andar juntas! E andam!

Creio que em algumas profissões, e sobretudo em algumas áreas, essas questões de gênero sejam um pouco mais acirradas que em outras. Mas, infelizmente, ainda acontece.

Fica aqui registrado meus parabéns (com um pequeno atraso) a todas as Mulheres que todos os dias enfrentam esses infelizes preconceitos, mas que não desistem da luta para conquistar o seu lugar e demonstrar o seu valor. E, por que não, parabenizo também aos Homens que contribuem para a valorização da mulher no trabalho e não praticam esse triste (e feio!) fenômeno de discriminação por gênero. Neste âmbito jurídico, somos todos colegas de profissão, e certamente temos muito a aprender uns com os outros.

Este artigo foi originalmente publicado no blog Diário da Vida Jurídica, postado por Dra Camila Sardinha. A reprodução parcial ou integral deste é autorizada somente mediante a atribuição dos créditos de sua fonte original.