Por Sergio Tamer*
“Reconhecer o direito dos índios às terras que tradicionalmente ocupam, conforme determina a Constituição, protegendo e fazendo respeitar todos os seus bens, é um imperativo não apenas de ordem legal e jurídica, mas uma atitude de elevado padrão moral e civilizador.”
“A demarcação, portanto, tem que ser ‘contínua’, e não em ‘ilhas’, pois nesta modalidade os índios seriam inevitavelmente expulsos de suas terras.”
A demarcação da área indígena Raposa Serra do Sol, com 1 milhão e 700 mil hectares, homologada pelo Presidente Lula em 2005, está pendente de decisão judicial e aguarda o desfecho do julgamento no Supremo Tribunal Federal, o qual fora novamente suspenso, desta vez em face do pedido de vista formulado pelo Ministro Marco Aurélio. Os arrozeiros que estão dentro da reserva indígena dos makuxis, uapixanas, ingaricós, taurepangues e patamonas – e as mais diversas facções políticas do Estado de Roraima querem a demarcação das terras em “ilhas” e não em forma contínua, como pretende o Governo Federal. Um dos argumentos contrários à demarcação “contínua” tem um fundo patriótico: a soberania nacional corre riscos por se tratar de extensa área de fronteira. O outro, é de matiz econômica: o Estado de Roraima perderia produção, sobretudo de arroz, carne e ouro, com a “diminuição” do seu território”. O voto demolidor do Ministro Carlos Ayres Brito, Relator do processo que contesta a homologação da reserva Raposa Serra do Sol, pôs abaixo, de forma magistral, ambos os argumentos. Destaque-se, por igual, os memoriais apresentados pelo Advogado-Geral da União, Ministro José Antônio Dias Toffolli, assim como sua arguta e competente sustentação oral no plenário do STE. De fato, é uma balela a questão da ameaça à nossa soberania pelo fato das terras, em região de fronteira, estarem sob a posse de várias etnias indígenas. O Exército e a Polícia Federal sempre atuaram em áreas com essas mesmas características, podendo ali construir instalações, manter suas atividades regulares, inerentes às respectivas funções e prerrogativas, controlar o ingresso de ONGs estrangeiras, enfim, atuar, fiscalizar, proteger e reprimir qualquer ato atentatório à segurança e à soberania do País. Em um encontro promovido pela ABI, no Rio de Janeiro, em defesa da Amazônia, logo após a declaração de um general preocupado com a demarcação da Raposa Serra do Sol, disse, na ocasião, que nós deveríamos nos preocupar muito mais com o “inimigo” interno do que com o externo. Aqueles que ateiam fogo na floresta, colocando em risco um fabuloso patrimônio socioambiental por meio de atividades econômicas altamente predatórias, dizimando, desta forma, uma exuberante e insubstituível biodiversidade, que poderia estar sendo explorada por meio de um novo modelo econômico, apropriado para a região – são, em realidade, os que mais ameaça nos trazem. O argumento econômico é outro disfarce. Se os arrozeiros já estavam lá antes da demarcação, deveriam agora sair mediante justa indenização, pois não podem alegar direitos adquiridos sobre reservas indígenas. Essas terras, em território brasileiro, pertencem à União e, por isso mesmo, são inalienáveis e indisponíveis, cabendo aos índios que tradicionalmente as ocupam a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes: é o que garante e dispõe a Constituição Federal (art. 231). Compete, assim, à União, demarca-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. |
Um dispositivo constitucional assim tão claro, dentro do qual se pautou com muito acerto o Governo Lula, tem sido motivo, paradoxalmente, para grande tensão jurídica e política, a ponto de o STF receber a visita de jornalistas dos principais órgãos da mídia internacional interessados no desfecho da questão, além, é claro, das partes diretamente envolvidas: grupos indígenas, arrozeiros e lideranças políticas do Estado de Roraima, dentre elas o próprio governador, autor da ação agora em julgamento, mas que já obteve, desde abril, uma liminar do próprio STF determinando a suspensão provisória do processo de homologação e, consequentemente, o sobrestamento da operação policial para a retirada dos arrozeiros e garimpeiros daquela área. É bom recordar que passamos vários anos, nos bancos escolares, ouvindo os professores de História maldizendo os colonizadores europeus pela maneira violenta e injusta como procederam em relação aos indígenas das Américas: Espoliaram suas terras! Malbarataram as riquezas! Massacraram importantes etnias! Extinguiram várias línguas! Sufocaram culturas extraordinárias! – Costumavam dizer. E agora, como estamos procedendo em relação ao que nos coube como herança deste processo de construção do Brasil? Como estamos tratando os aproximadamente 200 povos indígenas que restaram? Que cuidados culturais estamos tendo com cerca de 180 línguas indígenas que sobreviveram ao tempo? Estamos tendo uma conduta culturalmente diferenciada daqueles colonizadores tão duramente criticados? Contra quem estamos em conflito 500 anos depois do descobrimento das terras que iriam, mais tarde, dar origem ao Estado brasileiro? Reconhecer o direito dos índios às terras que tradicionalmente ocupam, conforme determina a Constituição, protegendo e fazendo respeitar todos os seus bens, é um imperativo não apenas de ordem legal e jurídica, mas uma atitude de elevado padrão moral e civilizador. A demarcação, portanto, tem que ser “contínua”, e não em “ilhas”, pois nesta modalidade os índios seriam inevitavelmente expulsos de suas terras. Atentar contra o meio ambiente dos povos indígenas, retirando o direito pleno às suas terras, significa destruir organizações sociais que antecederam à formação do Estado brasileiro e, um pouco mais além, representa a dizimação de etnias por um processo perverso de cerceamento aos seus bens culturais. A diversidade, nela incluída a cultura indígena, faz parte de nossa identidade como povo e nação. Expulsar os índios de suas terras, demarcando a reserva em “ilhas” e permitindo que outras atividades econômicas ali se instalem, empobreceria nossa cultura, mutilaria nossa identidade e nos diminuiria perante as nações mais desenvolvidas. ____________________________
*SERGIO VICTOR TAMER é Professor e advogado, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca. Foi Secretário de Direitos Humanos do Estado (2009-2010) e Secretário de Justiça e Administração Penitenciária (2011-2012). É autor de várias obras jurídicas e atualmente é diretor-presidente do Centro de Estudos Constitucionais e Gestão Pública do Maranhão – CECGP. |
Texto originalmente publicado em: REVISTA JURÍDICA CONSULEX – ANO XII – Nº 287 – 31 DE DEZEMBRO / 2008