Publicado por Raphael Craveiro em JusNavigandi
RESUMO: O instituto conhecido como “desaposentação” encontra-se no centro das discussões relativas aos direitos sociais no Brasil. Sua inclusão no ordenamento jurídico pátrio é, além de possível, provável e necessária. Porém, a forma como o instituto é entendido deve ser estudada com cautela. O direito ao recebimento mensal da aposentadoria é entendido pela jurisprudência como um direito de natureza patrimonial e, por essa natureza, o seu titular pode dispor do mesmo, tornando possível até mesmo que este seja renunciado. Porém, desaposentação é mais um direito social dentro do Regime Geral de Previdência Social e, portanto, possui status de direito fundamental em nosso ordenamento, necessitando do amparo estatal para que em seu exercício ele seja tratado como tal para cumprir com os objetivos elencados no artigo 3º da Constituição Federal de 1988.
Palavras-chave: Desaposentação; direito; patrimonial; disponível; fundamental; indisponível.
1 INTRODUÇÃO
Estima-se que no Brasil tramitam mais de 120 mil ações de desaposentação dentro dos Tribunais Regionais Federais, sendo que, somente entre os meses de Janeiro e Agosto do ano de 2014, 34.284 ações foram ajuizadas.[1]
A Desaposentação recentemente despertou enorme curiosidade e atenção do mundo jurídico, quando o Supremo Tribunal Federal, por meio de seu relator o Ministro Luís Roberto Barroso, reconheceu a existência de repercussão geral do tema ao julgar o Recurso Extraordinário número 661256. A posição jurisprudencial dominante defende a possibilidade jurídica e fática do instituto, sendo que, após o julgamento da questão repetitiva acima citada, será uniformizado o seu entendimento.
Atualmente é raro um manual de Direito Previdenciário que não aborde o tema e, particularmente, destaco as seguintes obras: “Desaposentação”, de Wladimir Novaes Martinez; “Desaposentação, novas perspectivas teóricas e práticas”, de Marco Aurélio Serau Júnior; e “Desaposentação, aspectos teóricos e práticos”, de Sérgio Henrique Salvador e Theodoro Vicente Agostinho. Além destes, destaco a significativa contribuição dos trabalhos: “Previdência Social na Era do Envelhecimento”, de Elody Boulhosa Nassar; e “Os Direitos Sociais como Direitos Fundamentais: contributo para um balanço aos vinte anos da Constituição Federal de 1988”, de Ingo Wolfgang Sarlet, fontes riquíssimas de saber e de conhecimento sobre o tema.
A desaposentação é entendida majoritariamente como sendo a possibilidade de o segurado aposentado que retorna ao trabalho renunciar à aposentadoria que recebia para que passe a receber outra aposentadoria, obrigatoriamente, mais vantajosa. Tal possibilidade é justificada pois tem-se entendido que as aposentadorias são direitos patrimoniais e, em consequência, disponíveis e, portanto, renunciáveis. Todavia classificar as aposentadorias como mero direito patrimonial é demasiado perigoso, pois torna este direito vulnerável a supressões desarrazoadas, sendo este o principal fato motivador da escolha do tema.
Isto posto, o presente trabalho irá trabalhar a Desaposentação, analisando a forma que esta é entendida em nosso ordenamento jurídico, o seu conceito, bem como demonstrar sua natureza, tratando sobre a possibilidade fático-jurídica de este ser positivado. Ademais, o presente trabalho busca estudar o tema levando-se em conta que os Direitos Sociais possuem status de direitos fundamentais em nosso ordenamento, observando as consequências de gozarem desse status, questionamentos e considerações que, certamente, contribuirão para enriquecer o debate sobre o tema.
No primeiro capítulo trataremos sobre a forma que é atualmente entendida a Desaposentação, bem como sua posição dentro do Regime Geral de Previdência Social. No capítulo seguinte será trabalhada a evolução do Sistema de Seguridade Social ocorrida no Brasil e no mundo. No terceiro capítulo serão estudados os princípios que regem a Previdência Social, seguida pelo capítulo que trabalhará sobre os Projetos de Lei que já foram trataram sobre o tema até hoje.
2 A DESAPOSENTAÇÃO DENTRO DO RGPS
O instituto técnico da Desaposentação despertou maior interesse dos profissionais do Direito Previdenciário no ano de 2014. Porém, desde o ano de 1996 a temática já era trabalhada pela doutrina e, desde então, inúmeras ações vêm sendo intentadas e, na maioria dos casos, deferidas pela via Judicial.[2]
O instituto começou a ser debatido pelo ilustre Professor Wladimir Novaes Martinez, sendo este quem utilizou pela primeira vez a expressão “desaposentação”. Martinez definia a desaposentação como o “ato de desconstituição de aposentadoria para obtenção de outro benefício mais vantajoso”[3]. Ainda, em sua obra “Subsídios para um modelo de previdência social”, ao tratar sobre a Irreversibilidade dos benefícios previdenciários, defende que, se for a vontade do titular, existe a possibilidade de desaposentação. Ademais, o mesmo autor demonstrou a possibilidade trazida pela Lei 6.903/81, a qual previa uma forma assemelhada do instituto objeto deste estudo quando analisados em conjunto os seus arts. 1º e 9º, in verbis:
Art. 1º – A aposentadoria do juiz temporário do Poder Judiciário da União, prevista no parágrafo único do artigo 74 da Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979, dar-se-á nos termos desta Lei.
Parágrafo único – O benefício de que trata este artigo é devido:
a) aos ministros classistas do Tribunal Superior do Trabalho;
b) aos juízes classistas dos Tribunais Regionais do Trabalho;
c) aos magistrados de que tratamos artigos 131, item II, e 133, item III, da Constituição Federal; aos juízes classistas que, como vogais, integram as Juntas de Conciliação e Julgamento.
Art. 9º – Ao inativo do Tesouro Nacional ou da Previdência Social que estiver no exercício do cargo de juiz temporário e fizer jus à aposentadoria nos termos desta Lei, é lícito optar pelo benefício que mais lhe convier, cancelando-se aquele excluído pela opção.[4]
Estes direitos foram concedidos, através do ato nº 119/94 do TRT da 23ª Região[5], para os Juízes Manoel Alves Coelho e Benedito Gomes Ferreira.
Conforme observa o Professor Marco Aurélio Serau Júnior, a atual Lei de Benefícios (8.213/91) traz em seu art. 122 uma forma de opção pelo benefício previdenciário mais vantajoso, nos seguintes termos:
Art. 122. Se mais vantajoso, fica assegurado o direito à aposentadoria, nas condições legalmente previstas na data do cumprimento de todos os requisitos necessários à obtenção do benefício, ao segurado que, tendo completado 35 anos de serviço, se homem, ou trinta anos, se mulher, optou por permanecer em atividade. [6]
Entende-se que o fato que despertou o interesse dos segurados pela desaposentação foi a extinção do direito ao pecúlio e o abono de permanência. Segundo Marco Aurélio Serau:
A corrida pela desaposentação encaixa-se, assim, numa tentativa de compensação pela extinção desses dois citados direitos previdenciários, uma forma oblíqua de revisão de benefício previdenciário[7]
Entretanto, nenhum dos exemplos citados acima abrange verdadeiramente a noção atual de desaposentação, vez que o instituto, como entendido hoje, é fruto de criação jurisprudencial e doutrinária, atuando estas como verdadeiras fontes do direito. Valiosa a lição de Theodoro Vicente Agostinho e Sérgio Henrique Salvador, que em sua obra defendem que:
A análise histórica evolutiva do instituto da Desaposentação revela sua total jovialidade no cenário vigente, onde a constante transformação dos institutos jurídicos encontra, em seu ineditismo singular, a demonstração clara de que certos valores prescindem de resguardo jurídico, sobretudo eficaz, como a Desaposentação, a qual que revela um verdadeiro instrumental de evolução de aprimoramentos sociais regulados[8]
A desaposentação deve ser entendida dentro do contexto da Previdência Social, organizada sob o modelo de Regime Geral, que é disciplinada na Constituição Federal em seu artigo 201, abaixo colacionado:
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:
I – cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada;
II – proteção à maternidade, especialmente à gestante;
III – proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário;
IV – salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda;
V – pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º.[9]
Para a proteção e efetivação dos diversos eventos cobertos pelo manto da previdência social, previsto em sua maioria no art. 201 da Constituição Federal supra, em 24 de julho de 1991, foi publicada a Lei 8.213, que dispunha sobre os “Planos de Benefícios da Previdência Social”. As espécies de benefícios, tratados na lei como prestações, são disciplinadas no Capítulo II da Lei de Benefícios, sendo elencadas em seu art. 18, in verbis:
Art.18. O Regime Geral de Previdência Social compreende as seguintes prestações, devidas inclusive em razão de eventos decorrentes de acidente do trabalho, expressas em benefícios e serviços:
I – quanto ao segurado:
a) aposentadoria por invalidez;
b) aposentadoria por idade;
c) aposentadoria por tempo de contribuição;
d) aposentadoria especial;
e) auxílio-doença;
f) salário-família;
g) salário-maternidade;
h) auxílio-acidente;
II – quanto ao dependente:
a) pensão por morte;
b) auxílio-reclusão;
III – quanto ao segurado e dependente:
a) pecúlios;
b) serviço social;
c) reabilitação profissional.[10]
Contudo, esse rol de benefícios não é taxativo e vêm sendo discutidas, especialmente pela doutrina e pela Jurisprudência, novas espécies de benefícios com destaque para a “desaposentação”. O caráter exemplificativo dos benefícios elencados na legislação fica claro ao analisarmos o caput do art. 7º da Carta Magna, que segue: “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social.”[11] (grifo do autor)
Inicialmente é importante observar uma definição ampla e genérica do instituto que a doutrina muito comumente utiliza: “a Desaposentação é fenômeno jurídico diverso da aposentação”.[12]
Uma parte da doutrina, como André Stuart Leitão, define o instituto como sendo “o desfazimento do ato concessório da aposentadoria, por vontade do beneficiário”[13] e , de fato, olhando para o termo “desaposentação”, essa é a definição lógica a ser utilizada. Ocorre que, como veremos mais a frente, o instituto em análise é muito mais complexo e possui outras fases.
Outra parte da doutrina, como Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari, entendem a Desaposentação como “o ato de desfazimento da aposentaria por vontade do titular, para fins de aproveitamento do tempo de filiação em contagem para nova aposentadoria”[14]. De maneira semelhante conceitua Fábio Ibrahim Zambite que “a desaposentação traduz-se na possibilidade de o segurado renunciar à aposentadoria com o propósito de obter benefício mais vantajoso”.
Theodoro Vicente Agostinho e Sérgio Henrique Salvador assim definem o instituto:
Desaposentar-se é refazer algo, ou seja, alterar uma situação jurídica existente e positivada para outra, de igual natureza, mas com outros desdobramentos e efeitos jurídicos futuros, valendo-se do tempo de fruição da pretérita aposentadoria.
Marco Aurélio Serau Junior entende a desaposentação como “uma espécie de revisão de benefício previdenciário, num sentido mais abrangente da expressão”[15].
Particularmente, defendo a desaposentação como uma majoração do direito subjetivo fundamental de recebimento de aposentadoria, por meio de mudança dos requisitos utilizados no cálculo do benefício a que fazem jus os segurados que, após adquirirem o status de aposentados, voltam a verter contribuições para a Seguridade Social. Dessa forma, a desaposentação deve ser exigível junto ao Estado no sentido de ampliar o rol de direitos fundamentais garantidos por este e de melhorar a cobertura destes aos cidadãos.
A doutrina e a jurisprudência majoritárias entendem que a desaposentação ocorre nas seguintes etapas: aposentação e retorno ao mercado de trabalho; renúncia ao benefício que recebe, deixando a condição de aposentado; nova contagem do tempo de serviço e das contribuições; e retorno à condição de aposentado e constituição de um novo benefício.
Conforme largamente discutido ao longo do presente trabalho, para que uma pessoa possa se desaposentar é lógica a conclusão que esta deve estar aposentada junto ao Regime Geral de Previdência Social. Como bem define o Professor Wladimir Martinez:
Para atribuir validade à proposta de desfazer a concessão, além de motivação real, é preciso que o titular esteja aposentado, só gozando dessa capacidade jurídica o legalmente autorizado a obter e a usufruir o benefício, legitima, legal e regularmente concedida a prestação[16]
Além de estar recebendo o benefício regularmente, para que possa postular o pedido de desaposentação é necessário que o segurado volte a verter contribuições junto ao INSS.
Neste sentido, os arts. 18, § 2º e 124, II da Lei 8.213, são dispositivos legais largamente invocados com o fito de obstar a possibilidade do instituto em estudo, os quais determinam que:
Art. 18. O Regime Geral de Previdência Social compreende as seguintes prestações, devidas inclusive em razão de eventos decorrentes de acidente do trabalho, expressas em benefícios e serviços:
§ 2º O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social-RGPS que permanecer em atividade sujeita a este Regime, ou a ele retornar, não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade, exceto ao salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado.
Art. 124. Salvo no caso de direito adquirido, não é permitido o recebimento conjunto dos seguintes benefícios da Previdência Social:
II- duas ou mais aposentadorias[17]
Tais dispositivos visam vedar a dupla aposentadoria do segurado que retorne ao trabalho. Porém, a desaposentação não visa o acúmulo de aposentadorias, mas tão somente a melhoria do benefício que recebe.
Valiosa a lição do ilustre professor Wladimir Martinez, largamente citado ao longo do presente trabalho, ao defender que:
Possivelmente o legislador quis com esse bis in idem reforçar a ideia da acumulação indevida, mas a desaposentação não é nada disso. Quando operada dentro do RGPS praticamente adota a natureza de uma revisão de cálculo da renda mensal mantida com o cômputo das contribuições vertidas após a aposentação[18]
Ademais, a defesa de que tal dispositivo infra legal poderia impossibilitar o direito à desaposentação não pode ser invocada levando-se em conta o dispositivo constitucional previsto no art. 201 § 9º da Carta Magna, que permite, amplamente, a contagem recíproca de tempo de contribuição na administração pública e na atividade privada, rural ou urbana, mediante compensação financeira entre os regimes previdenciários, o que já é pacificado. Segue o art. 201 § 9º da Constituição Federal compilado:
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:
§ 9º Para efeito de aposentadoria, é assegurada a contagem recíproca do tempo de contribuição na administração pública e na atividade privada, rural e urbana, hipótese em que os diversos regimes de previdência social se compensarão financeiramente, segundo critérios estabelecidos em lei. (Incluído dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)[19]
Ademais, a norma em discussão, Decreto 3.048/99, “haveria de ser interpretada de modo teleológico, isto é, de modo a beneficiar o segurado. Deveria funcionar como proteção a atos lesivos aos interesses do segurado, mas nunca como entrave à melhora de sua situação jurídica”[20]. Portanto, partindo do pressuposto de que a CF/1988 permite o aproveitamento do tempo de contribuição entre os diversos regimes previdenciários, é inaceitável que lei infraconstitucional ou até mesmo determinação infra legal possa restringir tal direito.
É importante ressaltarmos ainda algumas das características inerentes ao ato de desaposentar-se, quais sejam: a manifestação personalíssima de vontade do titular por meio da desistência formal deste, a natureza do benefício e a motivação específica do titular, no sentido de melhorar sua condição econômica. É necessário, ainda, que não haja prejuízo para nenhuma das partes envolvidas, conforme veremos adiante.
Ademais, saliento que a Desaposentação é ato de manifestação personalíssima de vontade. Por este motivo a demonstração de vontade do titular é condição obrigatória para que se possa falar em direito ao instituto em estudo. Neste sentido, valorosa a lição de Peterson de Souza, ao defender que “o pedido de desaposentação deverá necessariamente ser formulado pelo seu titular, de acordo com sua vontade e no momento que entender pertinente”. O ilustre doutrinador prossegue dizendo que “decorre daí que não pode a administração pública, sob qualquer argumento, promover a desaposentação do segurado sem que este tenha dado início ao procedimento”[21]. No mesmo sentido, o professor Wladimir Martinez entende que, por se tratar de direito subjetivo, em face da definitividade da prestação previdenciária, não há desaposentação de ofício, sendo pacificado pela doutrina e jurisprudência o entendimento de que a manifestação de vontade do titular é requisito para concessão da desaposentação.
A desaposentação, conforme largamente demonstrado, pressupõe a abdicação de um status quo anterior com vistas a obtenção de benefício e situação mais vantajosos. Ocorre que, conforme defende Wladimir Martinez:
No Direito Social, a desistência de direitos sempre foi concebida como instituto, cujos limites são o interesse público e a proteção à liberdade do indivíduo. (…) Na aposentação, constituindo-se numa garantia do indivíduo, não pode haver renúncia forçada. A desaposentação tem como pressuposto a renúncia do direito de receber as mensalidades de um benefício regularmente deferido anteriormente para a seja concedido benefício mais favorável posteriormente. Não carece desconstituir o direito anteriormente deferido[22]
A doutrina e a jurisprudência adotam largamente a noção de que o benefício da aposentadoria é um direito disponível, vez que estes têm natureza patrimonial. Esta noção é, inclusive, acatada no julgamento do Recurso Especial Repetitivo nº 1.334.488/SC no STJ, conforme trecho do julgado:
Reconhecida pela jurisprudência desta Corte a possibilidade de renúncia aos benefícios previdenciários, os quais são direitos patrimoniais disponíveis e, por isso, suscetíveis de desistência por seus titulares (REsp 1.334.488⁄SC, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, Primeira Seção, DJe 14⁄5⁄13), o segurado pode dispor de seu benefício, e, ao fazê-lo encerra a aposentadoria que percebia, não havendo falar em afronta aos arts.18, § 2º, da Lei 8.213⁄91[23]
É importante, ainda, que o pedido de desaposentação tenha a motivação específica de melhorar a sua condição financeira e, em consequência, a proteção social do titular. Valioso o entendimento de Wladimir Novaes, segundo o qual:
Moralmente, não se admite que um aposentado, querendo se prejudicar, receba menos, exceto, num raríssimo caso, se isso lhe trouxer alguma felicidade. Também é rejeitada a ideia de causar danos a terceiros ou instituições. A motivação será pessoalmente nobre e expressada quando do pedido[24]
O exercício do direito à desaposentação não pode causar prejuízo a terceiros e nem às instituições, conforme já mencionado acima. Desse entendimento analisado em conjunto com o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial surge a discussão se a devolução das mensalidades pagas pelo INSS a título de primeiro benefício é requisito para concessão da desaposentação. Ocorre que “em previdência social não existe vantagem ou privilégio, mas direito ou não em contrapartida às contribuições vertidas ou não”[25].
O princípio do equilíbrio atuarial e financeiro do Sistema de Seguridade Social, conforme demonstrado em momento posterior neste trabalho, foi inserido em nosso ordenamento pela EC nº 20/98 que alterou profundamente o caput do art. 201 da Carta Magna.
A devolução dos valores pagos a título de primeira aposentadoria é um dos pontos de maior controvérsia no estudo da desaposentação, destacando-se duas correntes neste debate: que nenhum valor deve ser devolvido; e que devem ser devolvidos todos os valores, retornando ao status quo ante.
Ao defender que todos os valores devem ser devolvidos, entendem os doutrinadores, como é o caso de Peterson de Souza, que a devolução é requisito essencial para o deferimento do pedido de Desaposentação, segundo o qual:
O efeito da Desaposentação deve ser ex tunc, ou seja, o ato de aposentação é desconstituído e as partes envolvidas retornam ao estado originário.
(…)
Para termos adequada proporção entre despesas e receitas necessariamente devemos não ter pagamentos até a DIB, o que se torna possível somente com a devolução de todos os valores recebidos em virtude da aposentadoria renunciada, devidamente corrigidos[26]
Esta corrente doutrinária encontra até argumentos que podem convencer aqueles que temem o colapso da seguridade, sendo por vezes acolhida em julgados. Todavia, deve ser levado em consideração a posição do Estado como garantidor dos direitos sociais e de defensor dos interesses dos indivíduos, além de que a devolução integral dos valores tornaria impraticável a Desaposentação, impedindo o aprimoramento do benefício e da proteção social dos indivíduos.
A corrente que entende que nenhum valor deve ser devolvido tem sido largamente acatada pela jurisprudência e pela doutrina. Entre os argumentos utilizados para tal, um dos mais comuns e lógicos é o de que o período de percepção do benefício em manutenção será compensado com a menor expectativa de vida do segurado[27].
Sobre a não devolução dos benefícios recebidos a título de primeira aposentadoria, o STJ já se posicionou em série de recursos repetitivos, unificando o entendimento de que:
A pessoa que se aposentou proporcionalmente e continuou trabalhando e contribuindo para a Previdência pode, mais tarde, desistir do benefício e pedir a aposentadoria integral, sem prejuízo do dinheiro que recebeu no período. Esse direito dos aposentados nunca foi aceito pelo INSS, que considera impossível a renúncia ao benefício e nega todos os pedidos na via administrativa[28]
Importa salientar que decisão tomada no rito dos recursos repetitivos, previsto no art. 543-C[29] do Código de Processo Civil, passa a orientar os cinco Tribunais Regionais Federais (TRFs) do país, na solução dos recursos que ficaram sobrestados à espera da posição do STJ. Com efeito, os recursos que sustentem posição contrária não mais serão admitidos para julgamento no Tribunal, e os tribunais de segunda instância que julgarem diversamente poderão se ajustar a esta posição do STJ.
Merece destaque a posição trazida por Theodoro Vicente Agostinho e Sergio Henrique Salvador:
A desaposentação deve ser entendida pela sua finalidade protetiva, inserida no plano especial de tutela estatal previdenciária, devendo contemplar os infortúnios da vida, decorrentes de eventos futuros e incertos, na busca de uma melhor proteção social do cidadão.
(…)
Como impingido, a problemática deve ser solvida à luz de uma análise principiológica, reveladora do protecionismo social a que a ordem jurídica elencou como primado[30]
Destacada também é a contribuição que Marco Aurélio Serau Júnior traz ao debate, quando em sua obra, defende que:
Um dos pontos fulcrais que refutam a necessidade de devolução dos valores da primeira aposentadoria concerne ao modelo previdenciário brasileiro, pautado pelo princípio da solidariedade. Diferentemente do que ocorre nos regimes de capitalização pura, esse postulado impede que se quantifique, exatamente, o quantum com que se contribuiu o segurado antes de aposentar-se e o quanto, concretamente, deveria ser devolvido. (…)
Não seria correto, tampouco justo, num sistema baseado na solidariedade social, que apenas o segurado aposentado devolvesse, na integralidade, os valores obtidos com a primeira aposentadoria.
(…)
Regimes previdenciários baseados na solidariedade possuem como objetivo não só a concessão de aposentadorias, em si consideradas, mas também objetivos político-sociais relevantes, tal qual a redistribuição de renda e a preservação do pacto Inter geracional.
(…)
Nessa linha de argumentos, devem-se afastar as razões meramente economicistas que tratam a desaposentação como simples ônus para o Estado, exigindo em contrapartida verdadeira contraprestação por parte do segurado, o que é um tanto diverso do regime previdenciário, conforme os princípios que o informam desde seus primórdios. A Previdência Social é eminentemente contributiva, mas, igualmente solidária, quer dizer, não obedece a uma lógica meramente matemática e atuarial; esta deve ser sopesada pelo critério eminentemente protetivo que inspirou sua criação[31]
Entretanto, conforme lecionou Wladimir Martinez:
A questão não tem nada a ver com a legitimidade, mas com o acerto de contas entre os planos, o raciocínio válido nessas condições não é jurídico, mas o pensamento jurídico, quando cabível, nasce do equilíbrio técnico[32]
O equilíbrio financeiro e atuarial deve ser um dos pilares de todo regime de previdência. Todavia, o desequilíbrio do sistema de proteção social brasileiro foi provocado, principalmente, pela atuação completamente equivocada da Administração Pública. Dessa forma, a impossibilidade de a desaposentação ser deferida deve ser comprovada claramente pela Administração, além de ter que demonstrar que atuou da melhor maneira possível ao gerir o Sistema de Seguridade Social brasileiro.
Diante da utopia da situação suscitada acima, bem como levando em conta o papel do Estado de garantidor das necessidades básicas dos cidadãos e da efetivação dos direitos fundamentais, sou adepto da corrente que entende que é desnecessária a devolução das prestações pagas a título de primeira aposentadoria.
Importante salientar que a Constituição Federal, seguindo o modelo de Estado Social, elevou os Direitos Sociais ao status de Direitos Fundamentais, ao incluí-los dentro do Título II “Direitos e Garantias Fundamentais” de seu texto, razão pela qual é errada a classificação das aposentadorias como direitos de natureza patrimonial disponíveis e, por isso, renunciáveis.
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