Publicado por Patrick Bezerra Mesquita em JusNavigandi
SUMÁRIO: Introdução. 1. Breve histórico do Ministério Público de Contas. 2. A ADI 789/DF e os precedentes do Supremo Tribunal Federal. 3. Independência funcional e autonomia financeira/administrativa: realidades indissociáveis (poderes implícitos). 4. A terminologia Ministério Público e o sistema ministerial constitucional. 5. Interpretação constitucional e a autonomia do Ministério Público de Contas. 5.1 O direito essencial do membro do Ministério Público de trabalhar numa instituição autônoma 6. Junto não é dentro. Até a interpretação gramatical corrobora a autonomia dos MPCs 7. O constituinte não vedou ao Ministério Público de Contas autonomia financeira e administrativa 8. A geografia constitucional a conspirar em favor da autonomia dos MPCs 9. Interpretação sistemática e teleológica do art. 130. 10. Método tópico-problemático e a solução para ofensas à independência funcional dos Procuradores de Contas 11. O federalismo como um laboratório de experiências legislativas: a questão dos Ministérios Públicos de Contas estaduais autônomos 12. Mutação constitucional, Convenção de Mérida e o reposicionamento do Ministério Público de Contas. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O Ministério Público de Contas é órgão centenário que, com o advento da Constituição Federal de 1988, passou a ter previsão expressa no seu art. 130, norma de extensão que fez por replicar aos membros desse Parquet com atuação especializada perante os Tribunais de Contas o mesmo regime jurídico dos membros do Ministério Público em geral.
A redação econômica e tímida do dispositivo causou – desde a promulgação constitucional – profundas polêmicas interpretativas que vieram a culminar, ainda no começo da década de 90, na propositura da ADI 789/DF, na qual se debateram principalmente três teses contrapostas.
A primeira, sustentada pelo autor da ação, o Procurador-Geral da República, arguia que os Ministérios Públicos de Contas não passavam de mera lotação e procuradoria especializada do Ministério Público regular, devendo ser composto por membros do MPF, no tocante ao ofício no TCU.
A segunda, defendida pela Subprocuradora-Geral Anadyr de Mendonça Rodrigues, que, na qualidade de custos legis, emitiu parecer pela total independência do Parquet de Contas em relação tanto ao Ministério Público Federal quanto ao Tribunal de Contas da União, sustentando, por conseguinte, sua autonomia financeira e administrativa como ancilares ao ofício ministerial.
E, finalmente, a terceira corrente, que se saiu vencedora, aduzia que, embora o Ministério Público atuante no Tribunal de Contas da União não fossem mera lotação especializada do Parquet Federal, estariam eles inseridos na “intimidade estrutural” da Corte de Contas na qual seus membros oficiassem. Uma espécie de apêndice do TCU, despido de gestão própria e autonomia financeira-administrativa, a despeito de serem garantidas aos seus membros independência funcional.
Passados mais de vinte anos do julgado, é esta a tese que ainda persiste no seio do Supremo Tribunal Federal.
Ocorre que o intervalo de duas décadas foram mais que suficientes para evidenciar que cindir as garantias subjetivas dos membros das garantias objetivas da instituição é, mais que um convite à disfuncionalidade do Ministério Público de Contas, uma verdadeira contradição insuperável. As garantias subjetivas só encontram abrigo e terreno para florescer se plantadas no solo fértil das garantias institucionais. São como duas faces da mesma moeda.
Ademais, estão na pauta do dia dos estudos jurídicos e dos anseios da sociedade soluções para o incremento do controle da administração pública, de modo a tributar efetividade no combate à corrupção. Nesse cenário, apresenta-se imperioso fortalecer o Ministério Público de Contas como ator que, por ocupar posição estratégica no cenário institucional brasileiro, tem muito a contribuir se atuar sem amarras ou limitações de ordens externas.
Avultam de importância, outrossim, considerações sobre uma viragem federalista na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que vem reconhecendo que o espaço de criação do direito reservado às unidades federativas são bem-vindos laboratórios de experiência legislativa exitosas a servirem de parâmetro para toda a federação.
Diante do exposto, este trabalho tem como objetivo demonstrar que, à luz da hermenêutica constitucional, não há outra conclusão melhor senão o imbricamento necessário entre independência funcional dos Procuradores de Contas e autonomia financeira e administrativa dos Ministério Públicos de Contas, urgindo que em mutação constitucional o Supremo Tribunal venha a reconhecer ou a autonomia expressa dos Ministérios Públicos de Contas ou, ao menos, a não vedação de que a prerrogativa federalista de auto-organização estadual/distrital venha a criar Ministérios Públicos de Contas locais autônomos.
Para tanto, traçar-se-á inicialmente um breve histórico da atuação ministerial perante os Tribunais de Contas, bem como analisar-se-á a repercussão da nova configuração constitucional dada pela Constituição ao Ministério Público brasileiro. Em seguida, serão analisadas as teses debatidas na ADI 789/DF e a evolução jurisprudencial sobre o tema, para daí desnudá-las diante dos principais métodos, elementos e princípios da hermenêutica constitucional.
1. BREVE HISTÓRICO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS
Embora a proposta de criação de um Tribunal de Contas para o controle da receita e das despesas públicas remonte ao primeiro Império brasileiro, haja vista o teor do art. 170 da Constituição de 1824[1], foi apenas com o advento da República que a ideia saiu do papel e ganhou vida através do Decreto nº 966-A, de 07 de novembro de 1890, cujo primeiro artigo assentava: “É instituído um Tribunal de Contas, ao qual incumbirá o exame, a revisão e o julgamento de todas as operações concernentes à receita e despeza da Republica”.
O nascedouro do Tribunal de Contas adveio dos ideais republicanos de Rui Barbosa, tendo o “Águia de Haia”[2] fincado, já na Exposição de Motivos da norma, que a funcionalidade dessa nova instituição dependeria de vultosas garantias institucionais.
Disse Rui Barbosa:
A medida que vem propor-vos é a criação de um Tribunal de Contas, corpo de magistratura intermediária à Administração e à Legislatura que, colocado em posição autônoma, com atribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição de ornato aparatoso e inútil.
A genialidade de Rui Barbosa já faria por prever que um Tribunal encarregado de analisar as contas das maiores autoridades brasileiras só seria verdadeiramente funcional – e não um mero ornato aparatoso e inútil – se colocado em posição autônoma e cercado de garantias contra quaisquer ameaças[3].
A constitucionalização dos Tribunais de Contas seguiu incontinenti na primeira Constituição republicana, a de 1891[4], que tatuou a instituição no histórico constitucional brasileiro.
Por sua vez, o Ministério Público de Contas surgiu com o Decreto nº 1.166, de 17 de dezembro de 1892, que expressamente previu que, dentre os membros do corpo deliberativo dos Tribunais de Contas, um deles atuaria como representante do Ministério Público.
Daí em diante, várias leis e outros atos normativos vieram a incrementar o perfil institucional do Ministério Público de Contas, seja para incluir requisitos na ocupação do cargo de procurador, seja para especificar as atribuições inerentes à função ou instituir a vedação à advocacia privada por seus procuradores.
Foi a Constituição de 1967[5] a primeira a fazer referência, ainda que de forma oblíqua e tímida, a um Ministério Público atuando nos Tribunais de Contas ao referenciar que a Corte de Contas poderia, de ofício ou mediante provocação do Ministério Público (ou das Auditorias Financeiras e Orçamentárias e demais órgãos auxiliares), tomar uma série de medidas caso verificasse a ilegalidade de qualquer despesa.
Justificável que em um ambiente ditatorial, como no qual se formou a Constituição de 1967, houvesse pouco espaço para uma instituição congenitamente de controle como o Ministério Público de Contas, aparentemente igualado naquela oportunidade a uma mera auditoria financeira e orçamentária, presente na intimidade do próprio do Tribunal de Contas.
Por sinal, o próprio Ministério Público comum também recebia tratamento equivalente, já que, longe de ser órgão com a independência financeira e administrativa atuais, estava alocado dentro do Poder Judiciário[6], e responsável, não pela defesa dos interesses da sociedade, mas da União Federal, no caso do Ministério Público da União.
A visão de que o Ministério Público compunha uma espécie de magistratura subalterna ou complementar era tão presente, que em alguns Estados, como o de São Paulo, o Decreto n. 5.179, de 27 de agosto de 1931, permitia que os Promotores Públicos da Capital concorressem com os juízes de direito para o preenchimento dos cargos de juízes de direitos das comarcas de 1ª, 2ª e 3ª entrâncias[7]. Em Pernambuco, por muito tempo o Conselho de Justiça fazia a correção também dos Promotores (art. 65 da Lei n. 2.567/1956). O Ministério Público era visto, assim, como um primo órfão que morava de favor na casa dos tios.
A Constituição de 1969{C}[8]{C}, por sua vez, alocou o Ministério Público comum dentro do Poder Executivo, com os caracteres de uma secretaria especial encarregada de negócios correlatos com a justiça, especialmente a representação em juízo da União (em papel hoje da Advocacia-Geral da União) e o ajuizamento de ações penais.
A rigor, tanto o Ministério Público de Contas quanto o Ministério Publico comum caminharam, antes de 1988, ao sabor das marés políticas de momento, igualando-se na carência de autonomia administrativa e financeira, embora já se reconhecesse aos seus membros independência funcional.
Órgão sem autonomia administrativa ali, órgão sem autonomia administrativa aqui, por que essa era a vontade da Constituição da época[9].
Então, adveio a Constituição de 1988 e tudo mudou (ou deveria ter mudado).
O Ministério Público brasileiro foi laureado com inédita autonomia administrativa e financeira, e os direitos e garantias de seus membros foram analiticamente expostos em equiparação aos dos magistrados, em seção própria dentro do capítulo IV referente às Funções Essenciais à Justiça, do Título IV da Organização dos Poderes.
Por sua vez, o art. 130{C}[10] constitucionalizou de vez o Ministério Público de Contas ao estatuir que aos seus membros estendem-se os direitos, as vedações e as formas de investidura que dizem respeito à Seção do Ministério Público com atuação junto ao Poder Judiciário.
Bem diferentemente de como era previsto na Constituição de 1967 – onde se ombreava a uma mera auditoria intestina do Tribunal de Contas –, o Ministério Público de Contas passou a ser previsto em dispositivo próprio, inserido não na Seção respeitante aos Tribunais de Contas, mas dentro da Seção própria do Ministério Público, em topografia constitucional que muito já indica de sua posição autônoma.
No entanto, o ineditismo do art. 130 da Constituição Federal logo suscitou dúvida. Seria o Ministério Público de Contas uma mera lotação dos membros do Ministério Público em geral? Uma fisionomia própria, com igual configuração jurídica do Ministério Público regular? Ou uma carreira de Procuradores que funcionariam num órgão apêndice dos Tribunais de Contas?
Enquanto no âmbito da União, a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, Lei Federal nº 8.443/92, em primeira reação a tais dúvidas, escolheu criar um Ministério Público rabilongo da estrutura do próprio Tribunal de Contas da União[11], despido de autonomia administrativa e financeira, outras unidades federativas, como o Estado do Pará, captando com sensibilidade a profunda alteração do perfil constitucional dado ao Ministério Público pela Constituição de 1988, editaram leis e regramentos constitucionais em que se passou a prever expressamente a independência administrativa e financeira do Parquet de Contas local[12].
A Lei Orgânica do TCU foi posta em xeque de constitucionalidade.
Estava proposta em 1992 a ADI 789/DF cujo estudo será feito a seguir.
2. A ADI 789/DF E OS PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Tão logo editada a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União (Lei 8.443/92), foi ela contestada pelo Procurador-Geral da República no ponto em que previa uma carreira ministerial própria a funcionar perante a Corte de Contas Federal.
Argumentou o Procurador-Geral da República que a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União invadiu esfera que não lhe dizia respeito, ao criar um Ministério Público Especial, denominado de “Ministério Público junto ao Tribunal de Contas”, e dispôs sobre o seu regime jurídico. Aduziu o Procurador-Geral da República que a Constituição não criou um Ministério Público próprio e distinto do geral a atuar perante os Tribunais de Contas, à míngua de não estar previsto no rol do art. 128 da Constituição Federal[13].
Assim, para o Procurador-Geral da República, as funções ministeriais haveriam de ser desempenhadas, no caso do Tribunal de Contas da União, pelos membros do Ministério Público Federal, e não por membros de um Ministério Público de Contas inserido na própria estrutura do Tribunal de Contas da União como previa a lei. A ação fulcrava-se especialmente no escólio doutrinário de Hugo Nigro Mazzilli:
O dispositivo do art. 130 será fonte perpétua de dúvidas, dispositivo de péssima técnica legislativa. Apenas para argumentar, se tivesse ele criado um novo Ministério Público, que não o da União nem o dos Estados, e que se destinasse a oficiar junto aos Tribunais e Conselhos de Contas, imperdoável erro técnico teria sido não estar incluído entre os diversos Ministérios Públicos de que trata o art.128; imperdoável, ainda, não tivesse cuidado a Constituição do processo legislativo para sua organização, da escolha de sua chefia, das suas autonomias, da definição de suas atribuições, pois o art. 130 só lhe torna aplicáveis as normas da Seção pertinentes a direitos, vedações e forma de investidura. Entretanto, se não criou novo Ministério Público, não deveria dizer que se aplicam as disposições da Seção pertinentes a direitos, vedações e forma de investidura, pois que todos os membros do Ministério Público, oficiando ou não junto aos Tribunais e Conselhos de Contas, já teriam evidentemente tais garantias…[14]
Na decisão que negou o pleito cautelar, o Ministro Celso de Mello teceu interessantes considerações sobre a recém-inaugurada fase constitucional do Ministério Público e sua nova institucionalização, dando ênfase à ampliação das garantias institucionais que o novo modelo constitucional trouxe:
Ao apreciar as implicações decorrentes da institucionalização do novo Ministério Público, pude acentuar, nesta Corte, que foram plenas de significação as conquistas institucionais obtidas pelo Parquet ao longo do processo constituinte de que resultou a promulgação da nova Constituição do Brasil. Com a reconstrução da ordem constitucional, emergiu o Ministério Público sob o signo da legitimidade democrática. Ampliaram-se-lhe as atribuições; dilatou-se-lhe a competência; reformulou-se-lhe a fisionomia institucional; conferiram-se-lhe os meios necessários à consecução de sua destinação constitucional, atendendo-se, finalmente, a antiga reivindicação da própria sociedade.
Mais à frente, o Ministro Celso de Mello, seguido por todos os seus pares, fez questão de frisar a ligação íntima entre as garantias institucionais deferidas ao Ministério Público e as garantias funcionais de seus membros, funcionando as primeiras como instrumento para as segundas:
Posto que o Ministério Público não constitui órgão ancilar do Governo, institui o legislador constituinte um sistema de garantias destinado tanto a proteger a instituição quanto a tutelar o membro que a integra. A atuação independente do membro do Parquet impõe-se como exigência de respeito aos direitos individuais e coletivos e delineia-se como fator de certeza quanto à efetiva submissão dos Poderes à lei e à ordem jurídica. É indisputável que o Ministério Público ostenta, em face do ordenamento constitucional vigente, posição especial na estrutura do Poder (grifo nosso).
Nessa oportunidade, concluiu o Ministro Celso de Mello que “a independência institucional constitui uma das mais expressivas prerrogativas político-jurídicas do Parquet. Garante-lhe o livro desempenho, em toda a sua plenitude e extensão, das atribuições que lhe foram conferidas” (grifo nosso)
Vê-se que fincou o STF, na decisão da cautelar, o laço umbilical entre garantias institucionais e garantias funcionais do Ministério Público. Em Português simples, o STF atestou com todas as letras: sem independência institucional não se garante ao membro do Ministério Público toda a plenitude no desempenho de suas nobres funções.
A liminar restou negada à míngua de periculum in mora.
Negada a liminar em 1992, dois anos depois a ADI foi levada a julgamento definitivo.
O parecer da Procuradoria-Geral da República, funcionando na qualidade de custos legis, foi da lavra da Subprocuradora-Geral Anadyr de Mendonça Rodrigues, que trouxe novas luzes ao debate, ao defender ostensivamente não só a autonomia institucional do Ministério Público de Contas em relação ao Ministério Público Federal, como também a sua autonomia institucional referente ao próprio Tribunal de Contas da União, garantindo-lhe autonomia financeira e administrativa.
Assentou a Subprocuradora-Geral no bojo da ADI 789/DF que, no tocante aos membros do Ministério Público de Contas, “se compusessem o quadro do próprio Ministério Público comum, não seria necessário prescrevesse o art. 130 CF, ao fim das disposições alusivas à instituição, que “aos membros do Ministério Público junto aos Tribunais de Contas aplicam-se as disposições desta seção pertinentes a direitos, vedações e forma de investidura”.
Concluiu a representante da Procuradoria-Geral da República que a Lei Orgânica do TCU seria inconstitucional por ter investido “contra a autonomia funcional e administrativa que a Carta Magna outorgou ao Ministério Público, em seu art. 127, §2º” (grifo nosso).
No voto final, o relator Ministro Celso de Mello, apesar de repetir a lógica interpretativa de que a independência institucional assegura, em plenitude, o livre desempenho das atribuições que foram conferidas ao Ministério Público, caminhou no sentido de, ao mesmo tempo, preservar a identidade própria do Ministério Público de Contas em relação ao Ministério Público Federal e introduzi-lo, por outro lado, na intimidade estrutural do Tribunal de Contas da União.
Para tanto, o Supremo Tribunal Federal, contrariamente ao que vinha sustentando, cindiu as garantias de ordem subjetiva dos membros do Parquet das garantias de ordem objetiva da instituição, ao defender que, embora a Constituição tenha deferido aos membros do Ministério Público de Contas todos os numerosos direitos previstos no regime jurídico dos membros do Ministério Público comum, não teria, por outro lado, outorgado garantias institucionais ao Ministério Público de Contas.
Inobstante ter o Supremo Tribunal Federal dito, redito e tresdito, seja no julgamento da cautelar, seja no mérito final da ADI 789/DF, da ligação necessária entre independência institucional do Ministério Público e independência funcional de seus membros, em relação aos Procuradores de Contas trilhou inesperado caminho diverso, regalando seus membros de garantias a serem fruídas numa instituição sem fisionomia própria e despida de toda e qualquer respaldo institucional.
Isto é, reconheceu-se um Ministério Público de Contas bem diferente do Ministério Público inaugurado pela nova ordem constitucional e que se assemelhava, para todos os efeitos, a um registro atávico do regime ministerial de antes de 1988.
Finalmente, o Supremo Tribunal Federal clareou sua linha decisória, marcando que preferiu seguir uma linha intermediária dentre os bolsões interpretativos tidos como possíveis, como se percebe de importante aresto do Ministro Relator:
Entendo, na realidade, Sr. Presidente, que o preceito consubstanciado no art. 130 da Constituição reflete uma solução de compromisso adotada pelo legislador constituinte brasileiro que, tendo presente um quadro de alternativas institucionais (outorga ao Ministério Público comum das funções de atuação perante os Tribunais de Contas ou criação de um Ministério Público especial autônomo para atuar junto às Cortes de Contas), optou, claramente, a meu juízo, por uma posição intermediária, consistente na atribuição, a agentes estatais qualificados, de um status jurídico especial, ensejando-lhes, com o reconhecimento das já mencionadas garantias de ordem meramente subjetiva, a possibilidade de atuação funcional independente, sem que essa peculiaridade, contudo, importasse em correspondente outorga de autonomia institucional ao órgão a que pertencem (grifo nosso).
Nesse viés, restou claro que, na ADI 789/DF, o Supremo Tribunal Federal advogou a tese de que a Constituição não laureou o Ministério Público de Contas com autonomia administrativa-financeira, porém, de outro lado, não firmou a Corte maior que a Constituição teria vedado tais garantias institucionais, e nesse sentido, seria permitido concluir que a opção legislativa tomada na Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União não seria inconstitucional, uma vez que dentro de um feixe interpretativo possível da norma do art. 130 da Constituição Federal.
Estava decidida a ADI 789/DF{C}[15], que declarou como constitucional a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União que criou um Ministério Público de Contas próprio e inserido em sua intimidade estrutural.
Chegando até aqui, é importante abrir parênteses.
A decisão tomada na ADI 789/DF, a despeito de apresentar sinais claros de envelhecimento, como se mostrará ao longo deste trabalho, representou à época uma grande vitória do Ministério Público de Contas brasileiro, na medida em que foi reconhecido como um órgão distinto do Ministério Público regular. À época eram pouquíssimos os Procuradores de Contas no país, e o movimento de absorção das funções ministeriais nos Tribunais de Contas pelo Ministério Público regular era esmagadoramente superior à minguada, porém combativa, resistência oferecida pela carreira de Procuradores de Contas existente. Os juízes possuem limitações fáticas que condicionam suas decisões. A realidade concreta tem inequívoco peso no caminho a ser tomado pelos Tribunais. Era pouquíssimo provável que o Supremo Tribunal Federal conseguisse, a partir de uma penada judicial, criar do nada, um órgão pulsante de controle externo, com autonomia administrativa e financeira que jamais tinham exercido. Foi o Supremo Tribunal Federal até onde aparentemente conseguiria ir. Há nítidos matizes pragmáticos na ADI 789/DF. Fechados estão os parênteses.
O precedente firmado na ADI 789/DF foi seguido pouco tempo depois no julgamento de mérito da ADI 160/TO[16]. Interessante destacar, para fins de contextualização, que, no bojo da ADI 160/TO, restou inscrito, na pena do Ministro Sepúlveda Pertence, que “é ínsita à noção de Ministério Público na Constituição brasileira a autonomia funcional, que nada mais significa que a independência em relação a instruções e ingerências dos Poderes do Estado”.
Vê-se que, para o STF da época – frise-se, em momento pouco após a promulgação da Constituição de 1988 –, ao mesmo tempo que a independência funcional era característica indispensável do próprio conceito de Ministério Público, a independência administrativa e financeira, por sua vez, seria um regalo dispensável, uma característica não-imanente.
Tal linha de pensamento ocasionava uma importante consequência interpretativa: se apenas a independência funcional dos membros é ínsita ao conceito de Ministério Público, tudo que for além da independência funcional dos membros haverá de ser previsto expressamente.
Foi esta a lógica que presidiu a confirmação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nos anos posteriores: à míngua de previsão expressa, não seria o Ministério Público de Contas laureado com garantias institucionais.
É até natural que assim tenha perfilhado o Supremo, já que a independência funcional do Parquet já era consagrada e consolidada muito antes do advento da Constituição de 1988, esta sim novidadeira no que pertine às autonomias administrativas e financeira.
Para os julgadores de um momento recente ao fenômeno constituinte, parece inevitável que a falta de distanciamento temporal dificulte a percepção das muitas mudanças que o recém-inaugurado regime constitucional teria trazido. O advento de uma nova Constituição é muito mais que a adoção de um novo texto, trata-se, na verdade, do recalibramento de valores e princípios sociais que só poderão ser bem captados com o passar dos anos e um novo pálio constitucional. Tirar os óculos da constituição anterior para pôr as novas lentes de 1988 leva tempo e demanda reflexões.
Outro ponto digno de se levar em consideração no julgamento da ADI 160/TO é que sequer a autonomia administrativa e financeira dos Tribunais de Contas era pacífica naquela ocasião, o que dificultava sobremaneira reconhecê-la aos quase inexistentes Ministérios Públicos de Contas.
A dúvida sobre a independência dos Tribunais de Contas é denunciada no voto do Ministro Sidney Sanches ao afirmar que a Constituição do Estado de Tocantins teria ido longe demais, conferindo autonomia administrativa e financeira ao Tribunal de Contas do Estado, prerrogativas que, segundo ele, sequer o Tribunal de Contas da União teria. Ainda se imaginava por muitos naquela ocasião que os Tribunais de Contas eram órgãos subalternos do Legislativo.
Ressalte-se, ainda, que, na ADI 160/TO, o Supremo Tribunal Federal fez por exigir a replicação do modelo de Ministério Público de Contas atuante no Tribunal de Contas da União como obrigatório para os Estados e para o Distrito Federal, privilegiando uma suposta “simetria constitucional” em desfavor do federalismo legislativo como fautor de experiências bem-sucedidas.
Não se conteve o Pretório Excelso em dar por constitucional a opção interpretativa do legislador federal, como vinculou-a a todas unidades federativas.
É, no entanto, na ADI 160/TO que nasce a primeira dissidência resultando em voto em prol da autonomia administrativa e financeira dos Ministérios Públicos de Contas, ou, pelo menos, da desnecessidade das unidades federativas seguirem o modelo federal. Tal voto é da lavra do Ministro Marco Aurélio, que, mudando seu posicionamento firmado na ADI 789/DF, aduziu:
Atente-se para a relevante função do órgão a ser exercida perante as cortes de contas. Não se quis, simplesmente, ver agindo uma simples procuradoria. Partiu-se para a inserção, nesse meio, do próprio Ministério Público, objetivando, com isto, a atividade em tão sensível campo, de órgão que gozasse não só de autonomia funcional, inerente a tal espécie de atuação, como também de autonomia administrativa. Aliás, não vejo como dissociá-las, quando o que se busca, em última análise, é uma atuação equidistante, independente, daqueles que, a rigor, laboram, precipuamente, como fiscais da aplicação irrestrita do que se contém no arcabouço normativo (grifo nosso)
O Ministro Marco Aurélio rebateu com vigor a tese de cisão entre garantias subjetivas e objetivas que respaldou o decisum tomado na ADI 789/DF, fazendo questão de ressaltar que as mencionadas garantias são indissociáveis e que a vontade constitucional seria de construir para atuar nos Tribunais de Contas não uma simples procuradoria, mas sim o próprio Ministério Público com todas suas características imanentes.
Nessa toada, o Ministro Marco Aurélio entendeu como constitucional o texto da Constituição Estadual de Tocantins que previa independência administrativa e financeira ao Ministério Público de Contas, já que não haveria subversão aos mandamentos da Constituição de 1988, e cumprir-se-ia de modo mais eficiente os desideratos constitucionais na criação de um Ministério Público de Contas.
O voto, no entanto, foi vencido, mantendo-se na ADI 160/TO[17], julgada em 1998, desta vez por maioria, e não à unanimidade, o entendimento da ADI 789/DF, com o agravo de, sob a existência de uma suposta exigência de simetria[18], ter o Supremo Tribunal Federal vinculado os modelos estaduais do Ministério Público de Contas ao manejado pela União.
Ainda em 1998, no julgamento da ADI 1.791 MC/PE[19], o STF pareceu avançar um pouco e chegou a admitir uma institucionalidade própria do Ministério Público de Contas, garantindo que cabe ao próprio Parquet de Contas (“à própria instituição”, nos dizeres do Relator) formular a lista tríplice dos nomes a serem escolhidos, pelo Chefe do Poder Executivo, a ascender ao cargo de Procurador-Geral, vedada qualquer interferência do Tribunal de Contas.
Na ADI 2.378/GO, julgada em 2004, além da reafirmação do voto do Ministro Marco Aurélio pela autonomia administrativa e financeira do Ministério Público de Contas[20], aderiu a esse pensamento o Ministro Ayres Britto, que assim subscreveu:
Pois bem, diante dessa pelo menos aparente diversificação de trato normativo-constitucional para as duas tipologias de Ministério Público, parece-me que os questionamentos centrais a fazer só podem ser estes: a Constituição Republicana parificou tão-somente os membros de ambas as espécies de Ministério Público, porque sua real intenção foi a de atribuir relevo sistêmico desigual às respectivas instituições, ou tal igualação não passou de uma simples opção legislativa pro uma estrutura de linguagem mais sintética, restando implícito que somente faz sentido conferir idêntico regime normativo aos membros do Ministério Público Especial se estes puderem atuar sob o guarda-chuva de uma instituição paritariamente forrada de prerrogativas quanto as que vigem para o Ministério Público geral? Creio que o segundo questionamento é que fala por si[21].
Ayres Britto afirmou em seu voto que não foi intenção constitucional tratar diferentemente instituições com igual destinação de defensoras dos interesses sociais e coletivos pelo tão simples fato de um Ministério Público funcionar junto ao Poder Judiciário, e o outro junto aos Tribunais de Contas.
Manteve-se, contudo e uma vez mais, a linha de decisão da ADI 789/DF e da ADI 160/TO.
Mais adiante, em julgados de 2009, precedentes do STF sinalizaram nova evolução ao atestarem, por exemplo, que o Parquet de Contas é “órgão dotado de estrutura própria que confere a mais ampla independência a seus membros”, expressão referenciada na ADI 328/SC[22], da Relatoria do Ministro Ricardo Lewandovski.
Aliás, em parecer jurídico tratando do assunto, Juarez Freitas observa o seguinte:
[…] o Relator da ADI 328/SC não parou na assertiva de que se trata de órgão com estrutura própria. Como que para não deixar dúvida e, ao que tudo indica, numa louvável evolução em relação às teses que a negavam, ou não a reconheciam por inteiro, acolheu a autonomia ampla do Ministério Público de Contas (distinta da independência funcional atinente aos seus membros). Isso porque, consta no voto do Min. Ricardo Lewandowski, com precisão certeira, que a Constituição catarinense, ao admitir que o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas fosse exercido por Procuradores da Fazenda, atentou “contra a autonomia da instituição”[23].
Reconheceu-se, portanto, uma autonomia institucional.
O MS 27.339/DF, seguindo uma clara evolução no trato da matéria, manteve a linha de que os Ministérios Públicos de Contas possuem fisionomia própria[24], em contraponto direto e inequívoco ao decidido na ADI 789/DF.
Tais processos, contudo, não trataram diretamente da questão central da autonomia administrativa e financeira, já que seus pedidos e causas de pedir eram outras. Embora sinalizem uma evolução do entendimento do Supremo Tribunal Federal, não podem ser tidos como definidores de uma viragem jurisprudencial definitiva.
Leia mais: http://jus.com.br/artigos/39898/…