Publicado por Losinskas, Barchi Muniz em JusBrasil
Já há mais de década surgiu no cenário nacional um instituto completamente non sense chamado de "desvinculação das receitas da União". Mas o que ele realmente significa e qual a sua gravidade?
A resposta está, em parte, no Direito Financeiro, ramo jurídico que regula as finanças do Estado, e em parte no Direito Tributário, que disciplina juridicamente as relações tributárias.
O Direito Financeiro nos dirá que, consoante todos os regimes democráticos, a vontade do Estado é a vontade da lei. Isso vale inclusive para o esquadrinhamento e alocação de verbas.
Assim, todo o dinheiro presente nos cofres públicos estará afetado – vale dizer, vinculado – a uma despesa específica, não podendo agir o Estado como um particular, que aloca seu patrimônio onde bem entender.
Para isso, existem os Planos Plurianuais, que servem de diretriz para um governo ao longo dos anos, devendo-se seguir este plano que é, inclusive, referendado pelo legislativo, sendo, portanto, também uma lei.
É óbvio que qualquer orçamento precisa possuir um limite mínimo de margem para manobra, pois existem situações excepcionais e imprevisíveis que demandam a realocação de verba pública.
Observadas essas pequenas exceções, podemos manter a máxima inicial: a vontade do Estado é a vontade da lei e toda verba pública genericamente considerada possui destinação específica e está legalmente afetada.
Aliás, o Código Penal prevê entre os arts. 359-A e 359-H inúmeras hipóteses de Crimes Contra as Finanças Públicas, justamente para garantir a destinação do dinheiro público na forma da lei.
E o que o Direito Tributário, tem com isso?
A moderna doutrina do Direito Tributário Brasileiro classifica os tributos em 05 (cinco) espécies: impostos, taxas, empréstimos compulsórios, contribuição de melhoria e contribuições especiais.
Para o que pretendemos falar aqui, importa apenas a categoria das contribuições. Para que uma "contribuição" seja válida, ela precisa ter como fato gerador um ato típico de imposto (ato do particular sem a participação do Estado, como auferir faturamento, por exemplo) ou de taxa (para a maioria da doutrina, à qual não me alio neste ponto), sendo de rigor a discriminação em lei da destinação do produto da arrecadação.
Com efeito, influenciado pela doutrina do Direito Tributário Italiano, no Brasil, em aspecto prático, a única coisa que diferencia um imposto de uma contribuição é a previsão legal de destinação do produto da arrecadação.
Exemplo: o resultado da arrecadação do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguros (IOF) municiará os cofres públicos, fazendo frente a todos os gastos públicos genericamente considerados.
Sem prejuízo das determinações e repasses constitucionalmente previstos, às leis orçamentárias (regidas pelo já mencionado Direito Financeiro) cabe, afinal, a alocação das verbas recebidas pelo Estado por meio de tais tributos.
Com as contribuições isso é diferente. Quando uma empresa paga Contribuição Patronal ou quando uma pessoa recolhe o "INSS", esse dinheiro já está desde o pagamento vinculado à satisfação das necessidades da Seguridade Social, sendo irregular o seu desvio para qualquer outra finalidade que seja, por mais nobre que seja.
A famosíssima Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF) tinha, de fato, natureza jurídica de contribuição e tinha como destino financiar a saúde, um dos elementos da Seguridade Social.
Essa contribuição, lembre-se, foi idealizada pelo Ministro da Saúde Adib Jatene, como forma de se obter mais recursos para a saúde.
O que aconteceu logo após a criação deste tributo? Foi promulgada Emenda Constitucional incluindo o art. 76 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), autorizando ao Estado desvincular de órgão, fundo ou despesa 20% (vinte por cento) da arrecadação da União de contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico (ambas espécies de "contribuições especiais"), já instituídos ou que viessem a ser criados.
Com isso, o resultado da arrecadação da CPMF, que deveria ter ido para o financiamento da saúde, foi desviado para outras finalidades que lhe eram totalmente estranhas, sendo que, ao final, manteve-se para a saúde rigorosamente o mesmo valor que antes já havia à disposição. Até seu falecimento, o Sr. Jatene nunca escondeu e sempre fez questão de relembrar em entrevistas o absurdo desse golpe contra as finanças públicas.
Mas, como para os Administradores essa ideia foi ótima, a Desvinculação das Receitas da União prosperou e foi sendo sempre reeditada para que durasse mais tempo, sendo que seu próximo prazo fatal será em 31 de dezembro de 2015. Honestamente, não há qualquer dúvida de que será renovado mais uma vez e outra indefinidamente.
Enfim, fica claro que se o que legitima o dever tributário de pagar a contribuição é a existência de destinação final, caindo essa destinação final, cai também o dever de pagar o tributo, coisa que não aconteceria se estivéssemos tratando de um imposto. Vejamos a clara explicação do Ministro Aposentado do STF, Carlos Velloso, no julgamento do RE 183.906-6/SP, em 30/04/1998:
(…) a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo que faz a destinação do imposto não exoneraria o contribuinte de pagar o tributo. Declarada a inconstitucionalidade da destinação do imposto, seria ele recolhido aos cofres do Erário. É dizer, o que cairia seria, apenas, a destinação, e não o tributo.
Uma ressalva é preciso ser feita. É que caso há, no sistema tributário brasileiro, em que a destinação do tributo diz com a legitimidade deste e, por isso, não ocorrendo a destinação constitucional do mesmo, surge para o contribuinte o direito de não pagá-lo. Refiro-me às contribuições parafiscais – sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse de categorias profissionais ou econômicas, C. F., art. 149 – e aos empréstimos compulsórios (C. F., art. 148).
A fala do Ministro é muito clara e vai de acordo com tudo o que expusemos aqui.
Acontece que foi julgado recentemente pelo STF o recurso de uma empresa de transporte rodoviário que argumentava justamente isso, que a desvinculação das receitas teria criado, como consequência, contribuições sem destinação específica, uma aberração jurídica, em afronta à própria Constituição, razão pela qual sustentava que estaria livre do recolhimento de suas contribuições.
A relatora do caso, Ministra Carmen Lúcia, dentre outros argumentos, acabou por contradizer frontalmente a opinião supratranscrita emitida pelo então Ministro Carlos Velloso.
Entendeu ela que ainda que fosse considerado inconstitucional o art. 76, do ADCT, que instituiu e reinstituiu a Desvinculação das Receitas da União por diversas vezes, a consequência seria tão somente o retorno à situação anterior, com a vinculação das receitas, não havendo qualquer direito ao contribuinte de reaver o que havia pago.
Ora, mas como dissemos, se é da essência do tributo "contribuição" a existência de uma vinculação instituída inclusive pela lei tributária, a queda dessa destinação deslegitima a própria existência do tributo, muito mais do que autorizar supostamente a análise da alteração da destinação do produto da arrecadação.
No caso, percebe-se que a lei de natureza tributária, instituidora do tributo, teve uma espécie de derrogação parcial em virtude da superveniência de uma emenda constitucional de natureza de Direito Financeiro. Mas isso é absolutamente irrelevante para a constatação da nítida inconstitucionalidade da obrigação de pagar a contribuição, já que a destinação do tributo, elemento basilar e razão de ser dessa espécie tributária, ruiu.
Lembremos, aliás, que emendas constitucionais podem ser inconstitucionais no que contrariarem dispositivos da constituição originária. Nesse caso, entendemos que o dispositivo do art. 76, do ADCT, é claramente inconstitucional, coisa para a qual o próprio voto da Ministra se inclina.
Entretanto, as consequências por ela delineadas resultam, em nossa modesta opinião, em um equívoco técnico com repercussões bastante sérias. Por outro lado, concordamos plenamente com o posicionamento do Ministro Carlos Velloso.
Conclui-se, afinal, que, na opinião atual do STF, se inconstitucional a Desvinculação das Receitas, a União terá causado desfalque a outras entidades, mormente a autarquia INSS. E como esse desfalque seria recomposto? Um novo imposto? Uma nova contribuição? Quem sabe até mesmo uma nova desvinculação de receitas? A certeza é apenas da vítima: você.