O clamor mundial contra o apedrejamento da viúva iraniana Sakineh Ashtiani, acusada de adultério (!) além de imprimir forte pressão política em favor dos direitos humanos naquele país de regime teocrático, tem, por seu turno, a importância de revelar pelo menos duas lições básicas no campo da ciência política.
A primeira delas diz respeito à necessidade de manter sempre separada a religião do Estado, conquista da humanidade, consagrada pelo Iluminismo e pelas constituições de todos os países democráticos. Dizer que o Estado é laico é afirmar o seu caráter não religioso ou a não oficialidade de qualquer tipo de religião. Isto para que haja a mais ampla liberdade para a celebração de cultos, práticas religiosas ou profissão de fé, qualquer que seja a sua origem, do budismo ao cristianismo, passando pelas religiões de terreiros e rituais indígenas. A intolerância religiosa, como no Irã dos aiatolás e que já levou muitos países à guerra em vários períodos da história, deve ser permanentemente combatida pelas forças democráticas. Quanto mais o Estado se afasta da religião e de seus símbolos, mais liberdade ele garante para que as pessoas professem a sua fé sem opressão e com base exclusivamente em sua livre escolha. Outra lição desse episódio: o chamado "relativismo cultural", que muitos doutrinadores aceitam para justificar as violações de direitos humanos em nome de uma diversidade cultural, histórica e religiosa, não passa de uma cortina de fumaça para escamotear as mais hediondas práticas contra a dignidade da pessoa. Os direitos humanos são universais, interdependentes e indivisíveis. Valem para todos os povos, de qualquer cultura e sob os mais diversos tipos de regime político. As mulheres estão sendo massacradas no Irã e em outras republiquetas islâmicas, subjugadas e violadas em sua dignidade de pessoa e não se pode aceitar como "cultural" esse crime de Estado.
Para o professor Tim Jensen, secretário-geral da Associação Internacional para a História das Religiões e chefe do departamento sobre o estudo das religiões da Universidade do Sul da Dinamarca -, é preciso reafirmar os princípios da laicidade do Estado e para isso o caminho não é meter a Deus na Constituição e sim dizer a todos que há que respeitar os que crêem em Deus, mas que há que tirar a Deus da política. E que se isso não for feito, será difícil criar uma paz estável.
Relembre-se que Tocqueville, em sua obra "A Democracia na América" (1840), revelou ao mundo sua admiração com o que vira na Nova Inglaterra, de forma especial à vivência dessa "autonomia recíproca", que ele chamou de "espírito de religião" e de "espírito de liberdade". Ali estava, no seu entendimento, a formação do caráter da civilização anglo-americana. Esses dois fatores distintos, longe de se prejudicarem por seu aparente antagonismo, apoiaram-se mutuamente. As famílias que fugiam das perseguições religiosas na Inglaterra não aceitavam a religião subordinada ao Estado, embora vissem nela "a companheira de lutas e triunfos, o berço da liberdade e de seus próprios direitos." O mundo político, por sua vez, era tido como o terreno livre deixado pelo Criador aos esforços da inteligência; e a liberdade civil, sob esse prisma, era concebida como o "nobre exercício das faculdades do homem."
Mas o Alcorão professado no Irã – com as suas máximas políticas, leis civis e penais, a par de uma interpretação fundamentalista por parte de mulás e aiatolás – leva, inevitavelmente, à fusão entre Estado e religião e, nesses casos, torna-se absolutamente incompatível com o sistema político e religioso em que se funda o caráter das democracias ocidentais, inspiradas que são nas idéias iluministas e liberais que floresceram com vigor a partir do século XVIII e que evoluíram até aos nossos dias. O que está em jogo, portanto, é o confronto entre dois sistemas políticos irremediavelmente refratários. Um autêntico choque de civilizações. Assim, a preservação do laicismo – vale dizer, dos princípios da autonomia recíproca entre religião e Estado, é a base para o desenvolvimento de uma sociedade pluralista e democrática, e para a convivência fraterna entre os povos, ainda que essa preservação passe pelo firme enfrentamento de fanáticos e celerados.
As mulheres do Irã ainda terão que esperar algum tempo para serem livres e respeitadas, mas os países democráticos – e o Brasil é um deles – não podem se tornar cúmplices nem pelo silêncio nem pela amizade diante de tantas atrocidades.
Sergio Tamer é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca.