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Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

O Brasil entre o golpe e o contragolpe

O contragolpe dado pelas Forças Armadas de Honduras às pretensões continuistas de Manuel Zelaya, ou seja, ao golpe que estava em marcha, contrariou os interesses de Hugo Chaves, adepto da perpetuação no poder, especialmente para os integrantes da "Alba", e arrastou o Brasil, mais uma vez, a cometer uma política externa equivocada em relação ao continente Sul Americano. Como ponto de partida, podemos dizer que não há democracia sem alternância no poder. Eleições conduzidas por chefes de estado populistas, com a imprensa controlada e a economia estatizada, por mais consagradoras que sejam as vozes das urnas, não podem servir de justificativa legitimadora para um governo, nomeadamente para um governo não democrático.

Nesses casos, estaremos sempre diante de uma ditadura camuflada com vestes democráticas.

A liderança do Brasil na América do Sul, assim, deveria ser exercida levando em conta o nível democrático demonstrado pelos nossos vizinhos e pelo respeito conferido por eles aos direitos humanos. Infelizmente, não é o que vem ocorrendo.

No episódio de Honduras, ainda em plena efervescência, o candidato a presidente perpétuo armava o golpe e foi defenestrado por outro golpe.

O erro político de um – que pretendia rasgar uma cláusula pétrea da Constituição, contra a vontade do Legislativo, do Judiciário, das Forças Armadas e da população – não autorizava, evidentemente, o erro de outro, no caso, o dos militares que no dia 28 de junho invadiram o palácio presidencial, prenderam Zelaya ainda de pijama e o colocaram num avião rumo a Costa Rica. O presidente do Congresso, Roberto Micheletti foi escolhido por seus pares para substituir o presidente deposto e logo assumiu o poder. De que lado ficar? De quem ia dar o golpe ou de quem deu o golpe antes? Qual golpista apoiar? O iminente ou o consumado? O Brasil, mais uma vez, se meteu numa trapalhada diplomática em presumido conluio com o caudilho Chaves o que nos leva a fazer, aqui, algumas ponderações.

Sabemos que no geral um golpe de Estado provoca uma mudança de governo súbita, uma ruptura institucional violenta, contrariando a normalidade da lei e da ordem e submetendo o controle do Estado a pessoas que não haviam sido legalmente designadas – mas há golpes de Estado que podem ser dado pelos lideres do próprio governo na esperança de aumentar os poderes de fato que possam exercer. É o que Zelaya aprontava mediante uma consulta plebiscitária considerada inconstitucional pelo Congresso e pela Justiça. Exemplos desse tipo de golpe foram registrados no Brasil em 1937, no Peru em 1992 e na Venezuela em 2004. O Estado Novo foi simbolicamente estabelecido com um pronunciamento em rede de rádio por Getulio Vargas que então declarou implantar um novo regime. No pós 64 também pode se considerar que houve vários golpes dentro do golpe militar.

Fujimori e Hugo Chaves também estão nesta categoria de golpe que é desferido pelo próprio governo. Apropriam-se de mecanismos democráticos, os utilizam para aumentar ainda mais seus poderes e assim almejar uma permanência indefinida no poder. Mas nem sempre os golpistas se dão bem.

Do frances coup d’Etat ou do alemão Staatsstreich, o conceito de golpe de Estado surge na teoria política com a modernidade após a Revolução Francesa e o Iluminismo. Um dos marcos nesse modelo moderno foi o golpe do 18 Brumário aplicado por Napoleão Bonaparte para se consolidar no governo da França. Na America Latina a Bolívia "adotou" o golpe de Estado como um processo de transição política mais comum que as eleições: desde a sua independência, em 1825, aconteceram 189 golpes de Estado. Dentre os países, no mundo, que nunca sofreram um golpe de Estado nem uma tentativa desde sua independência, estão: Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Estados Unidos, Noruega, Suécia, Israel, Cabo Verde e Canadá.

Voltando ao caso de Honduras, Manuel Zelaya foi aconselhado por Chaves a utilizar um dos mais caros institutos de uma democracia – as eleições – para golpear a própria democracia e assim se perpetuar no poder. Foi rechaçado de pronto, mas já se disse que o contragolpe foi igualmente um erro. O Legislativo deveria ter utilizado o referendo de revogação de mandato (callback) ou o impedimento (impeachment), este já testado com êxito no Brasil para depor o presidente Collor de Mello – que são medidas previstas constitucionalmente em dezenas de democracias.

A Embaixada do Brasil em Tegucigalpa não deu asilo político a Zelaya e nem isto lhe foi pedido. O prédio brasileiro foi simplesmente tomado de assalto pelos adeptos do presidente deposto, com o beneplácito do Itamaraty e transformado em uma espécie de barricada, além de servir de plataforma para ações e articulações partidárias. O objetivo é armar uma resistência ao contragolpe sofrido e o Brasil, entre dois golpistas – o que entrou e o que deseja voltar – se deu conta de que entrou no baile errado e tenta agora se equilibrar numa retórica pouco convincente de que está ao lado do "legalista" e "democrático" Zelaya.

Lamentavelmente, o Congresso não debate a política externa brasileira e essa omissão tem permitido os mais severos desacertos em sua condução a exemplo do bloqueio que o Brasil impõe, ao lado de países como China e Cuba, às resoluções da ONU que condenam as violações de direitos humanos. Direitos esses que – nunca é demais lembrar – são universais, interdependentes e indivisíveis.

É hora, portanto, de se colocar na pauta do Congresso o acompanhamento e debate das políticas externas praticadas pelo Itamaraty e de exigir que o Brasil assuma um protagonismo mais condizente com suas tradições na defesa e promoção dos direitos humanos, sobretudo na America Latina.

Sergio Tamer é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca.