O tema do livre comércio teve, no mês de dezembro, em Hong Kong, durante a Rodada Doha, patrocinada pela Organização Mundial de Comercio – OMC, um dos seus momentos mais importantes, quando grupos bem definidos de países discutiram a quebra de barreiras alfandegárias e de subsídios para produtos agrícolas, industriais e de serviços. Essa batalha para eliminar os obstáculos e privilégios que impedem o livre comércio têm cinco grandes protagonistas: os países desenvolvidos (EUA, União Européia e Japão); as nações emergentes (G-20), onde se situa o Brasil; os grandes exportadores e os países pobres (G-90). Em jogo esteve uma grande oportunidade para aumentar o crescimento, o bem-estar e reduzir a pobreza das nações. Mas infelizmente os países ricos mostraram que só querem o livre comércio para os seus produtos pois não acenaram, até agora, com qualquer possibilidade de reduzir os subsídios agrícolas – o que em muito beneficiaria as exportações dos países emergentes. Ao contrário, EUA, União Européia e Japão ao invés de honrarem seus compromissos com a Rodada Doha, reformando as regras do comércio, estão oferecendo um "pacote de ajuda" que já haviam anunciado em outras reuniões e que em nada contribui para os interesses dos mais pobres.
A questão dos subsídios agrícolas
O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, advertiu que os países mais pobres não podem esperar outros vinte anos para ver uma verdadeira reforma no comércio agrícola. Como não poderia deixar de ser, os países em desenvolvimento, liderados pelo Brasil, querem o fim dos subsídios agrícolas – altas inversões que os países ricos fazem nos seus mercados para custear as produções agrícolas, retirando, assim, o equilíbrio salutar da livre concorrência. As Nações Unidas resumem assim esta situação: "os países ricos gastam um pouco mais de U$ 1 bilhão anual em assistência ao setor agrícola dos países pobres e um pouco menos de U$ 1 bilhão diário em sustentar seus próprios sistemas". Ainda pelas estimativas da ONU, um acordo na Rodada Doha que LIBERALizasse ao menos uns 40% do comércio de produtos agrícolas e manufaturados geraria benefícios estimados em U$ 70 bilhões. No que toca ao Brasil, se os países desenvolvidos (basicamente EUA e União Européia) reduzissem seus impostos de importação, assim como as subvenções aos agricultores em 50%, produziriam benefícios na economia brasileira de cerca de U$ 1 bilhão e 700 milhões anuais, equivalentes a 0,3% de nosso PIB. Já os países ricos querem negociar a abertura dos mercados para que suas empresas possam exportar produtos industriais e de serviço.
Influência na política
Esse tema de natureza comercial tem, no entanto, para além de sua aparência, uma profunda e larga influência na esfera política. Estudos indicam que por cada dólar que recebem em ajuda humanitária, os países pobres perdem dois devido às injustas regras comerciais. Tal fato explicaria, em parte, porque 18 dos países mais pobres do mundo estejam hoje pior do que estavam há 15 anos. Não há dúvida que da forma como está sendo praticado, o comércio mundial está intensificando a pobreza e a desigualdade. E o que é mais insólito: todos falam em livre comércio desde que seja para os seus próprios produtos. Isto é, enquanto os países ricos pregam a prática do livre comércio para os seus produtos industriais e de serviços, eles mantém os seus mercados "fechados" para os produtos agrícolas dos países pobres e em desenvolvimento. Estes, por sua vez, querem o livre comércio para os produtos agrícolas mas colocam restrições fiscais para a livre circulação dos demais produtos. Assim, enquanto não houver disposição para encontrar um ponto de equilíbrio nas relações comerciais, os países em desenvolvimento, como o Brasil, continuarão convivendo, no seu interior, com grandes desigualdades sociais enquanto os países pobres recuarão ainda mais nos seus reduzidos patamares de sobrevivência. E já há indícios de que isto tudo junto poderá resultar numa espécie de "efeito bumerangue" para a estabilidade política dos países ricos.
Haverá um mercado justo?
No entanto, é oportuno questionar se há possibilidade real de existir um mercado justo, ou seja, que contemple o interesse dos países envolvidos e promova melhor justiça social.
Para o cientista político Robert Dahl a democracia e o capitalismo de mercado "são como duas pessoas unidas em um tempestuoso casamento dividido pelo conflito, mas que ainda assim perdura porque nenhuma das duas deseja separar-se da outra." É certo também que em nenhum país democrático existe uma economia de mercado sem extensa regulação e intervenção estatal dirigida para diminuir seus efeitos prejudiciais. Ocorre que os países ricos exageraram na dose protecionista aplicada em defesa de suas economias e o resultado tem sido, até aqui, a justificada desconfiança em projetos como a ALCA, a área de livre comércio que se pretende implantar entre os países do continente americano, além, como é evidente, do aumento da miséria no mundo, componente cada vez mais explosivo no contexto internacional. Portanto, um mercado justo terá que levar em conta estes fatores regionais, o que permitirá um melhor equilíbrio nas suas forças, afastará o esmagamento dos países que não integram o primeiro grupo, como se verifica hoje, mas que, ao contrário, poderão experimentar, efetivamente, um desejável crescimento econômico e, com ele, o tão almejado bem estar social. Se a democracia e o mercado são inseparáveis, então que caminhem lado a lado, em harmonia com os princípios da liberdade com igualdade social.
Sergio Tamer é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca.