Se é verdade que a democracia está presente hoje na América Latina, com exceção de Cuba e, em certa medida, da Venezuela -, não menos verdade é que em termos de qualidade e de níveis de desenvolvimento há uma grande diferença entre os países da região, diferença que se acentua ainda mais quando estabelecemos parâmetros com os índices da Europa e EUA. As sucessivas crises econômicas, o personalismo dos governantes, a hipertrofia do poder executivo, a persistência da desigualdade social assim como todas as consequências negativas daí advindas, têm reflexo direto na qualidade e no desenvolvimento do processo democrático. Constata-se, assim, que a cidadania política e civil, conquistada com muito sofrimento depois de largo período ditatorial, longe está de corresponder à cidadania social, estando esta em ameaçador descompasso com aquela pois retira-lhe claramente eficácia. Evo Morales, eleito presidente da Bolívia disse que, no mundo, "ou governam os ricos ou governam os pobres", sem explicar o que isso representa em termos de eficiência política, enquanto que Michelle Bachelet, eleita presidenta do Chile, destacou que "não há amanhã sem ontem" prometendo trabalhar sem descanso pela justiça social e por um país sem exclusões. No Brasil, cobram-se atuações governamentais mais consistentes na área social e este parece ser, pelo que está prometido, um ano de grandes inversões. Quando, afinal, chegaremos a obter, efetivamente, cidadania política e civil juntamente com a cidadania social? Qual o nível de interferência, deste descompasso, na obtenção de uma democracia estável?
Macroeconomia e indicadores sociais
A América Latina tinha, no ano passado, 220 milhões de pobres e outros 95 milhões de indigentes. Esses números representam, respectivamente, 43,4% e 18,8% da população total da região, segundo dados divulgados pela Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe) . Na parte que nos toca e pelos dados das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, o Brasil é o oitavo país do mundo em desigualdade social. Estamos na frente da Guatemala e dos países africanos Suazilândia, República Centro-Africana, Serra Leoa, Botsuana, Lesoto e Namíbia: é, simplesmente, uma classificação desoladora! A mensuração é obtida pelo chamado coeficiente de Gini, de uso consagrado em organismos internacionais. Ele varia de zero a 1. Quanto mais o índice se aproxima de zero, melhor é a distribuição de renda. O índice do Brasil foi de 0,593 em 2003, segundo esse relatório do PNUD que abrange 177 países. De acordo com os dados, os 10% mais ricos do Brasil concentram 46,9% da renda nacional. Em contraste, os 10% mais pobres ficam com 0,7%. Aliás, já se disse que, em termos de Brasil, os indicadores macroeconômicos gozam de boa saúde, ao passo que os indicadores sociais sofrem de anemia crônica. Investimentos massivos em educação, saúde, saneamento e reforma agrária – pela conclusão do estudo de 17 pesquisadores de universidades brasileiras inserido no quinto volume do "Atlas da Exclusão Social no Brasil" – permitiria ao país, segundo essa mesma projeção, alcançar índices de primeiro mundo mas somente no ano 2020.
Um pequeno enfoque sobre a cultura política
Nos estados democráticos, o homem comum participa na qualidade de cidadão influente mas para isso é necessário que ele possua, também, uma cultura política coordenada com a cultura da participação. É que as grandes idéias da democracia – liberdade e dignidade do indivíduo, princípio de governo com o consentimento dos governados – são idéias facilmente assimiláveis, mas o mesmo não ocorre quando tratamos da maneira como os dirigentes políticos tomam as suas decisões, suas condutas e atitudes, assim como no que diz respeito ao cidadão comum, no seu agir e proceder em suas relações com o governo e com os demais cidadãos. Estes, são componentes culturais mais sutís e se assimilam, num processo democrático, com grandes dificuldades, pois fazem parte da formação cultural de um povo, suas atitudes e sentimentos em relação à um sistema democrático. De igual modo, sistemas sociais e tecnológicos arcaicos prejudicam o processo democrático.
De fato, são antigas as ligações entre democracia e a questão social mas nunca deixou de haver a percepção de que é possível um atuar político para criar, no âmbito social, as condições favoráveis para a implantação da democracia política. Assim, seria oportuno indagarmos se as nações do continente latinamericano descubrirão uma forma estável de processo democrático que se acomode a suas instituições sociais e a sua cultura em particular sem comprometer a dignidade básica da pessoa humana?
À guisa de conclusões
É sem dúvida relevante, nesse quadro, o papel da política econômica nas relações entre democracia política versus democracia social. Dentre os muitos desafios latinoamericanos, um deles é: como desenvolver uma política social eficiente em meio a uma dinâmica econômico-tecnológica que limita a capacidade de ação do Estado e impõe políticas generosas em relação ao mercado? É assombroso, dentro desse panorama, que na América Latina os lucros e as vantagens econômicas estejam ligados às condições sociais precárias, baixos salários, etc., resultando numa combinação inaceitável entre altos rendimentos financeiros nacionais e internacionais com uma pobreza generalizada. Mas como alcançar o chamado equilíbrio superior entre a capacidade de obter rendimentos econômicos e financeiros com as condições gerais favoráveis à produtividade que supõe, justamente, uma política social já executada com êxito? A situação na América Latina é, realmente, tão dramática que é necessário fazer tudo: otimizar os mercados, reformar o estado, qualificar a população, enfrentar as urgências sociais, combater a insegurança pública e tudo isso sem abrir mão, em uma certa medida, do paternalismo estatal tendo em vistas as graves deficiências sociais. A cidadania incompleta ainda é uma triste realidade no continente sulamericano. A democracia, lembra o cientista político Robert Dahal, tem vários companheiros de viagem, dentre os quais estão a cultura política, o desenvolvimento econômico e a modernização social, uma vez que a democracia não é uma questão estática mas está ligada a processos. Um processo que, no dizer de Jutta Limbach , é aberto e arriscado.
Sergio Tamer é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca.