Em obra que se tornou clássica no gênero, ERNEST HAMBLOCH [1], cônsul inglês, jornalista e brasilianista das décadas vinte e trinta do século 20, ao fazer um estudo do Brasil constitucional referente ao período 1889 – 1934 , disse, à certa altura , em síntese bem elaborada, que “Os princípios de uma Constituição livre no Brasil republicano não foram perdidos. Jamais foram atingidos. Muitíssimo poucas vezes foram sequer compreendidos. O Brasil sempre esteve ocupado à caça de um “homem providencial”. Por esta expressão, – que hoje poderia ser substituída por outra mais popular, como “salvador da pátria” – HAMBLOCH mostra toda a tendência do brasileiro em idolatrar os chefes carismáticos, paternalistas, demagogos e populistas, na esperança de ter um líder com os dotes e a generosidade de um pai, o “pai da pátria” , que a todos provê. Ao invés disso, esse mesmo brasileiro deveria lutar para fortalecer as instituições, as formas colegiadas da sociedade organizada, e fazer valer os seus direitos fundamentais. Deveria, sobretudo, ter a crença em seu próprio valor e nas transformações que podem advir como consequência dessa organização e da ação coletiva, verdadeiras fontes das mudanças e da redenção social. Mas, o mito brasileiro é, sem dúvida, aquele que encarna o “homem providencial” , conforme a precisa expressão rotulada por HAMBLOCH.
Esses líderes populistas não veem fronteira para suas pregações demagógicas e prometem “dar”, até, a “felicidade” para cada um, em particular, e a todos, de uma forma geral. A população menos politizada acredita e se compraz com a promessa de que viverá feliz sob o manto presidencial que se anuncia, decepciona-se mais na frente para em seguida renovar as esperanças diante de mais empulhações, numa interação que caminha indefinidamente e que diminui a influência das instituições democráticas, colocadas à margem desse processo.
O povo sai em busca do “homem forte” para resolver seus problemas e acaba por conceder uma “licença de corso” (letters of marque)[2] ao presidente da República, isto é, aquela licença que os governos davam aos corsários para agir livremente, inclusive nas atividades ilícitas. Nesse sentido, na Primeira República (1899-1930), os abusos e os crimes de corrupção podiam ser cometidos pelos presidentes pois não havia controle constitucional, um freio ao seu poder monárquico, diante, por exemplo, da decretação do estado de sítio, instrumento frequentemente utilizado, assim como no “Estado Novo” -, contra qualquer manifestação de opinião contrária ao governo, e sob o qual eram suspensas todas as franquias constitucionais [3]. E não havia controle porque este jamais foi exercitado pelo Congresso, pelas mesmas razões que hoje ele se queda inerte diante da avalanche de medidas provisórias, muitas sem relevância, outras tantas sem urgência, e quase todas sem nem uma coisa e nem outra.
Rui Barbosa, assombrado com o que se passava durante o sítio, e percebendo o propositado desvirtuamento do texto constitucional, chegou a publicar um livro onde dava a apropriada interpretação da matéria: “O Estado de Sítio. Sua Natureza. Seus Efeitos. Seus Limites”. A autocracia do Chefe de Estado, porém, sempre foi a tônica do exercício presidencial brasileiro, com marcada influência na vida social e econômica. Como sintoma desse quadro, foram inúmeras as revoltas e os movimentos armados que se espalharam pelos Estados e abalaram profundamente as instituições republicanas, assim como periódicas foram as crises econômicas que geraram um estado de permanente instabilidade financeira.
Ao contrário do socialismo, onde “cada um fazia o que gostava, e os que não gostavam eram forçados a gostar…”, no republicanismo presidencialista “cada indivíduo é perfeitamente livre para fazer o que o governo gosta…” – ironizava HAMBLOCH que, citando GUSTAVE LE BOM, escreveu: “ Os países da América do Sul (que adotaram sem exceção o regime presidencialista) estão submetidos a governantes que exercem uma autocracia não menos absoluta do que a dos antigos Czares de Todas as Rússias, e talvez até mais absoluta…De repúblicas eles têm simplesmente o nome. São, na realidade, oligarquias de indivíduos que transformam a política num comércio altamente lucrativo.” [4]
Já se falou, mais acima, que a primeira lei constitucional republicana foi aprovada a 24 de fevereiro de 1891 e logo no dia 3 de novembro desse mesmo ano o primeiro presidente dissolveu o Congresso e declarou um estado de sítio, medida que viria a ser imitada pelos presidentes que o sucederam, com duas exceções, o que acabou por se tornar um “fenômeno normal” na vida republicana, mas também uma extensão, violenta e agressiva, dos poderes arbitrários e já bastante hipertrofiados, exercidos pelo Executivo no regime presidencialista. Assim, além do sítio de 20 dias inaugurado por Deodoro , Floriano, que o sucedeu completando-lhe o mandato, submeteu o país ao estado de sítio por mais de nove meses. Tivemos, posteriormente, e ainda dentro do período da “Primeira República” a seguinte moldura, contendo esses atos excepcionais, com realce para a nítida supremacia do Executivo:
- Prudente de Morais (1894-98), de São Paulo, com Victorino Pereira, da Bahia, como vice-presidente. Estado de sítio superior a três meses.
- Campos Sales (1898-1902), de São Paulo, com Rosa e Silva, de Pernambuco, como vice-presidente. Não houve estado de sítio devido à “política dos governadores”.
- Rodrigues Alves (1902-6), de São Paulo, com Afonso Pena, de Minas Gerais, como vice-presidente. Estado de sítio superior a três meses.
- Hermes da Fonseca (1910-14), do Rio Grande do Sul, com Wenceslau Braz, de Minas gerais, como vice-presidente. Estado de sítio durante nove meses.
- Wenceslau Braz (1914 -18), de Minas Gerais, com Urbano Santos, do Maranhão, como vice-presidente. Estado de sítio superior a doze meses.
- Rodrigues Alves , de São Paulo, morreu antes de assumir o cargo. Novas eleições fizeram Epitácio Pessoa (1919 -22), da Paraíba, Presidente, com Delfim Moreira, de Minas Gerais, vice-presidente. Estado de sítio durante quatro meses.
- Artur Bernardes (1922 -26), de Minas Gerais, com Estácio Coimbra, de Pernambuco, como vice-presidente. Estado de sítio renovado desde o início do mandato.
- Washington Luiz (1926 – 30),de São Paulo, com Mello Vianna, de Minas Gerais, como vice-presidente. Estado de sítio superior a dois meses.
- Júlio Prestes (1930 -34), de São Paulo, com Vital Soares, da Bahia, como vice-presidente; não foi empossado devido ao movimento militar de outubro de 1930 que colocou Getúlio Vargas, do Rio Grande do Sul, no cargo, com poderes ditatoriais.
Embora pudesse ser dito que em alguns raros casos a declaração do estado de sítio se justificava, o seu uso frequente e indiscriminado, muitas vezes como expediente preventivo, tornou o instituto, ele próprio, gerador de “comoções intestinas” as quais tinha por pretexto evitar. Tais fatos conferem àquele período a categoria de autocrático, com evidente predominância do Executivo, em que pese o ritual das “regulares” e sucessivas “eleições”.
A hipertrofia do executivo, em nosso país, tem suas raízes históricas fincadas na Monarquia, mas o seu marco mais visível aponta para a adoção do presidencialismo pela então nascente República brasileira. Sustenta HAMBLOCH[5] que desde 1850 ficara estabelecido que o “soberano” era o povo brasileiro e não o monarca e que o constitucionalismo republicano conseguiu reverter essa ordem fazendo do “presidente republicano um ‘lord e rei soberano’ em tempo de paz; um generalíssimo em tempo de guerra, e um déspota, sempre”.
“O nome de tirania” – acusa Victor Alfiere [6] – “deve ser dado, sem diferenciação, a qualquer espécie de governo no qual a pessoa encarregada da execução das leis pode fazê-las, destruí-las, violá-las, interpretá-las, obstruí-las, suspendê-las, ou simplesmente evitá-las com a certeza da impunidade. Tanto faz que esse violador seja hereditário ou eletivo, usurpador ou legítimo, bom ou mau, um ou vários; quem quer, em resumo, que disponha de suficiente força efetiva para permitir-lhe ter este poder é um tirano; qualquer sociedade que admite tal poder vive debaixo da tirania, e qualquer povo que a tolera é escravo.”
Considerando tais conceitos, o Brasil viveu sob o signo da tirania em boa parte do seu sistema republicano. E o presidencialismo brasileiro tornou-se uma ditadura em “estado crônico”: real e majestática.
A lei do arbítrio – Os governos autoritários não conhecem outra lei que o seu arbítrio – enfatiza, com razão, o historiador HELIO SILVA[7] – , explicitando que os governos fortes modificam a lei que limita a sua duração e suas atribuições. “Eles emergem e resultam de uma subversão e têm, consequentemente, de modificar a Constituição que desrespeitaram. Não se submetem a uma Constituição. Antes a Constituição, que preservam, tem de se adaptar às suas imposições, não podendo contrariá-las”. Assim, os governos, ao invés de adaptarem seus programas à Constituição esta é que vem sendo mutilada para adaptar-se aos governantes de plantão. É uma situação de fato – adiciona HELIO SILVA -, “contra a qual não subsiste o texto constitucional nem vale o pronunciamento dos Tribunais. O Congresso, que elabora a lei, deixa de ter as garantias de uma Constituição que deixou de existir realmente. Os Tribunais não podem aplicar uma lei mutável a cada instante e que não lhes pode assegurar aquelas prerrogativas de vitaliciedade e intangibilidade no exercício de suas atribuições, sem as quais o direito não é mais do que um regulamento (…). O Legislativo, por sua vez, foi longamente sujeitado aos regimentos e às práticas que o tornaram subserviente, “quando não impossibilitado de servir ”.
“O poder executivo precisa de um contrapeso à sua influência obsedante” – afirmava o historiador ANNIBAL FREIRE no início do século 20, já preocupado com a hipertrofia do poder , para em seguida sugerir: “Ele há de consistir na responsabilidade dos presidentes pelos seus atos, definida e limitada em lei.”
Esse quadro começou a sofrer, no Brasil, uma mudança profunda, a partir de 2004, com o julgamento do processo que ficou conhecido como “Mensalão”. Outros iriam seguir-se culminando com o processo denominado “Lava-Jato”. Com a baixa legitimidade dos poderes Legislativo e Executivo, umbilicalmente envolvidos nos escândalos de corrupção, o Judiciário assumiu um protagonismo inédito, com o apoio da opinião pública, passando a penetrar nas funções típicas dos demais poderes e a partir de então, ele próprio, teve os seus poderes hipertrofiados.
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Sergio Victor Tamer (69) é mestre em Direito Público pela UFPe, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca e pós doutor pela Universidade Portucalense. É presidente do Centro de estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP e da SVT Faculdade. Professor e advogado – possui as seguintes obras publicadas sobre o tema: “Fundamentos do Estado Democrático e a Hipertrofia do Executivo no Brasil” – Ed. Fabris, RS, 2002; “Atos Políticos e Direitos Sociais nas Democracias” – Ed. Fabris, RS, 2005; “Legitimidad Judicial en la Garantía de los Derechos Sociales”, Ed. Ratio Legis, Salamanca, ES, 2013.
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[1] HAMBLOCH, Ernest, 1886 : Sua majestade o presidente do Brasil. Um Estudo do Brasil Constitucional ( 1889-1934). Trad. de Lêda Boechat Rodrigues. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1981, c1936 , p. 64
[2] A carta de corso (do latim cursus, «corrida»), ou carta de marca, era um documento emitido pelo governo de um país pelo qual seu dono era autorizado a atacar navios (piratas) e povoados (bases), de nações inimigas. Desta forma convertendo o proprietário da carta em membro da marinha daquele país, conforme a chamada “Lei do Mar” (Tratado Internacional da época, quando se criou esse instrumento jurídico internacional)[1].
A cartas de corso foram muito utilizadas na Idade Média e na Idade Moderna, quando os países não tinham condições de manter marinhas próprias, ou suficientemente grandes. Foram utilizadas por muitas nações marítimas, principalmente pela França e a Inglaterra, também pela Espanha, mas em menor grau e mais tardiamente.
O texto da carta normalmente autorizava o seu agente a ultrapassar a fronteira (marco do país), e ali buscar, tomar ou destruir barcos e frotas inimigas, que eram os famosos piratas que infestavam os mares e prejudicavam a navegação.
As cartas de corso foram abolidas pela Declaração de Paris de 1856, em um anexo ao tratado que encerrou a Guerra da Crimeia. Os Estados Unidos, entretanto, foram um dos países que não ratificaram esta declaração. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Carta_de_corso). Acesso em 13.9.2020.
[3] Na Constituição de 24. 2.1891 era competência privativa do presidente da república declarar o estado de sítio em qualquer ponto do território nacional, “nos casos de agressão estrangeira, ou grave comoção intestina…” – (art.48, item 15), aferição essa que ficava ao seu exclusivo arbítrio assim como, sob as suas ordens diretas, para agir livremente e sem restrições, a polícia e o Exército. Pela Constituição de 5.10.1988, para decretar o estado de sítio, o presidente da república necessita de autorização ao Congresso Nacional, após ouvir o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional. Isto, no caso de “comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa.” – (art. 137, inciso I ). Embora possa, sem autorização do Congresso, decretar o estado de defesa ( para restabelecer a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional…) deverá o presidente, antes da decisão, ouvir o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional (art. 136 da CF) e cumprir, durante a execução da medida excepcional, as restrições e o controle contidos nos parágrafos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 7º do referido artigo.
[4] Ob. cit., p. 45
[5] Ob. cit., p. 70
[6] Apud HAMBLOCH, ob. cit., p.63
[7] HELIO SILVA, ob. cit, p. 284