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“Putin é um líder que se isola” – por Maria Raquel Freire

PUTIM 2

“Putin é um líder que se isola, tem um grupo de conselheiros restrito, e decide muitas vezes sozinho. O Kremlin não é uma entidade homogénea, e o afastamento de alguns conselheiros e oficiais do aparelho de segurança demonstram isto mesmo, e como vozes dissonantes serão punidas….”

Maria Raquel Freire

Professora Catedrática de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e autora de A Rússia de Putin – Vetores Estruturantes da Política Externa 

Apesar dos alertas repetidos dos EUA de que a invasão da Ucrânia estava iminente, muitos achavam que era blefe de Putin. Ficou surpreendida com o timing e a dimensão da invasão russa?

Fiquei surpreendida. Tenho-o dito várias vezes. Não esperava que Putin avançasse com a invasão da Ucrânia. A política de desestabilização e limitação da soberania ucraniana estava em curso, e desde 2014 tinha-se tornado evidente com a anexação da Crimeia e a guerra no Donbass. Quando no contexto da escalada de tensão mais recente Putin anuncia o reconhecimento da independência de Lugansk e Donetsk, parecia ter cumprido o seu objetivo de limitação da soberania ucraniana, de bloqueio a qualquer tentativa de integração da Ucrânia na NATO, colocando mais uma vez a NATO e a UE numa situação difícil, e fazendo uma nova demonstração de poder e capacidade, que aliada às suas exigências de revisão da ordem de segurança internacional, pareciam conferir a Putin alguma vantagem negocial. Contudo, a invasão dá-se. E na minha perspectiva altera completamente o jogo contra Putin. A resposta coesa do ocidente, visível nos pacotes de sanções, mas também no reforço das forças NATO e na disponibilidade europeia para aumento de despesas na área da defesa, a suspensão do Nordstream 2, a própria mobilização na Assembleia Geral da ONU na condenação da chamada “operação militar especial” russa na Ucrânia, onde apenas quatro estados votaram ao lado da Rússia (Bielorrússia, Coreia do Norte, Eritreia e Síria), sublinhando ainda neste contexto a ausência de votos favoráveis de países do espaço pós-soviético, à exceção da Bielorrússia, são ilustrativos de desenvolvimentos contrários ao interesse do Kremlin. Com esta invasão, a Rússia contribuiu para o seu isolamento, e independentemente do desfecho final desta guerra, é já evidente que perdeu credibilidade junto do ocidente e não sairá fortalecida desta guerra.

Fala-se cada vez mais em ataques com armas químicas, Putin não tem hesitado em deixar pairar a ameaça nuclear. É um passo extremo, acredita que o dará?

Essa opção está em cima da mesa, e o facto de as manobras no terreno não estarem a decorrer como pretendido, apesar das afirmações contrárias das autoridades russas, poderá aumentar a propensão para equacionar o seu uso. Neste momento parece-me que esta retórica inflamada pretende ganhar espaço de manobra político e criar pressão adicional sobre o ocidente relativamente às sanções em curso sobre a Rússia. No entanto, não me parece que este tipo de escalada na narrativa cumpra o propósito de levar o ocidente a recuar nas medidas restritiva acordadas, especialmente num momento em que a violência no terreno, os ataques a infraestruturas militares e civis, continuam, e tentativas de implementação de corredores humanitários, por exemplo, são sucessivamente bloqueadas limitando o seu potencial. Uma escalada nuclear teria implicações muito graves em toda a Europa, e potencialmente mais além, e a Rússia sabe disso.

Há quem aposte num maior envolvimento da Bielorrússia, com o envio de tropas para a Ucrânia. Há tempos descrevia ao DN a relação entre Putin e Lukashenko como sendo de “amor-ódio”, mas neste momento o presidente bielorrusso tem alguma opção a não ser ficar com o Kremlin?

Talvez o descritivo “amor-ódio” se continue a aplicar, contudo a margem de manobra de Lukashenko diminuiu consideravelmente desde os protestos contra a sua reeleição, considerada falseada e limitando qualquer espaço político a formas de oposição, e levando a um pedido de apoio ao regime de Putin. Na altura, acusações de que o ocidente estava a planear uma conspiração contra o regime, visando na realidade a alteração de poder em Moscovo, chegaram a ser parte da argumentação bielorrussa. Putin assegurou a lealdade geopolítica de Minsk, e assegurou também que quaisquer tentativas de alteração de poder seriam severamente reprimidas. O aumento de influência de Moscovo sobre Minsk retirou a esta quaisquer pretensões de maior independência no quadro da União com a Rússia, um exercício que Lukashenko procurou fazer nos últimos anos, e parece definitivamente limitado.

Tendo em conta as ambições imperialistas de Putin, é credível que não se fique pela Ucrânia e procure alastrar o seu domínio sobre outras ex-repúblicas soviéticas?

Esta questão tem estado em cima da mesa, em particular relativamente ao espaço pós-soviético e como a Rússia pretende aqui manter a sua influência, naquilo que sempre descreveu como uma área vital à sua segurança. Contudo, Moscovo não foi capaz de gerar poder de atração sobre estes estados, que foram desenvolvendo políticas externas autónomas, e nem sempre em alinhamento absoluto com a Rússia. Putin não detém poder ilimitado no espaço pós-soviético. O uso da força para conter desenvolvimentos contrários aos seus interesses é prova disto mesmo. Pelo caminho, a Rússia perdeu a Geórgia e a Ucrânia (já em 2014), onde movimentos nacionalistas cresceram consideravelmente. O Cazaquistão, um aliado tradicional de Moscovo, e onde nos recentes protestos o presidente Tokayev solicitou o apoio russo e a intervenção da Organização do Tratado de Segurança Coletiva, não se tem mostrado favorável à guerra na Ucrânia. Não enviará forças militares, nem reconhece a independência de Lugansk e Donetsk. Como referi há pouco, nenhum país do espaço pós-soviético, à exceção da Bielorrússia, votou nas Nações Unidas ao lado de Moscovo. Poderá haver a pretensão de anexação/reconhecimento de independência da Transnístria, arrastando assim a Moldova também para um novo conflito armado? Poderá, mas não me parece uma estratégia ganhadora. Na verdade, a Rússia tem já uma base militar na Transnístria que serve o propósito de “posto avançado” militar naquela área. Os custos materiais e normativos associados a um projeto expansionista territorial no espaço pós-soviético são demasiado pesados. E a possibilidade de criar instabilidade nos Bálticos, potencialmente através das minorias russas aí residentes, existe? Existe, mas mais uma vez parece um cenário difícil de concretizar, e aqui as implicações seriam bem diferentes, pois um ataque a um estado NATO significa um ataque à Aliança Atlântica. A guerra da Rússia com a NATO seria, então, inevitável.

Putin é um homem isolado na Rússia ou o seu pensamento estratégico é partilhado pelas elites russas?

Putin é um líder que se isola, tem um grupo de conselheiros restrito, e decide muitas vezes sozinho. O Kremlin não é uma entidade homogénea, e o afastamento de alguns conselheiros e oficiais do aparelho de segurança demonstram isto mesmo, e como vozes dissonantes serão punidas. Além disso, é interessante notar como alguns colaboradores próximos se têm afastado assumindo uma voz crítica face a esta guerra. A demissão apresentada por Anatoly Chubais nos últimos dias e os comentários críticos de Andrey Kortunov, este último diretor do Conselho de Assuntos Internacionais da Rússia, são exemplo. Mas Putin é um líder poderoso e as suas decisões falam mais alto.

Termine esta guerra como terminar, como é que o mundo vai poder lidar com Putin depois desta invasão da Ucrânia?

Pergunta difícil. O que os anos de Putin no poder nos ensinam é que as tentativas de criar laços de confiança falharam. A Rússia foi socializada nas estruturas ocidentais, participou da Parceria para a Paz no âmbito da NATO, integrou o Conselho NATO-Rússia, assinou uma parceria estratégica com a UE, foi membro do Conselho da Europa, enfim, apesar das questões de segurança que foi apontando, da ameaça que o alargamento da NATO materializa, e da exclusão do sistema de segurança europeia que repetidamente refere, houve estruturas, mecanismos e diálogo a diferentes níveis, que procuraram criar uma base de entendimento. Tudo falhou. As relações do ocidente com a Rússia não são promissoras, a quebra total de confiança que vivemos levará tempo a ser gerida.

Entrevista concedida para Helena Tecedeiro – Jornal Diário de Notícias de Portugal

27 Março 2022

 

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