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Notícia

Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

ROUSSEAU, O PRÉ-CONSTITUCIONALISTA – por Sergio Tamer

ROUSSEAU, democrata e liberal…

Por Sergio Victor Tamer

A raiz do pensamento político do século XVIII, que se tornou conhecido como o século do Iluminismo, da Ilustração, ou como o século das Luzes, tem suas origens na filosofia do século XVII, com o racionalismo de DESCARTES (1596 – 1650) e o empirismo de Francis BACON (1561 – 1626).

Passou-se a acreditar na ciência, na elucidação dos problemas, na lúcida compreensão. As sombras e a escuridão seriam afastadas. Igualmente as crendices, a cega submissão à autoridade. Em seu lugar, o primado da razão, o reino das luzes.

Se no campo do conhecimento isso significaria o fim da ignorância e da superstição, no terreno social e político representaria a base para a defesa da liberdade e da igualdade entre os homens.

Esse otimismo é realçado na França, na Inglaterra e na Alemanha. Havia esperança em reorganizarem-se as bases da sociedade por meio de ideias estritamente racionais. O racionalismo do século XVII abriu, assim, o caminho para o século das Luzes, mas este apresentou sua própria concepção de razão[1].

A influência de outros pensadores políticos se fez notar na obra de ROUSSEAU que sentiu a necessidade, como HOBBES, de conceber-se como absoluto o poder do Estado, mas aquele rejeitou, todavia, com ênfase quase feroz, o sacrifício da liberdade do homem. A obra de LOCKE também foi decisiva para as ideias de ROUSSEAU, especialmente as formulações destinadas a preservar a pessoa livre, muito embora soubesse separar o defeito desse individualismo que prejudicava a correta definição da realidade estatal. Em MONTESQUIEU lamentou não importar-se em saber se os governos eram ou não legítimos.

ROUSSEAU, por meio do Contrato Social, esboçou um esquema que, interligando a liberdade e a lei, fosse possível definir a legitimidade do poder político. Pensou desta forma, conciliar o Estado com a liberdade, mediante a participação de todos de acordo com a lei. Pode ser considerado o teórico do Estado democrático, o qual é fundado no princípio da autonomia.

Enquanto o liberal – a exemplo de LOCKE e MONTESQUIEU – entende a liberdade como não-impedimento, o democrático, como ROUSSEAU, entende a liberdade como autonomia. [2]

O ideal do Estado, para o democrático, está no fato das suas ordens exprimirem a vontade geral (liberdade no Estado), enquanto que para o liberal o Estado ideal é aquele que tem as suas ordens limitadas (liberdade do Estado). Para o Estado liberal, a liberdade natural deve ser preservada, enquanto que para o Estado democrático a liberdade natural deve ceder à liberdade civil que por sua vez submete-se à vontade geral.[3]

Nesse ponto o contrato social, concebido por ROUSSEAU, teoriza a passagem do estado natural para um estado de liberdade ainda mais plena, ou seja, a liberdade civil. Por meio de um ato coletivo de renúncia aos direitos naturais, cada um renuncia em favor de todos, e não em favor de um terceiro (o soberano) como em HOBBES.

ROUSSEAU procura demonstrar que os homens nasceram livres e assim criaram seu próprio governo. Pelo contrato a sociedade obtém o domínio de si mesma, acatando a vontade geral. Somente nessas condições existe soberania popular.  Para ele, o Estado existe para garantir a liberdade, a qual, no entanto, só é plena quando o homem obedece à lei que a si mesmo prescreveu. Obedecendo à vontade geral, que se constitui, em última análise, como única fonte legítima de emanação das leis fundamentais, haveria liberdade com igualdade e soberania popular.

Ao contrário dos que afirmam que tanto HOBBES e ROUSSEAU constroem, com suas teorias, um Estado despótico e tirano, chegando mesmo a reconhecer, paradoxalmente, no ideólogo da vontade geral a paternidade do fascismo e do nazismo e não do Estado democrático e liberal[4], entendemos, contudo , que ROUSSEAU não pode responder pelo desvirtuamento e  má aplicação de seus princípios, cujas distorções, ao longo da história, eventualmente deram ensejo a regimes antidemocráticos.

Obrigar coercitivamente (sob sanção imposta pela própria lei) os indivíduos a obedecerem a uma ordem legítima, oriunda da vontade geral, (“obrigando-os pela força a serem livres”) é condição existente em todas as democracias do mundo e não há nenhuma razão para se ver nisso a construção de um “Estado tirano”, mas, ao contrário, um Estado que respeita as aspirações populares, fundadas na liberdade do estado de natureza e voltadas para o bem comum. Ora, se um determinado Estado se utiliza da soberania popular e dos princípios defendidos por ROUSSEAU para ser o algoz desse mesmo povo, cerceando-lhe a liberdade e infligindo lhe a servidão, utiliza-se, na verdade, apenas de um conceito desfigurado para dar consecução a objetivos opostos. Por isso, não basta parecer igual, mas é preciso ser igual na forma e na essência: se o resultado político desse Estado não for o desfrute da liberdade com igualdade, nos termos propostos pelo Contrato Social, a ideia da vontade geral e da soberania popular concebidos por ROUSSEAU não passarão de mero jogo de palavras sem qualquer significado real, destinados tão-só  a encobrir  a face verdadeira de regimes opressores.

 Com homens maus, as estruturas de nada valem. Mutatis mutandi, nunca se pode esquecer que em nome de uma doutrina religiosa, como a cristã, que tem como cerne de sua pregação a tolerância, praticaram-se as mais abomináveis intolerâncias contra o ser humano e nem por isso o cristianismo deixou de ser reconhecido. Finalmente, convém frisar que em favor de um ROUSSEAU liberal e democrático milita a análise, dentre outros celebrados autores, de MERQUIOR[5] para quem “a verdadeira democracia liberal tem duas paixões – as paixões de Rousseau: liberdade e igualdade.”

Deve-se, portanto, levar em consideração na análise do pensamento dominante no século XVIII a existência de um sistema que se apoia, integralmente, na ideia reguladora da liberdade em franca oposição ao absolutismo. O liberalismo daquela época representou, com efeito, a luta pela liberdade humana para que, o quanto possível, fosse reduzido o despotismo estatal.  Todo esforço de argumentação filosófica desenvolveu-se nesse sentido, daí a necessidade de ter existido uma legislação legitimada pela aspiração popular e um poder limitado e disciplinado. Vale dizer, um efetivo controle dos mais fortes com a consequente proteção dos mais vulneráveis.

Os contratualistas sabiam que a realidade histórica apontava para direções diversas. Nesse sentido, LOPES [6] assegura que LOCKE e ROUSSEAU “propõem substancialmente uma mesma coisa: impedir o despotismo e a arbitrariedade mediante um sistema jurídico de organização do Estado sob o império da lei, que é norma abstrata, geral e isenta”. Quanto à ROUSSEAU, entende aquele autor, apoiado em VIAMONTE (El poder constituyente, p. 161) que “a teoria do contrato social não foi um erro científico, mas uma manobra estratégica, um recurso dialético frente à monarquia e aos privilégios feudais para conciliar os interesses da sociedade – representados pelo governo, que retomava o caráter de comunidade-Estado – e os interesses, até então desconhecidos, do indivíduo que surgia como homem e cidadão. Desse ponto de vista, a teoria do contrato se converte numa antecipação e fundamentação filosófica do Poder Constituinte e do ato constituinte na doutrina do Direito Constitucional moderno.” [7]

Sergio Victor Tamer é mestre em Direito Público pela UFPe e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca. É autor do livro, dentre outros, “Fundamentos do Estado Democrático e a Hipertrofia do Executivo no Brasil” (Fabris, RS, 2002).

[1]          OS PENSADORES, História das grandes ideias do mundo ocidental: São Paulo, 1972, Ed. Abril , pgs.408/409

[2]          Nãoimpedimento: “a faculdade de agir sem ser dificultado pelos outros, e cada um então tem liberdade tão maior quanto maior for o âmbito no qual pode mover-se sem encontrar obstáculos;”  autonomia : “cada um tem liberdade tão maior quanto mais a vontade de quem faz as leis se identificar com a vontade de quem deve obedecer a essas leis.”( BOBBIO, Direito e Estado no pensamento de E. Kant, p. 48)

[3]              BOBBIO, ob. cit., p. 48

[4]          Dentre tantos outros, João Ribeiro Júnior, in Pessoa, Estado & Direito, ob. cit., p.85. Já ALVARO VALLE assegura que ROUSSEAU só foi liberal num sentido: quando prescreve a limitação do poder que só seria legítimo para o cumprimento do  pacto. Mas – acrescenta – sua preocupação não era com o indivíduo: sua visão era a da “vontade geral”, o poder da coletividade. Por outro lado, a sua crítica radical à propriedade também o afasta do liberalismo.” –in Liberalismo Social, ob. cit.,p. 96

[5]          MERQUIOR, José Guilherme: Socialismo e Liberalismo : Editorial Nórdica Ltda., RJ, 1992, p. 133

[6]           LOPES, Maurício Antonio Ribeiro: Poder constituinte reformador: limites e possibilidades da revisão constitucional brasileira – SP, edit. Revista dos Tribunais, 1993 , p. 39

[7]          LOPES, ob. cit., p.33, a respeito do contratualismo, faz a seguinte afirmação: “A ideia comum a toda a doutrina do contrato social é a de que a sociedade deve ser entendida como baseada num contrato entre os homens, contrato esse livremente consentido. Essa doutrina não ensinava propriamente que a sociedade teria surgido de um contrato expressamente firmado pelos homens. Defendia que a sociedade só podia ser corretamente entendida se supusesse que ela derivava de um acordo entre os homens, contrato livremente consentido entre eles, cujas cláusulas não haveriam de ser prejudiciais a nenhum deles. É certo  que os autores que trataram desse tema se distinguem, e muito, quanto à fundamentação  do contrato social, quanto ao interesse que moveu os homens a se acordarem em sociedade, e, também, quanto às próprias consequências do contrato social. Mas neles havia esta ideia em comum: a sociedade só podia ser corretamente entendida se supuséssemos que ela deriva do acordo livre entre os homens. “