A CHEGADA – São Luís, fevereiro de 1938!
Bernardo Almeida
Crônica publicada no dia 8 de setembro de 1987, quando a cidade de São Luís festejava os 375 anos de sua fundação. Caderno “Alternativo” do jornal O Estado do Maranhão.
“Pela vigia de um dos camarotes do navio Comandante Ripper, o olhar do garoto de dez anos de idade alcança a paisagem chuvosa: a colina adormecida e o casario sobreposto em diferentes planos acima do rodapé pontilhado de luzes que se refletem nas águas da baía de São Marcos. A partir daquela madrugada de fevereiro de 1938, o meu destino estaria para sempre encravado em São Luís igual aos empedernidos alicerces de seus velhos sobrados, de cujos mirantes apascento sonhos, luares e saudades”.
Naquele tempo não podia existir cidade mais amena e encantadora do que São Luís do Maranhão. Sua população não ia além de noventa mil habitantes. Ninguém falava em desemprego, palafitas e gente faminta. As fábricas de fiação e tecelagem Santa Isabel, Santa Amélia, Camboa, Rio Anil e Cânhamo – que nos acordavam ao alvorecer com o silvo de seus longos apitos davam guarida a milhares de operários saudáveis e felizes.
O grande comércio local orgulhava-se da solidez inabalável de seus estabelecimentos, com reduto na Praia Grande. Ali estavam Martins & Irmãos, fabricantes do algodão hidrófilo de melhor qualidade do Brasil e do sabão Martins “sempre imitado e nunca igualado”, referido nos apelos de solidariedade humana, quando se dizia que “uma mão lava a outra e o sabão Martins lava as duas”. Subia-se ao escritório dos aristocráticos diretores da firma em um pequeno elevador gradeado, o primeiro de São Luís, hoje transformado em peça de museu.
Cunha Santos, Gaspar Marques, Chagas e Penha, Lages & Cia., Romão dos Santos, Azevedo e Moreira, Chames Aboud, Baptista Nunes, Moreira Sobrinho, Lima Faria, Francisco Aguiar (com sede na Avenida Pedro II), Silva Linhares e outras firmas formavam uma elite comercial que não dependia de crédito bancário para reforço de seus negócios, salvo do Banco do Brasil, nas transferências de valores a outras praças, e, mais para prestigiá-lo, dos serviços do velho Banco do Maranhão, detentor da segunda carta patente mais antiga do Brasil, concessão de uma época em que lhe era assegurado o privilégio de emitir papel-moeda.
Nas tradicionais mercearias da cidade éramos saudados sempre em amável sotaque lusitano; nelas podíamos comprar o melhor bacalhau, puro azeite de oliva, bons queijos, nozes e requintados vinhos portugueses, mais facilmente e de melhor categoria do que se compra hoje uma mercadoria qualquer nos modernos supermercados. A Casa Dias (onde agora funciona a Sapataria Clark), a Casa Branca e o magazine A Exposição sustentavam a moda masculina – a primeira com a venda exclusiva dos famosos chapéus Ramezzoni, indispensáveis adereços da elegância dos cavalheiros.
O Bazar do Japão, as livrarias Universal e Moderna, as padarias, as alfaiatarias, estúdios fotográficos (um se chamava Londres, e o outro Berlim) e as farmácias, com laboratórios de manipulação, localizavam-se em pontos dispersos. Contudo, o império do comércio varejista concentrava-se, no “quarteirão sucesso da cidade”, como era denominada a primeira quadra da Rua Grande.
Ali ficavam as grandes lojas de tecidos Rianil e Pernambucanas, a Sapataria Cleópatra (do Romualdo), a Padaria Cristal (do português Frias), a Farmácia Garrido, o bazar de Valentim Maia e o café do baixote Pataquinha, pois acima do cinema Éden era menor o movimento, sobressaindo-se a Mercearia Lusitana (embrião da poderosa cadeia de supermercados dos dias atuais), a loja Otomana e outra, de um carcamano alto, magro, que usava enormes suspensórios (pai de Hédel Azar), a alfaiataria de Carlos Souza (que confeccionava a farda de gala azul-marinho, com alamares dourados, dos alunos dos Maristas), o “Quatro e Quatrocentos” (Lojas Brasileiras) e, lá adiante, no canto da Rua de Santa Rita, em belo prédio “art nouveau”, a conceituada Mercearia Neves. Nenhum de nós poderia imaginar o que seria a Rua Grande de hoje, com essas movimentadas agências bancárias, os fervilhantes magazines e a multidão dos camelôs aos quais se juntam milhares de transeuntes para torná-la um formigueiro humano.
A cidade contava apenas com meia dúzia de “carros de praça”. O automóvel do Dadeco dava “status” a quem lhe contratava as corridas nas festas de bodas e batizados. O transporte urbano resumia-se nos bondes da Ullen Company: “Gonçalves Dias”, “São Pantaleão”, “Estrada de Ferro”, “Areal”, “João Paulo-Anil”, este com o “cara dura” a reboque, para que os granjeiros da Maioba, Paço do Lumiar e outros sítios do interior da Ilha pudessem conduzir cofos de frutas e hortaliças. Nos demais, podia-se tomar assento ao lado de senhoras e senhoritas elegantes da alta sociedade, e de circunspectos desembargadores a caminho do Tribunal de Justiça.
Era muito agradável andar num daqueles trepidantes bondinhos, que subiam e desciam as ladeiras de São Luís, com as sinetas a tocarem em aflitos pedidos de passagem às lerdas carroças, à carreta de venda de gelo, aos verdureiros, sorveteiros e vendedores de frutas da terra, camarões e peixes frescos: “Olha o peixe-pedra de Ribamar.”!
Nas tardes de domingo, o passeio de bonde fazia parte do nosso lazer. Caso não se consagrassem à simples satisfação de dar umas voltas, os passageiros, todos bem trajados, desciam até à “Pracinha” (Benedito Leite), entregue à animação de uma banda de música em retreta. Além disso havia o indeclinável “footing” na Avenida Pedro II, onde a rapaziada ia flertar com as pequenas, e ficava-se a andar para lá e para cá, prazerosamente.
Depois ia-se tomar o sorvete de bacuri, graviola, murici, cajazinho, juçara ou coco, no Lauande ou Moto Bar, até a hora da sessão das oito no cinema Éden, ou do espetáculo, no Arthur Azevedo, durante as temporadas de companhias teatrais de passagem para Belém e Manaus.
Nosso pequeno mundo provinciano era singelo, tranquilo e amável. Mesmo assim fomos atingidos, à distância, pelos horrores da II Grande Guerra, transformada em prato do dia dos noticiários da imprensa e das emissoras de rádio, assim como das rodas de bate-papo no Café do Chico. O afundamento dos primeiros navios da Marinha Mercante brasileira arrastou às ruas milhares de pessoas a clamarem por uma declaração de guerra às nações do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). De repente o ódio invadia nossos corações.
Bernardo Coelho de Almeida
(São Bernardo, 13 de junho de 1927 – São Luís, 4 de agosto de 1996). Foi membro da Academia Maranhense de Letras, ocupando a cadeira n.º 14, na sucessão de Odilon Soares. Foi presidente da Fundação Cultural do Maranhão, adido cultural do Brasil na Embaixada do Peru, diretor da TV Difusora São Luís e do Jornal de Hoje.