Decisão é polêmica e desagrada processualistas e doutrinadores: “a ampla defesa é incompatível com a eternidade”, diz Emerson Gabard
Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a imprescritibilidade de ações de ressarcimento de danos ao erário decorrentes de ato doloso de improbidade administrativa. A decisão foi tomada na tarde desta quarta-feira (8) no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 852475, com repercussão geral reconhecida. Com o julgamento, a decisão deverá ser aplicada em aproximadamente 1 mil processos semelhantes em instâncias inferiores.
No caso concreto se questionou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) que declarou a prescrição de ação civil pública movida contra funcionários da Prefeitura de Palmares Paulista (SP) envolvidos em processo de licitação considerado irregular, e extinguiu a ação. Ao prover parcialmente o recurso, o STF determinou o retorno dos autos ao tribunal de origem para que, uma vez afastada a prescrição, examine o pedido de ressarcimento do erário com base nas condições fixadas pelo Plenário.
Julgamento
O julgamento teve início na última quinta-feira (2), quando cinco ministros acompanharam o voto do relator, ministro Alexandre de Moraes, no sentido do desprovimento do recurso do Ministério Público estadual, entendendo aplicar-se ao caso o prazo de prescrição previsto na legislação de improbidade administrativa (Lei 8.429/1992), de cinco anos. O ministro Edson Fachin, acompanhado da ministra Rosa Weber, divergiu do relator por entender que o ressarcimento do dano oriundo de ato de improbidade administrativa é imprescritível, em decorrência da ressalva estabelecida no parágrafo 5º do artigo 37 da Constituição Federal, e da necessidade de proteção do patrimônio público.
Na sessão desta quarta-feira (8), o julgamento foi retomado com o voto do ministro Marco Aurélio, que acompanhou o relator. Para o ministro, a Constituição não contempla a imprescritibilidade de pretensões de cunho patrimonial. “Nos casos em que o Constituinte visou prever a imprescritibilidade, ele o fez. Não cabe ao intérprete excluir do campo da aplicação da norma situação jurídica contemplada, como não cabe também incluir situação não prevista”, disse.
Já para o ministro Celso de Mello, que votou em seguida, houve, por escolha do poder constituinte originário, a compreensão da coisa pública como um compromisso fundamental a ser protegido por todos. “O comando estabelece, como um verdadeiro ideal republicano, que a ninguém, ainda que pelo longo transcurso de lapso temporal, é autorizado ilicitamente causar prejuízo ao erário, locupletando-se da coisa pública ao se eximir do dever de ressarci-lo”, ressaltou, ao acompanhar a divergência. A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, votou no mesmo sentido.
Na sessão de hoje, o ministro Luís Roberto Barroso, que já havia acompanhado o relator na semana passada, reajustou seu voto e se manifestou pelo provimento parcial do recurso, restringindo no entanto a imprescritibilidade às hipóteses de improbidade dolosa, ou seja, quando o ato de improbidade decorrer em enriquecimento ilícito, favorecimento ilícito de terceiros ou causar dano intencional à administração pública. O ministro Luiz Fux, que também já havia seguido o relator, reajustou seu voto nesse sentido. Todos os ministros que seguiram a divergência (aberta pelo ministro Edson Fachin) alinharam seus votos a essa proposta, formando assim a corrente vencedora.
Integraram a corrente vencida os ministros Alexandre de Moraes (relator), Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, que mantiveram os votos já proferidos na semana passada, e o ministro Marco Aurélio.
Tese
Foi aprovada a seguinte tese proposta pelo ministro Edson Fachin, para fins de repercussão geral: “São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa”.
Tese de Fachin é duramente contestada por advogados e juristas
A opinião doutrinária de Emerson Gabard, Professor Titular de Direito Administrativo da PUC/PR. Professor Adjunto de Direito Administrativo da UFPR. Pós-doutor em Direito Público Comparado pela Fordham University School of Law. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo:
“O Ministro Fachin ressaltou que a prescritibilidade favoreceria a impunidade dos detratores do interesse público que se locupletariam da passagem do tempo. Este argumento, todavia, não procede. A Administração tem o dever de cobrar, mas tem um tempo pra isso. E este tempo é, inclusive, um marco para que os agentes públicos competentes para a apuração da responsabilidade e ingresso com as ações de ressarcimento efetivamente cumpram com a sua obrigação, sob pena de eles estarem cometendo uma falta. Se não têm prazo, tais agentes jamais estarão em mora. Portanto, a imposição da prescritibilidade nos casos de ressarcimento não favorece a impunidade. Ao contrário, é imposto um prazo (até então inexistente) para que os responsáveis pela cobrança exerçam seu mister. Ou seja, caso o agente responsável pela apuração não o faça, passa a ser ele o requerido do ressarcimento (além das penalidades administrativas possivelmente incidentes). Este é um forte incentivo para que tenhamos mais cobranças, e não menos, com a adoção da tese da prescritibilidade – fiquei surpreso em verificar que nenhum ministro se atentou a este argumento.
É preciso extrair interpretações equilibradas do sistema jurídico e, notadamente, do conceito de interesse público incidente. Conceito este que necessita compreender uma interpretação extensiva dos direitos fundamentais, a partir de suas condições concretas de realização probatória. Afinal, os sujeitos, seus filhos, seus netos, não podem ficar eternamente à mercê de investidas administrativas e judiciais – até porque a demora pode ser utilizada justamente para, futuramente, o Poder Público intentar se locupletar de quem já não tem como reagir.
Ademais, presumir que o Poder Público sempre estará correto em suas pretensões ressarcitórias seria um total absurdo – mas esta talvez seja a premissa implícita de alguns, não todos, defensores do erário (cada vez mais há aqueles que defendem que vale a pena condenar alguns inocentes para o “bem maior” que é a luta contra aqueles que seriam os inimigos do interesse público). Daí, talvez, justifique-se a expressão “disparate” utilizada por Celso Antônio ao referir-se à imprescritibilidade – e que serviria para vários outros casos típicos de caça às bruxas no Brasil atual; uma interpretação tosca e perigosa da moralidade, mas que vem ganhando um espaço surpreendente.
Enfim, “a ampla defesa é incompatível com a eternidade”. Venho dizendo esta frase em várias oportunidades e fiquei feliz em ver que o STF a reconheceu por intermédio da Ministra Cármen Lucia. Portanto, a prescritibilidade não é só uma questão de segurança jurídica ou de garantia de direitos ou interesses particulares. É uma questão de justiça inerente ao interesse público primário – este sim, típico de um Estado de Direito. Espero que o Supremo mantenha-se nesta linha e que seu próximo passo seja o efetivo reconhecimento da prescritibilidade também para as ações de improbidade e para os ilícitos penais (estes últimos, desde que não tenham a imprescritibilidade como sua regra expressa constitucionalmente, como no caso do racismo, por exemplo). Afinal, ubi eadem est ratio, ibi idem jus.
Ainda, espero que o Poder Legislativo utilize-se de suas prerrogativas e edite uma lei específica trazendo prazo para o exercício da pretensão ressarcitória da Administração – que penso deva ser o de cinco anos. Embora tais prazos possam ser extraíveis do Código Civil ou de legislação esparsa análoga, creio que seria oportuna a existência de uma regra própria regulamentadora da situação. E tal legislação também deve estabelecer as penas para os agentes públicos que não exercerem sua responsabilidade no ingresso com as respectivas ações de cobrança.”