Desenhado pela Constituição de 1988, o Sistema Único de Saúde, o SUS, foi apontado no início da pandemia de covid-19 pelo Ministério da Saúde como uma das melhores armas que o Brasil dispõe para enfrentar esse desafio. São dois os fatores que levaram a esse enaltecimento do SUS: (i) o Sistema Único de Saúde é responsável pelo atendimento de 78% da população brasileira; e (ii) sua grande rede física de cobertura, pois está presente em todos 5.570 municípios brasileiros.
Há praticamente um consenso em torno da necessidade de fortalecimento do SUS, que passa pelo aprimoramento da gestão; adoção da tecnologia para melhor acesso do usuário; uso seguro da telemedicina; treinamento contínuo dos colaboradores; maior interação com o sistema privado de saúde privado para aproveitamento de suas eficiências em benefício de todos os usuários (como vem acontecendo agora com a realização de estudos de protocolos mais seguros para tratamento da covid-19 e internações dela decorrentes); pesquisa permanente de satisfação junto aos usuários para melhoria dos serviços e, por fim, a criação de diretrizes e protocolos para os principais atendimentos, como existe no sistema público de saúde inglês.
A agência NICE (National Institute for Clinical Excellence), do sistema nacional de saúde inglês NHS (National Health Service), centraliza não só os medicamentos que podem ser utilizados, como os protocolos de tratamento e ainda a liberação do uso de tecnologias. Aqui no Brasil, em que pese a inexistência desse protocolo geral de procedimentos e cobertura, a gestão do SUS enfrenta ainda o obstáculo de uma excessiva judicialização da saúde, que custa anualmente cerca de R$ 7 bilhões de acordo com dados do Ministério da Saúde, lembrando que o gestor inglês do NHS não tem que lidar com esse problema de judicialização da saúde: gestão que enfrenta ainda os obstáculos naturais de uma complexa administração tripartite do sistema, envolvendo todos os entes federados.
Uma das principais abordagens para o fortalecimento passa, necessariamente, pelo aumento de investimento na rede de atendimento do SUS, sobretudo na atenção primária à saúde, que resolve 80% dos casos, sem necessidade de hospitalização (atenção terciária). É fato que ter um sistema com a capilaridade do SUS nesse momento de pandemia traz uma certa segurança, mas quando se fala em seu fortalecimento, não tem como afastar a necessidade de mais ações de financiamento do sistema.
Relatório do Banco Mundial de 2018 aponta que o gasto público com saúde no Brasil é de 3,8% do PIB, enquanto o gasto privado é de 4,4%. Mesmo a cobertura privada à saúde cobrindo menos de 1/3 da população brasileira, o gasto público para atender cerca de 164 milhões de habitantes é menor cerca de 20% em relação ao gasto privado. Hoje, por volta de 46 milhões de brasileiros têm planos de saúde privado, ou seja, representa 45% do total, enquanto o gasto privado representa 55%. O gasto público per capita pessoa no Brasil é de U$ 1 mil enquanto nos países da OCDE a média é de U$10 mil. Atualmente, ante os sofrimentos com os gargalos de ineficiência do SUS, uma pesquisa feita pela Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas (CNDL), apontou que um dos maiores desejos de 70% da população brasileira é de um dia poder contratar um plano privado de assistência à saúde.
O desafio, entretanto, em torno do fortalecimento do SUS, não passa apenas por mais recursos. É preciso uma gestão mais racional do sistema e que seja mais eficiente no combate aos desvios, desvios esses não só em relação às fraudes e corrupção que ocorrem dentro do sistema, mas também decorrentes de gastos com procedimentos mal feitos ou desnecessários.
Segundo dados da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), cerca de 3% dos recursos do sistema de saúde (incluindo o privado) são consumidos com corrupção, enquanto o sistema como um todo chega a desperdiçar 20% de todos seus recursos com procedimentos desnecessários ou malfeitos. Na gestão, ainda é necessária maior definição de competências na chamada gestão tripartite do sistema, envolvendo União, Estados e Municípios. Não raro, há sobreposição dessas funções em um sistema gerido conjuntamente pela União, 26 Estados mais o Distrito Federal, além de quase 6 mil municípios. Hoje, no Brasil, segundo estudos da FIOCRUZ, a União arca em média com 40% de todos os custos do SUS, enquanto Estados e Municípios financiam os 60% restantes. Na implantação do sistema, os valores aportados pela União chegaram a mais de 50%.
Na tarefa de racionalização do Sistema único de Saúde com vista a obtenção de mais eficiência e serviços de mais qualidade para a população, obviamente não podem ser desprezados importantes investimentos na prevenção, até porque a função do SUS não envolve apenas os cuidados curativos com a saúde, mas também ações de sua promoção e prevenção. Há áreas que avançaram na prevenção, como os programas educativos antitabagismo, no qual o Brasil é referência mundial; prevenção da AIDS, e houve um considerável avanço na atenção primária. Entretanto, há áreas que já foram melhores no passado e hoje cairam, como é o caso da cobertura vacinal, que em 2015 era de 95% e hoje está em preocupantes 75%, o que tem permitido a volta de doenças como o sarampo, a poliomielite e a rubéola.
Todo investimento em prevenção representa menos gastos lá na frente com doenças e internações hospitalares. A título de exemplo, veja o que acontece com a falta de investimento crônico em saneamento básico no Brasil. Nesse item, não só o SUS, mas várias esferas de governos têm falhado reiteradamente. Anualmente, segundo dados do Instituto Trata Brasil, 300 mil pessoas são internadas com doenças relacionadas à falta de saneamento básico.
No Brasil atual 35 milhões de pessoas não têm acesso a água potável e 100 milhões de brasileiros não tem acesso à coleta de esgoto, uma vez que menos de 45% dos esgotos do país são tratados. Estudos da Fundação Getúlio Vargas concluíram que o Brasil precisaria investir R$ 470 bilhões na universalização do saneamento, o que representaria um ganho em redução de despesas do sistema de saúde em R$ 1,1 trilhão nos próximos 20 anos. A própria Organização Mundial da Saúde reconhece que cada um dólar investido em saneamento representa economia a curto e médio prazo de 4,3 dólares em gastos com a saúde. Nesse tempo de necessidade de geração de empregos, retomada do crescimento, o investimento maciço nessa infraestrutura permitiria a obtenção de resultados não só no campo da saúde, como também da economia.
O Ministro Paulo Guedes prometeu que, como arma de enfrentamento dos efeitos perversos da pandemia na economia brasileira, vai propor um grande plano de obras em infraestrutura, inclusive, no saneamento básico. Temos, então, uma rara oportunidade de aproveitar esse verdadeiro esforço de guerra para retirar uma das maiores economias do mundo dessa situação vergonhosa no ranking mundial de saneamento, que nos coloca na 112a posição entre 200 países.
Ante à escassez de recursos públicos, as ferramentas jurídicas para esse grande investimento precisam, entretanto, da aprovação final do Marco Civil do Saneamento Básico, que, embora já aprovado pela Câmara dos Deputados, ainda precisa passar pelo Senado. O novo marco civil permitirá a participação de empresas privadas nesse investimento tão necessário e urgente para o Brasil.
Como em qualquer área sem segurança jurídica e respeito aos contratos de concessão que precisarão ser celebrados, os investimentos privados não aparecerão. Daí a necessidade aprovação do novo marco civil, que cria regras claras e transparentes para as concessões e o retorno dos investimentos.
Se podemos ter um ponto positivo nessa pandemia, é que ficou mais do que demonstrada a grande essencialidade do SUS e a necessidade de seu fortalecimento, seja através de mais investimentos, seja na prevenção de doenças e na assistência à saúde em si, seja também na necessidade de maior racionalização de sua gestão com vistas à obtenção de maior eficiência. E aqui, o Estado não estará fazendo qualquer favor, estará apenas procurando devolver à sociedade serviços de qualidade em contrapartida à uma das maiores cargas tributárias de países em desenvolvimento como o Brasil.
*Paulo Roque Khouri, doutorando em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP); mestre em direito privado pela Universidade de Lisboa; advogado; professor; autor de diversas obras e publicações no Brasil e no mundo, com destaque para os livros A Revisão Judicial dos Contratos no Novo Código Civil — Código do Consumidor e Lei n. 8.666/93, pela editora Almedina e Direito do Consumidor: Contratos, Responsabilidade Civil e Defesa do Consumidor em Juízo, pela editora Atlas
Publicado originalmente no jornal O estado de São Paulo, em 28.4.2020