Vejam o caso da Lei 13.726, de 2018…
Por Sergio Tamer
O Brasil é mesmo um país juridicamente curioso. Há leis que “pegam”, leis que “não pegam”, e agora se inventou lei para fazer cumprir as leis que “não pegaram ainda”…
Vejam o caso da Lei 13.726, de 2018, sancionada e publicada no Diário Oficial da União de 9.10.2018. Pela nova lei, órgãos públicos de todas as esferas não poderão mais exigir do cidadão o reconhecimento de firma, autenticação de cópia de documento, além de apresentação de certidão de nascimento, título de eleitor (exceto para votar ou registrar candidatura) e autorização com firma reconhecida para viagem de menor se os pais estiverem presentes no embarque. Para a dispensa de reconhecimento de firma, o servidor deverá comparar a assinatura do cidadão com a firma que consta no documento de identidade. Para a dispensa de autenticação de cópia de documento, haverá apenas a comparação entre original e cópia, podendo o funcionário atestar a autenticidade.
Havia necessidade para uma lei dizer o que a outra lei ainda em vigor (Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil) já dispunha? No Brasil surreal em que vivemos, sim. Leia o que diz o art. 225 do CC:
“Art. 225. As reproduções fotográficas, cinematográficas, os registros fonográficos e, em geral, quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte, contra quem forem exibidos, não lhes impugnar a exatidão”.
Assim o reconhecimento de um documento como verdadeiro deixou de ser previamente exigido como vinha ocorrendo em diversas repartições e processos judiciais. Com o dispositivo acima do Código Civil nossa legislação passou a prestigiar o chamado princípio da verdade documental que considera o documento como verdadeiro até que se prove o contrário. Mas pelo visto, essa norma “não pegou” e foi preciso uma nova lei para reafirmar aquilo que já dispunha a anterior. Somos ou não somos um País surreal?!
É claro que nesse ponto o Poder Judiciário, que vive nestes tempos um surto de empoderamento extra-legislativo, tem a sua parcela de culpa por afastar-se demasiadamente do texto legal no afã de abrigar princípios & teorias, coisas & lousas que, via de regra, são impertinentes aos casos sob o seu exame. Foram inúmeros os casos – inclusive aqui mesmo no Maranhão – onde o Poder Judiciário, por exemplo, optou por fazer valer o texto administrativo do edital de um concurso o qual exigia a autenticação de documentos em detrimento da norma posta no Código Civil.
Essa situação não é nova em nosso sistema legislativo e judicial. Em 2008 foi muito festejado um Decreto do Governo Federal que veio para coibir abusos das grandes corporações do mercado de telefonia, mas que se dirigia, por igual, para as empresas de aviação civil, energia elétrica, abastecimento de água, planos de saúde, instituições financeiras, transportes terrestre, operadoras de TV a cabo e acesso a Internet.[1] Ou seja, veio para dizer que o que já estava escrito no Código de Defesa do Consumidor deveria ser cumprido, especialmente no tocante aos direitos básicos do consumidor contra métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços.
Mas retornando à Lei 13.726, de 2018: há quem questione as implicações dessa mudança para a segurança jurídica dos negócios, sobretudo os notários que não veem com bons olhos essa nova configuração jurídica, mas isso já será assunto para outro comentário. Por ora, o que analisamos é o fato de que o maior óbice para as leis não pegarem, e novos instrumentos legais serem necessários para reafirmar aquilo que já está ordenado, numa espécie de bis in idem insano -, é a nossa cultura impregnada por enxurradas de portarias, resoluções e provimentos administrativos, nos vários níveis e esferas de poder onde, via de regra, se despreza a legislação vigente e se cria nesse ambiente uma legislação paralela e, não raras vezes, contra legem… Não por outro motivo o saudoso constitucionalista Geraldo Ataliba[2] costumava dizer que no Brasil se cumpria com mais prontidão portaria de ministro do que uma norma constitucional. Et pour cause…
Sergio Victor Tamer é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP, Mestre em Direito Público pela UFPe e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca/ES.
[1] Vide artigo publicado em 08/08/2008 por Sergio Tamer com o título: “Um decreto revelador” in https://cecgp.com.br/artigos-sergio-tamer/
[2] José Geraldo de Ataliba Nogueira (1936-1995) foi um jurista formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; professor titular da Faculdade de Direito da USP e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, além de Reitor da PUC-SP durante o período militar.