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CENTRO DE ESTUDOS CONSTITUCIONAIS E DE GESTÃO PÚBLICA

CECGP articula suas tarefas de pesquisa em torno de Programas de Pesquisa em que se integram pesquisadores, pós-doutores provenientes de diferentes países.

A pandemia, a globalização e a Europa – por Durão Barroso

GLOBALIZAÇÃO

José Manuel Durão Barroso

Ex-primeiro-ministro e ex-presidente da Comissão Europeia
Presidente eleito da GAVI, Aliança Global para as Vacinas e Imunização

 

Quando analiso a atual crise económica e de saúde pública a primeira comparação que me vem ao espírito é com a crise financeira e das dívidas soberanas, que na altura acompanhei sobretudo durante o meu segundo mandato como presidente da Comissão Europeia.

Esta crise não é na sua origem econômico-financeira, trata-se antes de uma pandemia com efeitos económicos muito profundos, a qual terá sem dúvida também importantes consequências sociais e políticas. Mas a sua resolução está em larga medida dependente de um fator exógeno: o tempo que se demorará a encontrar e a distribuir uma ou mais vacinas. Nisso a atual crise é sem dúvida diferente. Mas muitos dos desafios, nomeadamente económicos, são semelhantes na sua substância e até maiores na sua dimensão.

A recessão económica é pronunciadíssima, uma das maiores de que há registo na história económica. Ainda assim, a União Europeia, beneficiando da experiência que teve com a crise da dívida soberana, e a chamada crise do euro, tem tido agora uma resposta pronta e ambiciosa, pois beneficia do facto de, durante a crise anterior, termos quebrado alguns tabus e criado instrumentos de governação aptos a enfrentar este tipo de choques. Quando enfrentamos a crise de 2008 e anos seguintes, havia alguns governos (e não dos menos importantes) que sustentavam a impossibilidade de bailouts e de ajuda aos países que tinham entrado em pré-falência económica – como aliás aconteceu, na altura, com Portugal. O chamado Grexit (saída do euro pela Grécia) era dado como inevitável pelos “mercados” e pela maioria dos analistas, incluindo até prémios Nobel de Economia. A resposta europeia, na qual a Comissão teve um papel central, consistiu nomeadamente em iniciativas que seriam impensáveis algum tempo antes, tais como o Mecanismo Europeu de Estabilidade, a aprovação de mais de 30 peças legislativas em matéria financeira e o lançamento da União Bancária, que a minha Comissão promoveu, a qual contudo não está ainda concluída. Mas agora foi possível vencer a resistência dos governos chamados “frugais” e avançar para mecanismos de mutualização da dívida. Mais uma vez se mostrou que a resiliência da UE e do euro é bem maior do que aquela que normalmente os observadores lhe reconhecem. Se há alguns anos foi possível “salvar” o euro, agora pode mesmo avançar-se mais em determinadas áreas da integração europeia. É assim a UE: incrementalista, avançando normalmente passo a passo mas, sobretudo em resposta a crises, pronta para passos maiores.

E qual será o impacto da atual situação na globalização e na integração europeia?

Tenho falado em quatro tendências, os “4 D”: desglobalização, diversificação, descarbonização e digitalização.

Por desglobalização não me refiro a uma reversão ou inversão completa do movimento de globalização – económica, financeira, tecnológica, cultural, de informação – a que temos vindo a assistir ao longo das últimas décadas. Mas haverá muito provavelmente um abrandamento da globalização e tendências fortes no sentido do chamado decoupling, fragmentação do comércio e do investimento e também no domínio da tecnologia. Isto tem que ver com as crescentes tensões entre os Estados Unidos e a China. E estamos a falar de dois dos três maiores blocos económicos, sendo o outro a UE, a qual continua com grande peso global por causa da expressão do seu comércio, dos stocks de investimento ( interno e externo) e da influência dos seus sistemas de regulação, desde a concorrência até à proteção de dados. Ora, a tendência está claramente a ir no sentido da fragmentação e de uma fricção acrescida. Do ponto de vista tecnológico, por exemplo, assiste-se a uma separação em relação a empresas chinesas. E é possível que venha a existir esse decoupling também no campo financeiro e noutras áreas. O mais provável é, pois, que na relação entre os movimentos contrários de fluxo e fricção venhamos a assistir a um reforço desta em prejuízo daquele.
            Ligada a esta questão temos a diversificação das chamadas cadeias de abastecimento. O facto de as economias mais desenvolvidas (nomeadamente a Europa e a América do Norte) estarem muito dependentes de supply chains localizadas muito longe, especialmente na Ásia, tem levado esses países, e a própria UE, a reduzirem essa vulnerabilidade e a diversificarem as cadeias de produção, relocalizando-as mais perto de si.

A terceira questão tem que ver com a digitalização, que já vinha a evoluir mas que agora conhece um progresso espetacular. Não se trata só da generalização da comunicação via plataformas digitais. Também o comércio digital subiu exponencialmente e o mesmo está a fazer-se sentir na eletronificação dos serviços financeiros, por exemplo.

O último destes “quatro D” é a descarbonização. As nossas economias têm estado muito dependentes das emissões de gás com efeito estufa. Já havia um grande acento posto na questão da economia verde e do chamado green deal. Acho razoável prever que a prioridade dada ao crescimento verde e a luta contra as alterações climáticas se vá manter e até reforçar.

E como tem a Europa estado a reagir a todos estes desenvolvimentos?

Para além dos muitos ambiciosos projetos no domínio da transição verde e da transição digital, nota-se uma vontade de avançar em áreas mais alargadas, da política de refugiados à segurança e defesa. Eu vejo uma Europa mais política. Vejo uma UE que, de certa forma, perde a sua inocência, que está a chegar à idade adulta politicamente falando. É verdade que permanecem muitas ambiguidades e obstáculos, mas certamente não é por acaso que se fala agora muito mais de “autonomia estratégica”, de “soberania europeia” ou de uma Comissão mais “geopolítica”.

Necessitamos de uma dimensão europeia. Alguns de nós fazem-no por paixão e por convicção nos valores europeus. Mas, mesmo pensando apenas realisticamente naqueles que são os nossos interesses, é óbvio que no atual mundo mais imprevisível e fragmentado precisamos da escala europeia para defender esses interesses e promover esses valores.

Quando tive a honra de, em 2012, receber o Prémio Nobel da Paz em nome da União Europeia, ao proferir o discurso formal de aceitação falei da nossa experiência portuguesa da democracia e mostrei a ligação que há entre a democracia e a paz. Estes são realmente os valores que, apoiados no princípio da inalienável dignidade da pessoa humana, devem continuar a inspirar-nos hoje no nosso país e na nossa União Europeia.

 

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