“Grande parte do debate jurídico sobre o elemento subjetivo se dá por um erro de premissa gramatical…”
HERIC STILBEN –
Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Mestrando em Direito na Universidade Federal do Paraná.
“Não é não”? Inicio o texto já explicando esta provocação, bem como, considerando a delicadeza do tema, estabelecendo algumas premissas.
Nos últimos meses, vimos o desenrolar do caso envolvendo o jogador Neymar, em que foi acusado por uma moça de tê-la estuprado. A repercussão atingiu a imprensa em geral e opiniões, técnicas ou não, justificadas ou não, tomaram conta da mídia e das redes sociais.
Dentre as opiniões, li inúmeras manifestações de que para que fosse configurado o estupro bastaria a vítima dizer que não havia consentido, o popular “não é não”. Ou seja, na hipótese de um casal, independente do sexo (não vou ficar fazendo distinção entre os mil termos atuais), resolver ter relações sexuais, caso, no momento da prática, um deles decida não prosseguir, bastaria se negar e ponto final. Caso o parceiro não aceitasse e forçasse a relação sexual, estaria caracterizado o crime.
Pois bem, aqui não tratarei desse ponto, até porque não vejo qualquer incorreção nessas opiniões, visto que juridicamente leigas (sem qualquer tom pejorativo, frise-se). Apenas utilizo a expressão para adentrar ao tema de como se prova, se é que isso é possível, o elemento subjetivo no processo penal, especialmente o dolo.
Confesso que minha vontade era ter escrito algo logo no momento em que o caso veio à tona, porém, e muito bem alertado pelo amigo Rodrigo Cabral, ainda que minha pretensão não fosse analisar o caso em si (e nem o farei), considerando a gravidade das acusações, bem como por estarem as investigações ainda no início, uma palavra mal colocada por mim ou uma expressão mal escolhida poderiam levar à conclusão de que este que escreve estaria fazendo juízo de valor sobre o caso (1).
Passadas essas questões, creio que grande parte do debate jurídico sobre o elemento subjetivo se dá por um erro de premissa gramatical que se percebe tanto na análise dos elementos do dolo, quanto em matéria de sua prova.
Por conta disso, Vivés Antón, tomando por base a filosofia da linguagem de Wittgenstein, diz que os tradicionais conceitos do dolo, sob matiz psicológica, partiriam de uma gramática defeituosa2, e “um modo de expressão inapropriado é um meio seguro de ficar encravado em uma confusão” (3).
Tal se dá, dentre outros modos (4), com a inadequada analogia de determinados termos como “pensar”, “comer”, “segurar”, de maneira que assim como pensamos na boca ao falar de comer e na mão ao falar de segurar, como se fosse a boca que comesse e a mão que segurasse, temos a tendência a relacionar o pensamento à cabeça, como se neste lugar do corpo houvesse o processo de pensar (5).
No entanto, quando nos referimos ao pensamento, não estamos aludindo a nenhuma espécie de acontecimento ou objeto real, de maneira que pensar é algo que fazemos por meio da linguagem (6).
Daquela premissa decorreram inúmeras teorias acerca do dolo como realidade ontológica, que “existe como dado psicológico que compete ao jurista identificar” (7), desde as puramente cognitivas, ou seja, que se contentavam com o elemento “consciência”, até as teorias volitivas (incluindo o elemento “vontade”) tendo havido, recentemente, uma retomada das teorias cognitivas (8), muitas justamente com fundamento na dificuldade/desnecessidade da prova do elemento vontade.
No entanto, as correntes ontológicas esbarraram em um muro intransponível do ponto de vista argumentativo, qual seja, a de que “quando se propõe um dolo como realidade ontológica, não é possível esquecer que é necessário demonstrar quais os meios que tornam possível a identificação do dolo como tal realidade” (9).
E como a teorização acerca do que é o dolo é inevitavelmente ligada à teoria da prova (10), a referida incompreensão gramatical nos leva, inevitavelmente a confusões gramaticais também no âmbito do processo penal.
Nesta área do Direito, a confusão se dá quando propomos a pergunta “como provamos o dolo?”, pressupondo que o dolo é algo11. A resposta a esse questionamento só pode ser “é possível provar o dolo?”.
Primeiramente, nem os fatos, tecnicamente, são provados, mas sim os enunciados acerca daqueles (12). No caso do dolo, considerando que é um conceito normativo (13), não podemos dizer que pode ser provado ou demonstrado, mas apenas atribuído (14), mediante a análise de indicadores externos (15). Trata-se de uma qualificação que o intérprete faz à uma determinada conduta concreta (16).
E o que seriam esses indicadores externos?
Como dito, enunciados sobre fatos provados no curso do processo sob os quais se faz um raciocínio inferencial (17). Tal modo de raciocinar a partir de indicadores externos corresponde ao modo de agir das pessoas não apenas em relação aos estados mentais e intenções de terceiros (18), mas ao mundo em geral. Neste sentido, Anderson, Schum e Twining:
Todos realizan inferencias a partir de pruebas. El perro ladra, usted infiere que alguien se acerca a la casa; uma bocina suena flerte detrás de mí, infiero que el conductor está impaciente o enojado; (…) Hay nubes negras, huellas em la arena, lápis labial em la camisa, huellas dactilares em el volante de um coche robado. Todos son indicadores. El razonamiento inferencial es uma habilidad humana básica. (19)
E o raciocínio inferencial para atribuição do dolo também se faz quanto a elementos subjetivos relativos à vítima, como se dá no crime de estupro. Sobre o tema, precisamente RAMÍREZ ORTIZ:
Este contexto (de relação de assimetria ou dominação entre os envolvidos), además, es especialmente relevante para abordar la prueba de la inexistencia del consentimiento libre y voluntario en aquéllas figuras delictivas en las que dicho elemento forma parte esencial de la estructura típica (en especial, delitos sexuales), pues la ausencia de una negativa clara, expresa y terminante de la denunciante no implica que consienta el acto de que se trate, pudiendo deberse tal falta de oposición a otros motivos vinculados con su situación (v.gr. incapacidad de defenderse, temor a una agresión más grave, miedo a perder el puesto de trabajo del que se depende en exclusiva, etc.).20
Não basta, para o processo penal, portanto, a alegação de que “não é não”, ou, melhor dizendo, do depoimento da vítima afirmando que “não consentia com o ato sexual” (21).
A presença ou ausência de consentimento, também é uma qualificação que o intérprete atribui mediante indicadores externos, sendo o depoimento da vítima um importante indício (22), porém não único.
Dessa constatação, percebe-se no meio jurídico uma parcial leitura da decisão dos Tribunais Superiores (23), no sentido de que a palavra da vítima tem elevado valor, deixando-se de lado os demais elementos de prova, tampouco tratando do necessário raciocínio inferencial sobre o depoimento (24).
O que a decisão ilustra é a necessidade de serem considerados pelo intérprete, no momento da análise do depoimento da vítima, de fatores como o contexto em que esta se encontra em relação ao suposto autor (de hierarquia, dominação etc), bem como afastando os estereótipos sociais e preconceitos, mas não rebaixando o standard probatório mínimo exigido para condenação, sob pena de violação à presunção de inocência. Ainda citando o magistrado espanhol:
Difícilmente puede discreparse de los asertos: a) En los delitos sexuales, el testimonio de la víctima debe ser considerada una prueba fundamental; b) Dicha prueba ha de valorarse en conjunto con el resto de pruebas; c) La falta de evidencia clínica de la agresión sexual no denota necesariamente la inveracidad del testimonio. Pero, del mismo modo, de ellos no se deduce la necesidad de rebajar el estándar probatorio. Es posible, por tanto, que lo que este tipo de protocolos y guías pretendan sea tan solo concienciar a aplicadores poco sensibles sobre la necesidad de valorar sin prejuicios los testimonios de quienes afirman ser víctimas de violência de género y, especialmente sexual25.
Desta forma, em apertada síntese, que o espaço proporciona, tentei demonstrar como podemos atribuir o elemento subjetivo exigido pelos tipos penais, seja aqueles necessariamente exigidos em relação à conduta do autor, seja aos eventualmente exigidos na esfera da vítima.
Registre-se que tal construção se faz academicamente, algo que, aparentemente, não vem importando muito nas decisões do Supremo Tribunal Federal26.
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1 Aliás, como muitos, seja na mídia, seja nas redes sociais, apontando e taxando, de maneira desrespeitosa e irresponsável, tanto noticiado quanto a noticiante com termos como “estuprador” e “garota de programa”.
2 VIVÉS ANTÓN, Thomás. Fundamentos del Sistema Penal. 2011. p. 626.
3 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaciones Filosoficas. cit. n. 339.
4 A exemplo de inadequação em tratar o ato de pensar como um processo incorpóreo. Para mais, ver BUSATO, Paulo César. Dolo e Significado. In BUSATO, Paulo César (coord.). Dolo e direito penal: modernas tendências. BUSATO, Paulo César [coord.]. 3. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch. 2019.
5 VIVÉS ANTÓN, Thomás. Fundamentos del Sistema Penal. 2011. p. 630.
6 VIVÉS ANTÓN, Thomás. Fundamentos del Sistema Penal. 2011. p. 633.
7 BUSATO, Paulo. Direito Penal. 2018. 4 ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Atlas. 2018. p. 379.
8 Considerando o espaço, não trataremos das diversas concepções cognitivas e volitivas elaboradas ao longo das décadas. Para aprofundamento, cf. PÉREZ, Gabriel Barberá. El dolo eventual. Buenos Aires: Hammurabi. 2011.
9 BUSATO, Paulo César. Dolo e Significado. In BUSATO, Paulo César (coord.). Dolo e direito penal: modernas tendências. BUSATO, Paulo César [coord.]. 3. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch. 2019. p. 81.
10 RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. Consideraciones sobre la prueba del dolo. In Revista de Estudios de la Justicia – No 4 – Año 2004. p. 17. Disponível em http://web.derecho.uchile.cl/cej/recej/recej4/archivos/PRUEBA%20DEL%20DOLO%20RAGUES%20_8_.pdf. Acesso em 22 de setembro de 2019.
11 VIVÉS ANTÓN, Thomás. Fundamentos del Sistema Penal. 2011. p. 657.
12 BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thomson Reuters. 2019. p. 70. Também TARUFFO, Michele. A prova. Tradução de: COUTO, J. G. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 19. Bem como, BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prova e verdade no direito. Tradução de: RAMOS, V. P. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 74.
13 GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte geral. 11. ed. Bel Horizonte: D’Plácido. 2019. p. 213.
14 RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. El dolo y su prueba em el processo penal. Barcelona: Librería Bosch. 1999. p. 324.
15 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2. ed. de: SILVA, P. R. A. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 252.
16 VIVÉS ANTÓN, Thomás. Fundamentos del Sistema Penal. 2011. p. 657.
17 BADARÓ, Gustavo Henrique. op. cit. p. 227/228.
18 HRUSCHKA, Joachim. Imputación y Derecho penal. Estudios sobre la teoría de la imputación. Buenos Aires: B de F Euros. 2009. p. 196.
19 ANDERSON, Terrence; SCHUM, David; TWINING, William. Análisis de la prueba. Madrid: Marcial Pons; Ediciones Jurídicas y Sociales. 2016. p. 79.
20 RAMÍREZ ORTIZ, José Luiz. El testimonio único de la víctima em el processo penal desde la perspectiva de género in Quaestio Facti. Revista internacional sobre razonamiento probatório. Vol. 1. Madrid: Marcial Pons. 2019. p. 38.
21 RAMÍREZ ORTIZ, José Luiz. El testimonio único de la víctima em el processo penal desde la perspectiva de género in Quaestio Facti. Revista internacional sobre razonamiento probatório. Vol. 1. Madrid: Marcial Pons. 2019. p. 19.
22 TARUFFO, Michele. La prueba del hecho. Trad: BELTRÁN, Jordí Ferrér. Madrid: Editorial Trotta. 2002. p. 164-165. Também Ibanéz, citando Iacoviello “toda prueba es indicio: tanto porque toda prueba comporta inferências, como porque el indicio puede derivar de cualquier médio de prueba” (IBÁÑEZ, André Perfecto, Prueba y convicción judicial en el proceso penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2009. p. 49-50).
23 Por todos, STF – ARE: 1096140 RS – RIO GRANDE DO SUL 0184303-23.2015.8.21.7000, Relator: Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 17/05/2018, Data de Publicação: DJe-098 21/05/2018.
24 Mesmo que se fale em prova direta, a necessidade (quase uma obrigatoriedade) de avaliar minuciosamente as condições, contexto etc, em que foi proferida, trata-se nada mais do que uma tarefa inferencial. (Assim, TARUFFO, Michele. La prueba del hecho. Trad: BELTRÁN, Jordí Ferrér. Madrid: Editorial Trotta. 2002. p. 262). No mesmo sentido, PRADO, Geraldo. A prova do dolo. In Crise no processo penal contemporâneo: escritos em homenagem aos 30 anos da Constituição de 1988. SANTORO, Antonio Eduardo Ramires; MALAN, Diogo Rudge; MADURO, Flavio Mirza (Orgs.) Belo Horizonte: Editora D’Plácido. 2018. p. 196.
25 RAMÍREZ ORTIZ, José Luiz. El testimonio único de la víctima em el processo penal desde la perspectiva de género in Quaestio Facti. Revista internacional sobre razonamiento probatório. Vol. 1. Madrid: Marcial Pons. 2019. p. 24/25.
26 Vide tramitação e todos os atos do Inquérito 4781/DF.